Há um plano em Nomadland (2020, Sobreviver na América), aparentemente insignificante e esquecível – muito curto, talvez com pouco mais que cinco segundos de duração – ao qual corresponde o fotograma que abaixo reproduzo.
Surge na sequência de uma despedida. Um homem parte para assistir ao parto do seu primeiro neto. Uma mulher finge dormir. Ele quer despedir-se e ela não responde. Ele deixa-lhe um bilhete atado a uma pedra na soleira da rulote. Ela encontra o recado e observa a carrinha do homem, que se afasta na paisagem, por de trás de uma pluma de poeira. A mensagem afirma que para o local onde ele se dirige há muitas pedras como aquela. Aquela pedra tem um furo. O plano a que corresponde esta imagem é uma subjetiva dela, que observando através do orifício, percorre o horizonte desértico com o olhar, numa panorâmica para a direita. Cria-se, portanto, um efeito de íris (que remete, inevitavelmente, para o cinema das primeiras décadas do século XX), resultante do modo como a furação daquele calhau enquadra as coisas que se observam através dela. Este é, narrativamente, um plano subjetivo da protagonista e, animisticamente, plano subjetivo da própria rocha. Por instante – talvez pouco mais que cinco segundos – o olhar da pedra confunde-se com o olhar de Frances McDormand (e o de Chloé Zhao, a realizadora). E por instantes, também, o filme mostra – ainda que apenas simbolicamente – a potência conceptual de uma paisagem que se olha a si própria, a partir dos seus próprio fragmentos rolados pelos elementos. Aí, nesse plano, o rosto McDormand petrifica-se no busto que a sua pele curtida já sugeria e – como tal – vê o deserto pelo ponto de vista das rochas e da areia. Faz-se paisagem. São só cinco segundos – que começam tão depressa como acabam – e lá volta o filme à mesma morrinha delicodoce que o caracteriza.
O cinema de Chloé Zhao vem cavalgando sempre o mesmo cavalo, já de partida manso.
Só esse plano naife vale o filme – pelo menos para mim, que o escavei da imparável sequenciação de Nomadland (cada um poderá achar os seus, caso assim os encontre). E a partir dele ressoam outros momentos tocantes na sua inocência metafórica, todos à volta de pedras. O primeiro deles refere-se ao modo como a areia se forma: da fricção entre duas rochas (imagem da solidão que define a protagonista, incapaz e sem desejo de permanecer com O Outro por muito tempo: com medo de se esboroar). Um segundo momento, prende-se com uma pedra colada a um isqueiro, supostamente um pedaço de osso de dinossauro fossilizado (nova forma de animismo, acentuada pelo facto desse isqueiro ser uma oferta simbólica: um gesto de retribuição e camaradagem daqueles que vagueiam pelos states, fora dos cadernos da história). Um terceiro momento, mais para o final do filme, resulta do desejo de uma personagem de que, quando morrer, os companheiros de nomadismo lancem pedras na fogueira, como elogio fúnebre (porque, caso não se tenha percebido, a rocha não arde e assim deveria ser a memória… mas não é). A candura das imagens que Chloé Zhao evoca é o que de mais forte se encontra neste seu filme (não das imagens que, efetivamente, convoca – demasiado efémeras para serem memoráveis: não há tempo, não há duração; postais rápidos do midwest). Há neles uma espécie de grau zero do lirismo, quase arte bruta. Aí há interesse. Mas de novo, são apenas fogachos – relances caeirianos. As pedras, por si, já carregam todo o peso do mundo, toda a perda, toda a memória, não precisam que se lhes acrescente profundidade.
O que me comove nessa subjetiva da pedra ou nos simbolismos simples das rochas [ou em certos retratos deslumbrados pelo “real” – especialmente as investidas de vídeos de telemóveis, que já era das soluções mais interessantes do seu filme anterior, The Rider (2017)] resulta, inversamente, do extremo apuro com que tudo o resto se apresenta. Esses são momentos que destoam de um caudal aprumado onde a eficiência narrativa e a clareza da mensagem são o fim e a razão de ser de tudo. O modo como a música entra, amiúde, e alavanca a montagem ou sublinha o tom emocional da cena é a mais notória das estratégias da realizadora. Outra passa pela necessidade (do argumento clássico) de engendrar uma tensão romântica, ainda que frustrada, que é das mais declaradas manobras do xadrez narrativo que o filme cumpre com anuência estudantil. Ou ainda, e aí chega a ser lamentável, a ida da protagonista à casa da irmã, para que nada fique por dizer (um diálogo rememorativo que traça o percurso da personagem principal da alcova ao presente), e para que se faça a ligação direta à especulação imobiliária (caso alguém estivesse – mesmo muito – distraído). E, claro, o momento da loiça paterna quebrada, que Frances McDormand cola com todo o cuidado, solicitamente incapaz de se desprender do passado (vejam-se as fotografias antigas e coçadas que regressam a todo o momento, ou o seu vínculo à carrinha remodelada), mas que está lá só para isso mesmo, para traçar a marcador amarelo fluorescente o que já se tinha tornado mais que evidente. Esta obsessão pela transparência narrativa é o que torpedeia aquilo que era, a princípio, uma certa subtileza na interpretação por parte de McDormand. De que serve a delicada pausa dela diante de um casaco, no armazém, logo num dos primeiros planos do filme, se depois toda a história do seu trágico casamento de sonho será passada e repassada à exaustão?
Há, ainda assim, um raccord que me diverte (e me mostra que Chloé Zhao não é totalmente destituída de auto-ironia). Num desses “momentos de realidade”, uma senhora dá conselhos de vida à protagonista, e explica-lhe que o seu anel de casamento (o tal de fina trágico) é um círculo, e como tal representa de um amor que não tem princípio nem fim. Ai que bonito. Zhao, pressentindo a queda abrupta para o cliché corta, subitamente, para uma lata de sopa que Frances abre com o respetivo aparelho. Raccord de forma, entre o discurso do anel e a circularidade do movimento de abertura da lata redonda. O amor é um círculo que não tem fim, certo, mas é também uma insípida sopa enlatada comida à temperatura ambiente. Aí, nesse humor fino – veja-se o a ironia do nome da carrinha que, conduzindo para uma forma de vida “primitivista”, se chama van-guard [van significa, em inglês, carrinha] –, quando a realizadora se auto-sabota (ou pelo menos sabota os seus propósito santificadores) o filme ganha uma certa efervescência. Mas, mais uma vez, é tão pouco…
A primeira linha de diálogo da primeira longa-metragem da realizadora [Songs My Brothers Taught Me (2015)] rezava qualquer coisa como: não deves montar demasiadas vezes os cavalos selvagens, porque corres o risco de lhes tirares a energia bravia. O cinema de Chloé Zhao vem cavalgando sempre o mesmo cavalo, já de partida manso. Todos os seus filmes contam histórias de desapossados (no primeiro, a comunidade nativa americana, entre a miséria, a orfandade e o alcoolismo, no segundo, o desemprego, a falta de hipóteses profissionais nos estados do interior e o drama dos acidentes neurológicos resultantes dos rodeos, neste terceiro o acesso à casa, o trabalho intermitente e a ausência de futuro na reforma), todos eles partem de um princípio de perda (um pai que morreu, uma mãe, um marido e uma cidade) e todos descrevem o vagar perdido dos seus protagonistas entre “casos reais”, com uma promessa (falhada) de fuga. O toque malickiano do primeiro tornava-o intragável, o segundo brilhava pela complexidade do retrato da juventude, este terceiro procura – por via de uma atriz de primeira água no papel principal – um alargamento de públicos (que lhe suga a “energia bravia” da experiência anterior). Nomadland não é o melhor filme da realizadora, que agora se mostra a cavalo de um potro já bastante cansado.