ou como a icónica performatividade da ficção da possibilidade de Terayama iluminou uma noite num quarto em Lisboa.
Neste período recente de tempo (incalculavelmente) incerto, a experiência de visionamento de obras cinematográficas no espaço que denominamos de lar intensificou-se (a um nível talvez nunca antes visto). A incapacidade de possibilidade de escolha entre a partilha comunitária e o isolamento, entre a sala de cinema e o quarto, entre a tela e o visor (sempre manchado), entre a cadeira e a cama, transformou inevitavelmente o (tão) nosso ritual do cinema: o espaço de possibilidade de imersão tornou-se (assoladoramente) solitário.
Mas a obra, mesmo que num novo – ainda que reconhecido e já de si habitual – contexto, prevalece.
Num devaneio – de proximidade associativa livre – pela prometida infinitude do universo virtual, numa noite de suplício por um acompanhamento cinematográfico secundário (para efeitos de hipnose anestesiática), surgiu (o milagre que despoletou a reactivação do sujeito:) Shuji Terayama.
Como em (quase) tudo, após um momento de desordem, estabeleceu-se um esquema de organização. Três (mente, corpo e espírito) curtas-metragens de 1974: Seishônen no tame no eiga nyûmon (Young Person’s Guide to Cinema, 1974), Chôfuku-ki (Butterfly, 1974) e Rolla (Laura, 1974).
A linearidade da proposta auto-curatorial advém, naturalmente, de uma certa necessidade – mas também capacidade – de criação de uma narrativa pessoal na ordem do expectável significatório. Tal actividade extradiegética nunca foi excluída (bem pelo contrário) por Terayama, ainda que não prevista nas actuais circunstâncias. O poder da obra de Terayama recai, em grande parte, nas camadas que ultrapassam a superficialidade e unidimensionalidade tão frequentemente presentes nas imagens, de si, em movimento: um glitch* na normatividade.
* “Glitch is all aboot traversing along edges and stepping to the limits, those we occupy and push through, on our journey to defining ourselves. Glitch is also about claiming our rights to complexity, to range, within and beyond the proverbial margins.” in Glitch Feminism: A Manifesto (2020), Legacy Russell, p.22
Young Person’s Guide to Cinema (1974) de Shûji Terayama
Comecemos, então, pelo início: a introdução.
Young Person’s Guide to Cinema (1974)
Desde logo, somos alvo do contacto visual directo dos elementos – as personagens amorficamente teatralizadas – que se apresentam perante nós. Aqui começa a reciprocidade desejada do gaze, desde logo impedindo o conforto da posição passiva – neste nosso gesto de voyeur submisso – e da posição de incisiva actividade – neste nosso gesto de voyeur dominador. Os manequins tornam-se agentes, tornam-se sujeitos num diálogo de partilha de intimidade, entre aquele que observa e aqueles que são observados. A ilusão da equitativa ligação é criada. Mas é precisamente nesse ponto que Terayama cria a magia do (potencial da ficção do) real: na urina que escorre pelo visor (neste caso) e que denuncia a separação entre o eu, a câmara, e a personagem. Uma triangularização de temporalidade e especialidade específica, que nos remete para a constatação do ponto de partida (a cama, neste caso) e da fuga de um possível ponto de chegada.

Partimos num voo com a borboleta.
Butterfly (1974) de Shûji Terayama
Reconhecidos os movimentos deste percurso pelos meandros da memória e da representação, a combinação improvável do contexto (mais uma vez: a cama) com o familiar (a revisitação da obra) cria um efeito que, na verdade, foi o ponto crucial para o despoletar da intenção presente de escrita: a intensificação do desafio do gaze. A premissa de projecção de Butterfly implicava, por vezes, uma interacção do próprio projeccionista com a imagem. Uma espacialidade e especificidade que ultrapassa o já de si específico e (sempre) singular acto de visionamento. As camadas de separação entre a base visual e conceptual de uma primeira camada (da suposta acção principal), sobreposta com a interacção de uma segunda camada (da acção que altera a percepção da base), sobreposta com a percepção do espectador levam-nos a um afastamento saudável do material da ilusão. Uma (des)construção do real, na sua complexidade plástica, rudimentar, na denúncia do acessório (outrora virtuoso) ilusório.
Butterfly (1974)
A obstrução do alvo do desejo (a clara visão sobre essa narrativa de filtro caleidoscópio sublime) induz um efeito de imposição do improvável, na maleabilidade e fluidez da definição do centro, do palco.
Butterfly (1974)
A fuga de definições estáticas, normativas do meio, das personagens, da narrativa, é o mote para o desconforto. A cama onde o sujeito se coloca a observar as dinâmicas de orgias sugeridas, de erotismo gastronómico, talvez nunca esteve tão presente e tão suspensa.

Butterfly (1974)
As dimensões já não se calculam e a borboleta permanece, a pairar como uma sombra que assola o olhar.
Butterfly (1974)
Finalizamos esta viagem com a quebra de paredes, com a perda dos limites do espaço. Se começámos com uma lente – e um visor, e um tempo, e um espaço – que distancia a urina do nosso corpo, se continuámos pelo erguer de novas paredes, terminamos com o trespassar das fronteiras.

Laura aponta o dedo a quem esteve sempre do outro lado, desse ponto de segurança e de poder do lugar da separação da imagem. Um confronto directo, de gozo, de acusação pela satisfação masturbatória do (sempre relativo, mas mesmo assim imponente) controlo. O sujeito que observa consome. O sujeito que observa pode não ir ao volante mas tem a capacidade – e necessidade – de criação do seu próprio destino. O sujeito que, num contexto exterior à sala de cinema, no isolamento do lar, (res)sente controlo de exploração da imagem, de secundarização de obra e sujeitos, num deleite pela extrema sedução da impunidade da divagação pelos desejos mais profundos.
Laura (1974)
Mas, mesmo na segurança do lar, Terayama destrói esse espaço, criando um novo. O controlo foge do espectador, que perde a sua exclusiva dimensão fora-de-tela, entrando directamente para a acção. Na verdade, sempre esteve lá. Mas aqui entramos na figuração: o poder, o domínio unidireccional esvai-se; a vulnerabilidade, a intimidade expõe-se. A expectativa cai no momento em que a parede é quebrada: o poder é sugado para o interior diegético. Três (mente, corpo e espírito) mulheres destroem a normatividade d(a passividade hegemónica) do espectáculo do male gaze.
Laura (1974)
Três filmes (que potencialmente) destronam os novos hábitos do cinema em casa, que nos colocam, mesmo que longe de uma sala, mais perto de um lugar de real, de magia pela ilusão das camadas de ficção, de verdade distante do (terrível) conforto. O assumir do prazer derradeiro: o fim do reinado do superficial, a valorização da fantasia do real, a representação afectiva não exploratória, a ascensão do poder do vulnerável mutável e fluído, do diálogo entre público e obra. O domínio para além de qualquer binário normativo: a aproximação do universo da arte, da vida, do imaginário sem limites.

Faltam oito dias para regressarmos às salas. Entremos, mais uma vez, neste espaço de partilha. Entremos pela riqueza do gesto, fiquemos pela experiência sublime do desconforto, do sonho em comunidade.
The difference between out there and back here is that it’s no-smoking for you, but back here we’re free. (Takes a long drag) – Eimei addresses the audience directly at the beginning of Sho o suteyo machi e deyô (Throw Out Your Books, Let’s Hit the Streets, 1971)