Honkytonk são bares, espaços ainda populares no sul e no sudoeste dos EUA, onde se proporcionam aos clientes concertos, muitas vezes a solo, de música country, por vezes com piano. Em Honkytonk Man (A Última Canção, 1982), estabelecido nos anos 30 da Grande Depressão, alguns destes botequins para lá da partilha de música e do álcool, anexavam a função de bordel no piso superior, numa coabitação da criação e do vício, retrato de época e projecção da condição humana. Sobre o estrado, o corpo de Red Stovall (Clint Eastwood) envolve a guitarra e solta uma voz frágil, mas ainda doce; na soleira da porta do honkytonk, Whit, o adolescente e sobrinho de Red (Kyle Eastwood, filho do cineasta), o corpo estendido para o terraço exterior, mas o olhar no palco improvisado e no movimento do chapéu de Red que recolhe os contributos no fim do concerto.

O primeiro encontro de Eastwood com o sobrinho antecipa a horizontalidade da relação de Costner com Phillip em A Perfect World (Um Mundo Perfeito, 1993), uma cumplicidade imediata traduzida no dedilhar por Whit da guitarra, a única bagagem contida no Lincoln, que Eastwood tinha feito embater na vedação e no frágil moinho da quinta na noite anterior (o automóvel volta a ser uma peça inalienável do seu portador, da sua viagem individual). É o começo da partilha de um universo: Red ensina o rapaz a afinar a guitarra e Whit observa a adição de álcool do músico, que o define como um estouvado dado a acções destrutivas e debilitado por uma tuberculose, num preâmbulo que imporá uma inversão de papéis: será muitas vezes a criança a cuidar do adulto. A mãe do rapaz, irmã de Red, interpretada por Verna Bloom, apertará o vínculo entre eles, dir-lhe-á que Eastwood não tem culpa, nem do vício nem da doença: ele é apenas humano. Richard Schickel realizou em 2010 um documentário rectrospectivo que intitulou The Eastwood Factor, tomando de empréstimo o titulo de trabalho de Invictus (2009) – The Human Factor – que assinala um dos eixos que perpassa em grande parte da filmografia do cineasta: a necessidade de valorização do humano e do emocional em detrimento da razão e da técnica, e que tal como o romance homónimo de Graham Greene realça o mundano, expurgado da ambição de heroísmo.

Nesta janela pela ampla paisagem da História americana, onde o velho vê o falhanço, da Grande Depressão e dos terrenos agora desertos de Oklahoma, o rapaz antecipa novos mundos, um canal aberto até à Califórnia dependurada no Pacífico, numa conversa de onde Red está apartado, ausente de futuro.
Três gerações habitam uma pequena quinta no Oklahoma, numa plantação destruída por uma tempestade de vento, um castigo que imporá àquela família uma árdua viagem, okies que partilharão a rota dos Joads, os protagonistas de As Vinhas da Ira (1939), atlas de John Steinbeck, que John Ford adaptaria ao cinema no ano seguinte: um êxodo a caminho da Califórnia, das vinhas e dos pomares, empurrados das suas terras pela escassez e pelas hipotecas. Nos interiores de uma pequena habitação, desenhada por uma ténue claridade, Verna Bloom, rouba o filme aos dois protagonistas até ao início da viagem: enquanto amamenta uma criança, observamos o rosto dela marcado pelas horas de trabalho, de sol a sol, e pelas aflições de tempos difíceis, numa potente representação da maternidade, que nos relembra as gravuras de Scorsese em The Last Temptation of Christ (A Última Tentação de Cristo, 1988), com Bloom aos pés do tormento do filho crucificado. É uma força mater, maternal também com o irmão e por isso lhe cede o filho para a viagem a Nashville, capital do country, onde Red procurará a redenção através da música.

Na primeira porção da viagem pelas américas, onde se cruzarão automóveis com carroças, o avô, John McIntire, acompanha o tio e o sobrinho: decidira voltar a casa, no sopé do Tennessee, para aí morrer. Será neste pedaço de filme onde se obtém o diálogo mais intencional entre o mapa da História e as histórias do cinema, os seus temas e intérpretes, uma recorrência no trabalho de Eastwood. O velho mostra a Whit um dos lugares de onde partiu a corrida para oeste, expedição à procura da terra prometida pelo Acto Homestead, decretado por Lincoln, que colocou em trânsito milhões de pioneiros, de americanos e estrangeiros, enquanto se desenrolava o primeiro eixo ferroviário e se expulsavam os povos nativos, como os Cherokees. Nesta janela pela ampla paisagem da História americana, onde o velho vê o falhanço, da Grande Depressão e dos terrenos agora desertos de Oklahoma, o rapaz antecipa novos mundos, um canal aberto até à Califórnia dependurada no Pacífico, numa conversa de onde Red está apartado, ausente de futuro. Intérprete de Raoul Walsh, de Ford e Huston, esta personagem de John McIntire aqui numa das últimas aparições, lembra-nos o seu ‘Doc’ McCord em The Tin Star (Sangue no Deserto, 1957) um dos homens íntegros de Anthony Mann, um médico que ajudara a nascer dois terços da comunidade, um humanista que promovera o encontro entre Henry Fonda e o inexperiente xerife Anthony Perkins e que chega morto à cidade que o esperava para celebrar o seu 75.º aniversário, dentro de uma carruagem vagarosa, que para lá do acto horrendo de um assassinato e da fantasmagoria nos expunha um corte abrupto na lenta implantação da lei e dos modos de civilização de uma América de fim de século.

Numa paisagem de tavernas, de bordéis e casas de jogo pintadas a tonalidades nocturnas, uma mundividência habitada de jogadores, de trapaceiros, de ladrões e de autoridades corruptas, que serve de cenário e de itinerário para uma educação sentimental, com Eastwood a enquadrar inúmeras vezes no mesmo plano, dentro do carro, a dupla de protagonistas, a aproximá-los tal como fará em A Perfect World. Red introduz o sobrinho no álcool e no sexo, uma formação que acelera a autonomia do rapaz, promovido a motorista do automóvel, perante uma conduta irónica e errática do músico, que muitas vezes nos lembra o walk the line cantado e vivido por Johnny Cash. É um olhar que dispensa o moralismo, que galga o politicamente correcto, a servir de leitura para tempos de lei seca, onde o whisky se contrabandeava e se armazenava na cave, uma iniciação que paradoxalmente escapa à corrupção de uma época de vício: no primeiro encontro do rapaz com uma mulher, uma prostituta, Eastwood escolhe cuidadosamente o que mostrar e o que sugerir, no enquadramento das fissuras na passagem abrupta da infância para a idade adulta, deixa-nos à porta do quarto, exclui planos que induzam qualquer resquício de depravação ou voyeurismo, substituídos pela ternura de uma mulher na apresentação do centro do mundo a Whit.
So I lost my woman and you lost your man,
And who knows who’s right or who’s wrong,
But I’ve got my guitar and I’ve got a plan,
Throw your arms ‘round this honkytonk man!
Red partilha memórias de amores passados, pensões baratas, bebedeiras e separações, histórias de vida de um cantor country, das quais sobraram apenas as perdas e os fracassos. Ao correr do tempo e da paisagem, a transmissão cumpre-se, o rapaz já dissera não querer entregar a vida ao algodão (ou reduzir-se a um par de mãos num pomar da Califórnia), e a expansão do seu mundo começa com a primeira letra, um mundo perfeito, que no exercício da empatia Red musicará no fim do itinerário, para que em breve possa o rapaz cantá-la, quando a sua voz mudar: um cantor de bordéis, paixões que substituem desilusões, ironia a temperar amores efémeros, vivências soltas de sentenças morais. A escolha de Kyle e Clint Eastwood para os personagens intensifica a viagem iniciática, um dentro e fora, como quando pontualmente Red lida com armas e os seus esgares e a nossa memória nos leva até aos seus personagens anteriores, amorais e carregados com o remorso da violência; ou quando o filho Kyle liberta Eastwood da prisão depois de colher uma ideia de um cartaz de um filme de Buck Jones, aventureiro do mudo, que sabemos ser uma das influências maiores na educação sentimental do cineasta.

Quando Whit aparca em Memphis, no início do fim da jornada, encontra Red e o seu chapéu de cowboy ao piano, num palco partilhado com músicos e uma assistência que emprega as suas melhores roupas: ele é o único caucasiano, numa atmosfera de blues festivo, dionisíaco, alimentado pelo vozeirão de uma cantora, de rosto coberto de suor quente. A música como um cerimonial de encontro, entre músicos e no diálogo com o público, uma reunião de culturas, como exemplificamos na dança, na colecção de vinis de outlaw country partilhada por Costner e pela idosa negra em A Perfect World: é o mesmo Eastwood que encontramos numa das partes da série The Blues (2003), produzida por Scorsese, em que dividia o banco do piano com alguns dos músicos vivos de blues que mais o influenciaram, num episódio intitulado Piano Blues. É, então, Eastwood, dedicado à memória, a cuidar de memórias individuais e colectivas: no fim do concerto, a cantora pergunta-lhe – Red Stovall, quando é que vais apanhar sol para teres alguma cor? -; resposta pronta dele – talvez tenha de pôr graxa, como daquela vez em Baton Rouge (cidade do extremo sul dos EUA).

Red Stovall irá extinguir-se enquanto canta, um último sopro, de memórias em forma de canções, captadas pelos produtores como quem acede a uma matéria mágica. O canto sai num misto de dor, de obsessão de registar (várias vezes se enquadra o processo de gravação sobre o vinil), mas também de uma fúria expelida, até que um ataque de tosse empurra o cantor de bordel para a escuridão. Apesar de serem momentos dolorosos para o espectador, o apagamento de Eastwood dispensa a compaixão e a autocomiseração do seu protagonista, numa secura e um apaziguamento que talvez sejam os derradeiros ensinamentos entregues a Kyle, o adolescente que, entretanto, dentro e fora de Hollywood, o viu tornar-se músico, baixista de jazz.

Permitir que as tentações da vida desencaminhem um talento, desperdiçá-lo como um crime, podia balizar este Honkytonk Man: é, também, uma das razões apontadas por Eastwood pelo interesse em Charlie Parker, que conduziram a Bird (Fim de um Sonho, 1988), com encontro marcado para a continuação de um mundo perfeito.