Em certo momento de La spiaggia (A Intrusa, 1954), Alberto Lattuada filma uma praia adormecida: os veraneantes desentorpecem-se, ensonados, nas toalhas sobre a areia, os guarda-sóis fechados tremem ligeiramente com a brisa vespertina, e um hóspede rico de um hotel fuma um cigarro apoiado na varanda da sua suite, num silêncio embalado pelo som das ondas que rebentam calmamente na orla marítima. Entre estas imagens surge um “pillow shot” mediterrânico, uma bóia a flutuar, que vai e vem, imperturbavelmente, ao sabor das vagas, fazendo cumprir visualmente a universal promessa das férias modernas: a de um tempo de tranquilidade, de descontracção e de esquecimento, que permite uma fuga do trabalho, das preocupações e das tensões do dia-a-dia, ou ainda, mais genericamente, “da vida deprimente das nossas sociedades”, para recuperar uma expressão utilizada por Charles Viennet, o secretário-geral do sindicato dos trabalhadores cristãos franceses que em 1912 exigiu a implantação na Europa do direito às férias pagas.
A história do cinema turístico-balnear italiano, na qual a longa-metragem de Lattuada se integra é, contudo, marcada por imagens opostas à da bóia de La spiaggia. Na verdade, uma breve estatística feita a estes filmes produzidos no pós-guerra provará que o principal motor narrativo dos seus argumentos é precisamente o incumprimento, por irritação, azar, corrupção ou ganância, desta mesma promessa das férias, uma desilusão geradora sobretudo de efeitos cómicos, mas também, por vezes, de consequências trágicas. Em La famiglia Passaguai (1951) de Aldo Fabrizi, por exemplo, a união entre pai, mãe e filhos estala violentamente com o nervosismo associado à difícil logística de um dia em família numa estância balnear. O casal de Ragazze da marito (Três Raparigas Para Casar, 1952) de de Eduardo De Filippo, por sua vez, procura em Capri, vivendo temporariamente muito acima das suas possibilidades financeiras, empurrar as três filhas para junto de homens solteiros e abastados, na expectativa de conquistar casamentos economicamente vantajosos para a família e que lhes permitam finalmente vir a ter, entre outros benefícios, férias despreocupadas. Tempo di villeggiatura (Tempo de Férias, 1956) de Antonio Racioppi e Vacanze a Ischia (Férias em Ischia, 1957) de Mario Camerini, ambos protagonizados por Vittorio De Sica, nutrem-se dos pequenos desencontros, tristezas e mal-entendidos das férias, todos eles perturbando as expectativas de distensão dos veranistas. De Sica, uma presença regular nos filmes do género, surge também em Souvenir d’Italie (Aconteceu em Itália, 1957) de Antonio Pietrangeli, onde uma viagem de três jovens estrangeiras através de uma Itália ainda conservadora é comicamente abalada por infindáveis contratempos, o primeiro dos quais um aparatoso acidente de carro. E penso ainda em Carmela è una bambola (1958) de Gianni Puccini, que expõe, através de uma quezília entre dois proprietários de autocarros turísticos na costa amalfitana, a violência e desonestidade que alimentam a indústria das férias.
Mesmo em La spiaggia, em que várias cenas se aproximam de imagens de descanso e serenidade expectáveis em tempo de férias — e cuja ausência de pathos lembra alguns dos poucos filmes em torno da mesma temática que fogem da tensão narrativa, como Treno Popolare (1933) de Raffaello Matarazzo ou a obra-prima de Jacques Tati Les Vacances de M. Hulot (As Férias do Sr. Hulot, 1953) —, a imagem da bóia é negada regularmente. Com efeito, a estância lígure é também, para o realizador, um espaço de corrupção, de arrivismo, de exibicionismo e de comércio, demonstrando que o capitalismo não só não abranda nos contextos de ócio estival, como floresce com voracidade através da absorção, em seu proveito, de tudo aquilo que cresce desmesuradamente com o desenvolvimento dos hábitos sociais ligados às férias — da expansão massiva dos hotéis e restaurantes nas zonas costeiras (roubando o espaço natural que os veraneantes supostamente procuram nestes períodos), aos interesses políticos, laborais e morais que se negoceiam nos bastidores das praias.
Mas a bóia é, além disso, e inevitavelmente, uma imagem histórica. O direito às férias foi duramente conquistado na maior parte dos estados ocidentais (com a exclusão, por exemplo, dos Estados Unidos, onde ainda hoje não há leis federais garantindo férias pagas aos trabalhadores) após desgastantes manifestações e batalhas legais ao longo das primeiras décadas do século XX, que culminariam na publicação da lei das férias pagas em França em 1936 pela mão do recém-eleito Front populaire. Dois anos depois seria promulgado o Holidays with Pay Act no Reino Unido, que previa uma protecção análoga no território britânico, e que oferecia aos trabalhadores uma possibilidade de descanso e de lazer remunerados de que iriam poder usufruir apenas efemeramente, uma vez que a Segunda Guerra Mundial começaria meses depois. O direito que agora damos por garantido foi, assim, marcado pelos tempos negros em que nasceu, e nenhum filme retrata melhor esta génese conturbada do que Bank Holiday (Fim-de-Semana Atribulado, 1938), de Carol Reed. Nesta longa-metragem, que aborda as contradições dos tempos de lazer [nesse sentido, é um equivalente britânico perfeito do filme de férias americano Having Wonderful Time (Viva o Amor!, 1938) de Alfred Santell, lançado exactamente no mesmo ano], toda a comédia é contrabalançada pelo drama da guerra iminente. Por um lado, a sequência inicial centra-se num quiosque com capas de jornais comunicando notícias relacionadas com o fim-de-semana prolongado que se avizinha, junto a outras garantindo que as declarações de guerra serão inevitáveis. Por outro, uma cena em que uma assustadora trovoada assola repentinamente a praia e obriga os banhistas a procurar refúgio da chuva inesperada antevê, premonitoriamente, as corridas para os abrigos durante os raids aéreos do Blitz que destruiriam zonas inteiras de Londres menos de dois anos depois.
A bóia de Lattuada, filmada oniricamente com recurso a uma fotografia amarelada, queimada pelo sol, é, assim, uma imagem de um sonho que está ainda por cumprir. O de um descanso remunerado, prometido nos anos 30 e interrompido violentamente pela guerra, e agora ameaçado, no pós-guerra, pelo que a burguesia quer fazer dele: mais um campo de exploração financeira e humana mascarado pela mitologia estival (uma mitologia altamente moralista, aliás, como o prova o julgamento a que Caterina Lisotto, a personagem interpretada por Isabelle Corey em Vacanze a Ischia, é submetida por se ter banhado nua em frente ao quarto de um casal burguês indignado).
É, finalmente, através de um posicionamento numa escala de densidade que esta imagem se define como representante de uma realidade paralela imaginada, parentética em relação à tristeza do trabalho e da rotina: a imagem da bóia é despida de seres humanos, como os planos vazios de Ozu, apontando para uma idealização das férias enquanto resposta a um desejo de isolamento e de privacidade. A azáfama da corrida aos comboios turísticos em Bank Holiday e as praias transbordando de veraneantes ruidosos em La famiglia Passaguai provam que esta escala de densidade é o sistema mais adequado para medir a aproximação de umas férias às expectativas dos veraneantes: diz-nos o cinema que as férias são tanto mais perfeitas quanto mais as suas imagens forem vazias, e tanto mais atribuladas quanto as suas imagens forem preenchidas.
Foram muitos os espectadores europeus que, à saída da Segunda Guerra Mundial, para se esquecerem momentaneamente da dolorosa interrupção da promessa das férias e da paz, se agarraram à bóia do cinema turístico-balnear, para se rirem com os dissabores estivais das imagens repletas, e para sonharem com a calma das imagens adormecidas.
(David Pinho Barros prepara, neste momento, um número bilíngue da revista académica Imaginaires sobre o tema das férias de verão nas artes narrativas. Mais detalhes sobre o projecto podem ser encontrados aqui.)