I.
Dele se costuma dizer que é “O primeiro plano de Clark Gable em Gone With The Wind (E Tudo o Vento Levou, 1939)”. Aliás, “O fabuloso primeiro plano de Clark Gable em Gone With The Wind”. Como, para o bem e para o mal, frequentemente acontece [as sirenes da ambulância que, na folha de sala de Angel Face (Vidas Inquietas, 1953) de Otto Preminger, só Bénard da Costa ouviu…], o filme desmente o saber popular. Isto é, o espectador. Não é um desmentido qualquer: antes desse plano, há um outro em que, por uma fracção de segundos, podemos entrever, quase como um (falso) blooper, Rhett Butler (Gable) em profundidade, o seu pescoço ligeiramente inclinado, o olhar investigativo, charmoso, diabolicíssimo por detrás de Scarlett O’Hara e Frank Kennedy. Não só a primeira vez que o espectador vê Rhett; a primeiríssima, também, em que Rhett vê Scarlett sem que esta o veja a ele.
O modo como esta inaugural e semi-oculta aparição de Rhett (nome estranhíssimo, este, cuja pronúncia produz o mesmo som do nome de um animal pouco simpático na hora de designar alguém…) é trabalhada no enquadramento diz já muito sobre a personagem: Rhett surge bem ao centro, entre Scarlett e um homem (ironicamente, aquele com quem esta celebrará um segundo casamento e o que antecede o matrimónio com Rhett), no preciso momento em que este a cumprimenta e, apalermado, a corteja (como todos aqueles que têm a suprema felicidade de com ela se cruzar nessa tarde em Twelve Oaks). Agora em-movimento: vindo da direita, Rhett estanca exactamente a meio do plano, o mesmo lugar central em que Scarlett e Frank, vindos em sentido contrário, se fixam. É neste encontro “a-meio-do-caminho” que ocorre o beija-mão a Scarlett, de quem, nesse momento, o espectador não beneficia, ao contrário de Rhett, do acesso ao seu rosto (tapado pela aba larga do chapéu). Eis Rhett, vulto omnipresente (mesmo quando não de carne-de-osso) entre Scarlett e outro homem (Frank é disso metonímico e Ashley o nec plus ultra), entre Scarlett e outra coisa. Entre ela e o mundo (um “entre” que nem sempre é barreira ou empecilho, mas também ponte ou “instrumento”, sobretudo quando O’Hara precisa de Rhett para salvar Tara ou a sua própria pele, o que, no seu caso, são uma e a mesma coisa).
É o primeiro momento, dissemo-lo, em que Rhett avista Scarlett sem que ela tenha consciência de que está a ser observada, mimo que será devolvido ainda nessa mesma tarde quando a ainda adolescente, furando a sesta compulsória das meninas-de-bem e dissimulando-se nas cortinas que ornamentam a escadaria principal de Twelve Oaks, observa Rhett a abandonar a sala “dos homens” após recusar um duelo com o patético Charles (o seu primeiro marido). Eis, portanto, uma relação que, ainda carente de quaisquer palavras ou emoções, silenciosamente se inicia, voilà, sob o puro signo do Olhar. E, como o espectador intuirá ao longo do filme, talvez que por aí se devesse ter mantido, pois que elas, palavras, serão invariável motivo de profundos e dolorosos mal-entendidos que, mesmo quando o vento até parece estar de feição, bloqueiam o acesso do casal a uma ideia de felicidade (paradigmática a cena, já perto do final, da “manhã seguinte”, em que, depois de uma maravilhosa noite de alcova que rouba a Scarlett um dos poucos sinceros e resplandecentes sorrisos do filme, Rhett, pedindo desculpa pelos seus brutos ébrios modos e não se apercebendo da alegria em Scarlett, “encerra o capítulo”, a amargura instalando-se novamente…).
Para os que repudiam o alegado “convencionalismo” (técnico? ideológico? convém separar os alhos dos bugalhos, só o desconhecimento permitindo, em qualquer caso, a precipitação na defesa de qualquer um deles) do cinema americano clássico (são muitos, hoje, os equivocados na ideia de que um filme é “arrojado” pelo facto de tocar em meia dúzia de causas “fracturantes”, confundindo forma e conteúdo, norma e veludo), eis um truque cheia de graça, gimmick brincalhão para o cinéfilo mais atento. Mas o problema é justamente esse: um défice de cinefilia compensado pela crença em sobra de que o cinema nasceu consigo, donde a propensão para desprezar, se possível pura e simplesmente eliminar, tudo o que não esteja sintonizado com o seu tempo-espaço. Por exemplo: impedir a exibição de um filme que, realizado em 1939 (numa altura em que os EUA só não eram racistas na higiénica letra da sua Constituição), retrata um tempo e uma sociedade de lege data racistas e, pelo caminho, ignorar as nuances, certamente pontuais mas complexas, que o tema recebe no filme, de que o diálogo de Scarlett e Ashley a propósito da contratação de ex-presidiários (negros e brancos) para trabalharem na madeireira de Atlanta é paradigmático. Depois de Ashley lhe rogar que não os contrate, pois que são explorados pelo seu agiota proprietário, Scarlett responde-lhe – trocando por miúdos – nos seguintes termos: “Quando tinhas escravos, não te queixavas”. Ashley aceita a crítica, diz-lhe que os tempos eram outros e que, ainda assim, ele próprio já havia nessa altura decidido que, assim o seu pai falecesse, iria libertar os escravos de Twelve Oaks. Hipocrisia? Oportunismo? Ou uma arquetípica hipótese “progressista” de redenção concedida a uma personagem central do filme? Não sabemos com certeza, mas as – isso – nuances estão lá (e, confirmando-se a primeira hipótese, a da hipocrisia, está tudo dito sobre o juízo que o filme faz dos esclavagistas brancos) . É preciso é ter olhos para as saber ver.
II.
E, porém, não é ao plano “oculto” de Gable que me venho declarar, mas ao tal falso “fabuloso primeiro plano de Clark Gable em Gone With The Wind: o “plano das escadas”, esse no qual Scarlett observa pela primeira vez Rhett – e no qual o observa a observá-la a ela. De novo, a centralidade de Rhett: no plano, na vida futura de Scarlett, em todo o filme, posição sublinhada pela disposição dos dois figurantes no canto superior esquerdo e de um outro à direita, criando um triângulo invertido cujo vértice inferior é figurado pela ovelha negra de Charleston. De novo, também, a profundidade: atrás de Rhett, uma porta aberta, uma sombra projectada (aparentemente de uma silhueta masculina) caindo nas suas costas. Plano picado, intensíssimo, que logo estabelece uma relação de verticalidade entre Scarlett (em cima) e Rhett (em baixo). Uma escadaria, uma vertigem, a separá-los. Isto é, a juntá-los. Tonturas. Scarlett é apanhada na curva: quando olha para ele, percebe que já está há muito a ser observada. Fica perturbada com aquela presença-olhar (“Who’s that? The nasty, dark one”), afogueada com a sua inebriante “bad reputation” (como lhe esclarece a amiga, num fidedigno exemplo do adágio “There is no such thing as bad publicity”). Geometria variável interessante, esta que preside ao ponto-de-vista de Scarlett nesse momento, em que uma relação vertical, de “cima e baixo”, complementada pelas formas rectilíneas da arquitectura e da decoração (as velas, o padrão do soalho), é atraiçoada pelo carácter curvo, “ziguezagueante” (atordoante) da escadaria. Escadas em caracol, quasi-expressionistas, que sugerem como todos os caminhos vão dar a Rhett.
E vão mesmo, di-lo agora a câmara que, num movimento de grua, inicia uma descida do piso intermédio em que se encontra Scarlett até Rhett (que se volta ligeiramente para a sua direita e cruza os braços, em jeito ainda mais declarado de contemplação), terminando naquele que talvez seja o plano aproximado mais canastrão na carreira de Gable (mantendo-se no enquadramento, agora recortadas pela cintura, as silhuetas dos dois homens no canto superior esquerdo, a porta aberta nas costas de Rhett e a sombra projectada do interior da divisão contígua).
Tal como acontece com a suposta primeira aparição de Gable, também sói eleger-se “Frankly, my dear, I don’t give a damn” como a mais memorável tirada dos 238 épicos minutos de Victor Fleming. E, porém, a linha mais marcante no alumiar da complexa e tortuosa relação do par central de Gone With The Wind é proferida por Scarlett nesta cena, mal acaba de avistar Rhett:
“He looks as if he knows what I look like without my shimmy”.
Ou:
He looks as if he knows
what I look like
without my shimmy
Para além de tudo o que desenvolveremos nas próximas linhas, eis o lembrete de um tempo – definitivamente há muito enterrado em Hollywood – em que argumentistas de génio habitavam a indústria americana. De par com o plano subjectivo picado do avistamento de Rhett (de que não há um plano correspectivo, i.é, o plano de Scarlett inquirindo a amiga corresponde ao olhar do espectador, não vemos nunca nesta cena Scarlett a partir dos olhos daquele), tal observação – muito self-conscious, quase culposa (um misto de repulsa e atracção, como todas as emoções que movem montanhas) – funcionará simultaneamente como pista, mote, sentença para o desenrolar – para o destino – de Gone With The Wind (de que outros trechos de diálogos que aqui citaremos são magníficos prolongamentos ou concretizações).
III.
Sem perder jamais a sua natureza sexual (um simples olhar capaz de despir um corpo, de o destapar sem um único toque, e em que o dualismo nakedness e nudity, para convocar a destrinça estabelecida por Kenneth Clark em The Nude: A Study in Ideal Form e objectada por John Berger em Ways of Seeing, é dizimado), tal tirada comporta, porém, todo um outro alcance, de uma desmesurada profundidade moral e psicológica, que vai sendo desvendado ao longo das desventuras desta parelha apanhada nas encruzilhadas da História. Aquela (a afirmação de Scarlett) que aparenta ser uma insinuação de cariz exclusivamente erótico, aquilo que se assemelha um mero olhar de franco-atirador na caça da presa (mas um olhar que conserva ironia e sarcasmo, atributos pelos quais Rhett não se coibirá de pautar a sua relação com Scarlett), vão-se metamorfoseando ao longo do filme até o espectador perceber que, na verdade, revelam a aguda percepção que, desde o primeiro momento, Rhett – o aparentemente pouco inteligente e sensível Rhett – retém de Scarlett e do seu carácter (e isso, hélas, bem pode também constituir o sopro daquilo que se convencionou chamar de… amor à primeira vista). Que Rhett logo ali a viu como ela veio ao mundo – sim, Rhett soube, nesse instante, como aquela era uma mulher caprichosa, mesquinha, profundamente egoísta e egocêntrica, se necessário vingativa e violenta. Mas também um ser determinado e destemido; corajoso, abnegado, generoso; sacrificial quando as circunstâncias assim o exigem. Rhett sabia.
Coup de foudre. Nesse avistamento seminal, Rhett sabia-a no seu melhor e no seu pior; e soube também que o segundo era provavelmente muito maior do que o primeiro. Sabia-o e, mesmo assim, amou-a desde esse dia (como lhe chegará a dizer), apesar de ela fazer questão de lhe dizer, sempre que pode, que o seu coração pertence a Ashley. Mas também nisso a perspicácia de Rhett é notável: pese embora os violentos ciúmes – únicos momentos do filme, aliás, em que a sua irascibilidade (e, até, melancolia) emerge – que vai acusando amiúde, dirá a Scarlett que, mesmo na hipótese de ela um dia ficar enfim com Ashley, nunca seria, hélas, feliz, porque, na verdade, não o conhece, não compreende “his mind”. Rhett sabe que Ashley é apenas uma mera projecção, idealização tola e fútil própria de uma jovem naïve (algo que a própria virá a reconhecer, mais velha e madura, perto do final do filme), o que, de alguma forma, lhe serve de (fraco) consolo na hora de amortecer o ciúme.
Não se trata de uma idealização qualquer; Rhett sabe que Scarlett não é feito da mesma carne que Ashley. Mais velho do que ela e com uma vida já bem mais vivida, Rhett entreviu, naquela tarde em Twelve Oaks, como Scarlett e ele próprio são feitos da mesma loiça. Di-lo-á mais do que uma vez ao longo do filme e Scarlett acabará mais tarde por tacitamente assentir (“You’ve always said we have a lot in common”, diz-lhe quando pedida em casamento). Da primeira vez em que se falam em Twelve Oaks, momentos após Rhett assistir, escondido, ao desentendimento entre Scarlett e Ashley e de lhe dizer que guardará o seu segredo (logo aqui começa por lhe “roubar” algo precioso, uma parte dela), ela, irritada, atira-lhe “Sir, you are no gentleman”. Resposta: “And you, miss, are no lady”. Numa sociedade altamente marcada pelas convenções e os artifícios de classe, eis a primeira derrocada das máscaras entre os dois, assim se subtraindo ambos a um terreno pré-condicionado e passando a jogar em “campo neutro”. Quando a guerra já estalou e Scarlett, desesperada, abandona o hospital de campanha e é salva da confusão, qual cavaleiro andante, por Rhett, este diz-lhe, pelo meio do buliço da viagem, que se poderiam evadir para Londres, México, Paris. É desdenhado. “With you?!”. “With a man who understands you and admires you for just what you are. I figure we belong together being the same sort”. Já no fim da great escape, quando Rhett se despede para reingressar no exército sulista, nova insistência: “I love you, because we’re alike. Bad lots, both of us. Selfish and shrewd, but able to look things in the eyes as we call them by their right names”.
Mais tarde, falida e na iminência de vender Tara para salvar a família, Scarlett vai à prisão ter com Rhett, por sua vez prestes a ser enforcado pelos yankees (tratados pela comunidade cercada como os índios nos westerns mais rasos, palavra-arquétipo sem rosto nem humanidade, logo, apavorante; como, enfim, “The Thing”). Momento em que ninguém olha ninguém do cimo das escadas; ambos estão na mó de baixo, em fim de linha. Eppur si muove… E, contudo, ambos vão à luta, mantêm o espírito aguerrido, a tensão, mas também o charme, o tesão. Entre a espada e a parede, Scarlett oferece-se (primeiro, em casamento; depois, em pura carne) em troca dos 300 dólares de que precisa para manter Tara. “You’re not worth 300 dollars, you’ll never mean anything but misery to any man”, responde-lhe Rhett, antecipando o seu próprio destino (ele que é o único dos três maridos que não se fina no filme). Depois do segundo deles desaparecer, Scarlett, num luto que parece, pela primeira vez, semi-absolutamente verdadeiro, confessa a Rhett estar com “muito medo”. Implacável, sarcástica, intolerante para com hipocrisias, altamente precisa, assim é a reposição da verdade que recebe em troca do excomungado de West Point: “I don’t believe it, you’ve never been afraid in your life”. O que a isto se segue é a mais pura negociação de uma mercadoria, no caso, o pacto nupcial, incluindo o riso escarninho de Rhett pelo romantismo artificial do momento. Ambos registam o contrato, ditam as cláusulas e ajustam as alíneas, prevêem os princípios gerais e as devidas excepções. Sem conveniências, paninhos quentes, logros, apenas e só a verdade (?): Scarlett não ama Rhett, que não ama Scarlett; Scarlett ama Ashley e ama o dinheiro de Rhett (diz-lhe que aceita casar com ele “partly” por causa do seu dinheiro). … “Que não amava ninguém”, assim termina o poema de Drummond de Andrade; “I’m not in love with you anymore than you are with me. Heaven help the man who ever really loves you”, assim sentencia Rhett (uma variação do “Heaven help the Yankees if they capture you” ouvido antes).
A mercadoria é transaccionada. Perdão, o casamento é celebrado – o único dos três que Scarlett oficializa sem ser por razões caprichosas (Charles) ou financeiras (Frank). Por que motivo, então, decide Scarlett O’Hara casar com Rhett Butler? A resposta jaz – já lá iremos – na escadaria onde o filme termina. Antes disso, e numa altura em que corre por Atlanta o (infundado) boato de que Ashley e Scarlett mantêm um caso, esta última é convidada, ainda assim, por (Santa) Melanie para o seu aniversário. Scarlett, envergonhada, finge-se doente, mas Rhett não só a força a atender à festa, como a ir sozinha, sem a sua companhia. “Put on plenty of rouge, I want you to look your part tonight”. “Your part” – Rhett conhece a hipocrisia até aos ossos de Scarlett, sabe que, para ela, fazer o seu papel é, frequentemente, a sua forma natural de ser. Fazer o seu papel pode ser, simplesmente, ser Scarlett O’Hara, ou seja, e paradoxalmente, não fazer um papel. Scarlett é e não é uma actriz.
Embora integrantes de uma ultra-elite rica e segregacionista, nenhum dos dois cumpre com os princípios e valores morais (de honra, lealdade, probidade) que se esperam dos da sua estirpe – se Scarlett, mais dissimulada, nunca o assume frontalmente (sempre quis ser “calm and kind”, como a mãe), Rhett passa o filme a formular juízos auto-depreciativos sobre si próprio enquanto demonstra a sua admiração pelos dotados dos tais princípios que incumpre. Na perturbadora cena da discussão em que se prepara para esmagar o crânio de Scarlett com as próprias mãos, Rhett mostra como a loucura bem pode ser o mais lúcido dos estados: “We’re not gentlemen and we have no honor, have we?”. Mau grado as (ligeiras) dores de consciência pela sua hipocrisia e a resistência em ceder aos avanços de Rhett, a forma descabelada e aberta – ou seja, honesta, qualidade rarefeita em Scarlett e, por isso, motivo da sua admiração – deste em dizer as verdades sobre o carácter de ambos exercerá um indesmentível poder de sedução sobre a filha dos O’Hara. E ela própria se tornará, influenciada por esse modo de ser de Rhett, mais sincera sobre si mesmo e os seus desejos à medida que o filme avança.
Dois idealistas, dois hipócritas, frouxas e impotentes almas no cumprimento dos altos valores que dos da sua classe se esperam. Mas não só dos “seus”, no que se confirma o modo desempoeirado, não-classista se quisermos, como Rhett aprecia a Verdade enquanto valor moral: na lua-de-mel, quando Scarlett lhe conta como Mammy lhe disse que eles se acham cavalos-de-corrida quando não passam, na verdade, de duas mulas (a classe explorada fazendo a clarividente avaliação da exploradora), este diz-lhe, esfuziantemente, nunca ter ouvido nada tão verdadeiro. “Mammy’s a smart old soul and one of the few people I know whose respect I’d like to have!”. Rhett sabe sempre a profunda verdade sobre si e sobre Scarlett, o seu charme e galanteio servem apenas de capa para a vergonha de si próprio. E quando Mammy lhe revela que é menina o bebé que Scarlett acaba de dar à luz, ele retorque: “Who wants a boy?! Boys aren’t any use to anybody. Don’t you think I’m proof of that?”…
IV.
A acuidade de Rhett é dupla, raio-X físico e psicológico, carnal e moral, que nunca terá a preocupação em esconder da visada. O plano de Rhett nas escadas, a tirada de Scarlett (“He looks as if he knows what I look like without my shimmy”), a escancarada declaração de Rhett (“And you, miss, are no lady”), eis três fundamentais elementos em contínuo trânsito ao logo de Gone With The Wind.
As escadas de Twelves Oaks são as de toda uma vida. Não são as únicas. Em rigor, as escadas constituem um lugar dramatúrgico privilegiado em Gone With The Wind. É na escadaria da casa para onde Rhett e Scarlett vão viver juntos (muito provavelmente, a mesma casa-décor da de Twelve Oaks) que, depois da cena de discussão a que aludimos anteriormente, o primeiro leva Scarlett forçada e furtivamente degrau acima até à escuridão total [qual Beauty and the Beast (A Bela e o Monstro, 1991), filme que, de resto, adopta uma escadaria muito semelhante…]. É aí que, depois do regresso de Rhett e Bonnie de Londres, Scarlett – naquele que talvez seja o pináculo expressivo de todo o desempenho de Vivien Leigh – passa do estado de uma adolescente felicidade para o de uma indizível mágoa. Indizível, dissemos bem: tudo isso resulta, em poucos segundos, da pura transfiguração do seu rosto sem que uma única palavra seja proferida. Minutos depois, quando Rhett lhe roga uma praga fatal, Scarlett sofre o acidente causador do aborto – semelhante ao aborto, este voluntário, igualmente “escadas baixo” de uma prima afastada de Scarlett, essa grande manipuladora chamada Ellen de Leave Her to Heaven (Amar foi a Minha Perdição, 1945) – daquele que seria o segundo filho do casal (concebido, tudo aponta, na noite do “rapto” de Scarlett). Tragédia que, por sua vez, origina a cena em que um travelling ascendente ao longo da escadaria vai acompanhando o desespero de Mammy e Melanie, os dois anjos da guarda de todas as personagens de Gone With The Wind.
E é também aí, na escadaria, que, pela derradeira vez, Scarlett olha, novamente de cima (mas de lágrimas nos olhos), Rhett (de costas) antes da sua partida, um “I love you” que recebe “That’s your misfortune” de resposta… Enfim prostrada, ajoelhada nessas escadas de glória e desgraça, O’Hara reerguer-se-á, uma e outra vez (as que forem precisas), para voltar a Tara. ”It’s this from which you get your strenght, the red earth of Tara”, as penetrantes palavras Rhet (juntamente com as do pai e de Ashley) reverberando como um feitiço…
Uma escadaria é um em-trânsito, vai-e-vem de sentidos, literal e não literalmente falando. Durante as quase quatro horas de Gone With The Wind, durante os tumultuosos anos que lhes correspondem, Rhett e Scarlett nunca sairão, afinal, da escadaria de Twelve Oaks. O espectador também não: um só fotograma retrospectivamente revela todo o trajecto do filme, o de um revolto rio (um falso film-fleuve, afinal…) que vai desaguar na revelação do carácter – confuso, híper-complexo – da sua personagem central. As escadas vão dar a Rhett porque é no seu olhar que se joga – que é apreendido – o interesse primordial do filme pela filha-da-terra, Scarlett O’Hara. Os nossos olhos descem as escadas até aos olhos do Rhett e, daí, sobem até Scarlett. Quem está, afinal, por cima e por baixo na relação de Scarlett e Rhett? Ao longo do filme, desde aquela radiante tarde de Twelve Oaks até à escuridão gótica da mansão de Atlanta, as posições vão-se alterando, as perspectivas (das personagens e do espectador, cujo juízo oscila, enubla-se) também. Nunca é claro ou perene quem olha quem do cimo das escadas, quem fica por baixo (pode olhar-se “de cima”, e não apenas por se estar fisicamente “acima de”, mas estar “por baixo”…), quem penetra e quem é penetrado – pelo olhar, pelo ciúme, pela vingança. Mas também pelo desejo e o amor.
O olhar não hierarquiza. (Des)equilíbrio que se explicará ao longo de todo o filme por factores de ordem vária, o financeiro constituindo o chapéu-de-chuva de tudo o resto. Quem domina e quem é dominado? O dinheiro e, com ele, o poder (sexual, também, pois que é a partir do momento, pós-parto, em que Scarlett adverte Rhett de que não voltarão à cama que o casamento desaba definitivamente) o dirá – equação que vale também para a própria guerra entre Sul e Norte, para a História e para a história de Rhett e Scarlett. Nenhuma delas, a dos EUA e a de Rhett-Scarlett, fica, aliás, resolvida. O arco narrativo de Gone With The Wind oferece a ambos a riqueza e a penúria, a felicidade e a angústia, o triunfo e o desespero, a vida e a morte – como no rito que o padre profere diante dos noivos no dia de casamento…
“You may now kiss the bride”. Ou então: “We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union”…