Para o Tomás e para a Sara, que me inspiraram este texto
andamos pelo mundo
experimentando a morte
(…)
a urgência de escrever
não se sabe para quem
Excerto de Cromo, de Al Berto
Quem, em 2015, teve a oportunidade de assistir, numa sala da Culturgest, à projecção de No Home Movie (2015), último filme de Chantal Akerman, sabe – ou pressente – que dessa sessão se saiu com uma escandalosa notícia: é possível experimentar a morte no cinema. A respiração que mantém as nossas funções vitais activas é, na verdade, a mesma que atravessa os corpos dos filmes que vemos. Entre estes corpos e o nosso, um ecrã assume a função vital: faz circular o mesmo ar que aprendemos desde cedo a inspirar e expirar.
O cinema é uma máquina de ventilação como outras ligadas à nossa vida. Máquinas que nos entubam e pelas quais inspiramos o ar que possamos ter em falta. Poemas, filmes, músicas, enfim, ideias, imagens e gestos nos mais variados suportes, estão na origem da eterna reciclagem do ar que vamos colhendo e devolvendo. Seria ignorância esquecermo-nos da lei da reciprocidade que subjaz a este processo: esse ar que respiramos é tão essencial aos nossos impulsos vitais como aos corpos – as obras – às quais nos ligamos através das máquinas de ventilação que lhes dão suporte respiratório. Sabemos bem: por vezes, é tal a intensidade da paixão, que nos esquecemos da existência dessa máquina entre nós e as obras, ao ponto de confundirmos a entubação artificial com um beijo intenso – um contacto directo com as coisas em si, como se o aparato da máquina de mediação se desmaterializasse.
Voltemos ao filme (ou melhor, a essa sessão). Quem o viu nesse dia sabia que os gestos presenciados eram – e ainda são – indissociáveis do suicídio da sua realizadora, poucos meses antes. Mas estávamos longe de imaginar que ao anúncio dessa morte contígua à obra se somaria, no final da sessão, algures entre o silêncio dos créditos finais e o repentino acender de luzes, uma das mais dolorosas expirações de ar sustido. Não será mera figura de estilo dizer que, antes mesmo do final, nos faltou o ar, deu-se uma espécie de suspensão momentânea da corrente de circulação natural. Algo entre o corpo fílmico e o corpo do espectador se susteve perigosamente por breves minutos, porque se tornara óbvio, nos últimos instantes do filme, que já não havia no ecrã qualquer vislumbre de vitalidade cinematográfica.
Rever a bio-filmografia de Chantal Akerman – que tantas vezes com o seu ar nos salvou – à luz de No Home Movie, caindo na habitual tentação de o reduzir a uma despedida anunciada é um exercício compreensível, mas insuficiente. É presumível que o fim do cinema enquanto possibilidade de existência de um cineasta – isto é, o fim de uma vontade de filmar – possa motivar uma consequente asfixia insuportável na vida em si mesma. Mas esta é uma associação insuficiente, pois o que está em jogo neste filme é muito mais do que um escolho biográfico. O assunto é outro: quem presenciar em comunhão No Home Movie terá sempre a rara (e difícil) experiência de, no seu último enquadramento, estar frente a frente com o olhar da Medusa, isto é, sem a obliquidade protectora do escudo de Perseu. Perante esse olhar directo, petrificamos. Esta imagem é tanto menos metafórica e tanto mais séria quanto é a hipótese de o cinema, cessando funções, deixar de estar no meio (entre nós e o mundo, entre nós e o filme), para cumprir a sua função: ventilar o ar. As imagens, descobrimos nós, podem perfeitamente ser um espaço de perigosa experimentação da morte. Se o filme não acabasse, ao fim daqueles quase dois minutos de dolorosa duração, sufocaríamos em conjunto.
Importa esclarecer que, se é do do plano final de No Home Movie que irei aqui falar, não é porque com essa fala pretenda estabelecer mais uma correspondência entre a sua imagem derradeira e a tragédia biográfica que o transcende. Pelo contrário, se há um resgate (uma reanimação) a fazer, é justamente porque talvez poucas vezes no cinema a morte tenha sido um assunto tão seriamente materializado. Que a vida possa subitamente cessar, já o sabíamos; mas a novidade de que um corpo fílmico possa morrer à nossa frente por falta de ar, eis a mais grave notícia para quem com o cinema aprendeu a respirar.
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Façamos um breve desvio com resumo e contextualização de No Home Movie. Peço de empréstimo as justas palavras de um velho Mestre:
“No Home Movie é, em boa parte, um ensaio documental sobre o último ano de vida da mãe da realizadora, Natalia, judia polaca sobrevivente de Auschwitz, refugiada em Bruxelas há mais de 60 anos (morreu em 2014), e sobre a família perseguida pelos nazis. (…) Mas, no filme, a memória da mãe está a esboroar-se, já não exprime uma história de vida coerente, antes evoca fragmentos do passado… Esse esboroamento, e o que sobra da forma de habitar o apartamento de Bruxelas pela mãe, são um tema central de No Home Movie.
Chantal interrompe recorrentemente o filme com imagens do deserto do Neguev (em Israel), gravadas a partir de um carro que se desloca velozmente. Essas imagens de uma paisagem desolada e fugitiva — literalmente digressões não narrativas — são, para mim, a metáfora do que resta da memória de Natalia, da família, da saga judaica, de gerações de perseguidos, da terra prometida e talvez da memória da própria realizadora, que pouco depois pôs termo à vida. O Neguev, presente desde o muito longo plano de abertura (quatro minutos de câmara fixa sobre uma árvore batida pelo vento), é o vazio para onde é coado tudo aquilo a que o filme alude mas já só de modo ocasional. Ou, mais brutalmente, é o terminus caótico de uma enxurrada de anamneses que já não é possível articular.” (Mendes, 2018, pp. 258-259)
Continuemos nós. À beira do final do filme, é possível inferir a morte da mãe da realizadora, através de três paisagens neste mesmo deserto de Neguev – as tais “digressões não narrativas” – que simbolizam o seu lento desaparecimento. Mais que belos planos, são planos justos, que dão a ver o corpo de Natalia continuado no da natureza e, como tal, também ele condenado ao esquecimento. O que se sente nessas justas paisagens está no centro do campo conceptual no qual se sustenta toda a obra de Chantal – esse em que se assiste à polarização dinâmica entre o testemunho e a impassibilidade, a memória e o esquecimento, o interior e exterior, o aqui e o alhures, o indivíduo e a comunidade, o efémero e o histórico, o aprisionamento e a libertação, a diferença e a repetição, o estático e o extático, o espaço e o tempo, enfim, gestos e hesitações que se consubstanciam em imagens de sublime quotidianidade.
Embora estes quadros vivos já não nos falem de árvores que resistem ao vento, como no enquadramento inicial de 4 minutos, mas apenas de cabos de electricidade abandonados (vestígios de uma comunicabilidade perdida), de montanhas ruinosas (contornos semelhantes ao do corpo de uma mulher desnudada) ou de uma civilização longínqua, a léguas de um enorme prado verdejante, e apesar da metafórica escuridão que sobre eles tomba – tal como no portentoso Tombée de nuit sur Shanghai (2007) –, é de vitalidade cinematográfica que tais enquadramentos nos falam, espécie de traduções “[d]o vento invisível pela água que ele esculpe ao passar” (Bresson, 2000).
Foram essas as últimas imagens vivas de Akerman: testemunhos cinematográficos, não só simbólicos da morte da sua mãe, mas também da réstia de ar – neste caso, de vento – que atravessa em surdina este e os seus melhores filmes. (Não é por acaso, aliás, que o referido primeiro enquadramento de quatro minutos de No Home Movie, no qual uma árvore resiste à furiosa ventania do deserto, talvez seja menos o símbolo de uma memória que resiste ao inevitável apagamento e mais o indício de uma imprescindível longa inspiração do ar necessário ao mergulho no escuro que se lhe seguirá). São paisagens que se assemelham a um testemunho vital.
No penúltimo enquadramento do filme, agora de volta à casa da mãe, em Bruxelas, vemos a realizadora na pele de narradora/ protagonista (sabemos que o universo diegético de Akerman sempre foi o da auto-representação) encerrando com últimos gestos o “palco” narrativo deste (no) home movie: calça os sapatos, faz a cama, fecha as cortinas do seu quarto e sai de cena, deixando a câmara para trás, no meio do negrume. Depois de um filme repleto de vida pulsante, ficamos nós, espectadores, e a máquina de filmar, a sós.
O plano que se segue, na forma de um epílogo não anunciado, é uma imagem sem vida – uma natureza morta, no sentido mais absoluto do termo. Um estranho espaço que pela primeira vez presenciei: uma antecâmara da morte (da vida e do cinema).
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Se o que doravante nos interessa é pensar essa antecâmara espacial, não é porque – repetimo-lo – nos interesse a dimensão da sua relação com uma despedida implícita que veio a transcender o corpo do próprio filme. O que nos interessa passa-se ainda no próprio ecrã, no seu “coração do coração” (Bresson, novamente), isto é, no plano da pura imanência.
O que vemos no último plano, a partir da sala de estar, não é mais do que um cenário principal desabitado, como que abandonado, durante quase dois minutos de duração. Se é certo que este lugar da casa serve de contra-campo aos primeiros momentos, este mesmo cenário em que Natalia entrara em cena destaca-se agora por, de forma muito evidente, ressignificar por completo o título. No Home Movie não é somente uma nota de intenção estética: é o prenúncio de um filme (que fica) sem casa.
Se já sabemos (porque o intuímos) da morte de Natalia nos planos anteriores, então, neste último momento, a frontalidade estática do enquadramento e os sons de uma ensurdecedora quotidianidade fazem muito mais do que reforçar a ausência humana. Perdemos de vista a comunicação de uma comunicabilidade, essa essência medial do gesto cinematográfico. Por outras palavras, assistimos à perda de sentido da própria câmara de filmar, pois esta tornou-se absolutamente estranha à estrutura cinematográfica do lugar. Mais grave: perdeu a capacidade de “levar a imagem de volta à terra-pátria do gesto”, essa que cabe aos maiores cineastas (Agamben, 2000).
Trata-se, como tal, de um enquadramento paradoxal, que aparece como que desligado do fluxo fílmico que compõe o tecido dramático do filme – e de toda a filmografia que o precede. É como se a câmara de filmar nos desse acesso apenas à materialidade e à finitude de todas as coisas tal como são. O universo que habitou esta casa (e além dela) parece ter desaparecido por completo. Olhamos e escutamos estes últimos objectos com a mesma inquietante estranheza com que nos funerais perscrutamos os cadáveres daqueles que amámos, em busca de uma qualquer centelha de vida num corpo sem alma.
Esse enquadramento evoca um olhar puramente maquinal. Já não há olhar humano por trás. Estamos longe do problema essencial de toda a busca cinematográfica, tal como Bresson o pôs: “Problema. Fazer ver o que vês, por intermédio de uma máquina que não o vê como tu vês (e fazer ouvir o que ouves por intermédio de uma outra máquina que não ouve como tu ouves)”. Na verdade, neste último enquadramento, nem mesmo os outros quadros no seu interior (as pinturas, a fotografia de família e as ombreiras de porta de outros cenários principais) redimem a automatização total do olhar. Assistimos ao olhar puramente mecânico que serializa o tempo – a morte a 24 frames por segundo, como no belo título de Laura Mulvey –, embora aqui sem o vislumbre evidente (mas só evidente, como veremos) de um qualquer gesto decisivo que dance com essa mecanicidade, impondo-lhe vitalidade.
Eis uma natureza morta no seu estado mais aterrorizante e inverosímil: a ausência de movimento, de fluxo, de vida. Uma casa negra por onde deixou de passar o ar. No último enquadramento de No Home Movie, o ecrã deixa de funcionar como conduta de ventilação. O ecrã demoníaco perde a sua obliquidade, esse ângulo que é necessário à revitalização cinematográfica do quotidiano. Eis, então, um cinema directo no seu esplendor: um cinema tão frontal como o próprio enquadramento, num tempo real que coincide com o tempo directo da morte – a absoluta e petrificante transparência. Para sermos exactos, não será uma imagem da morte, mas uma imagem morta – a ausência absoluta de vida. Trata-se de uma arritmia, uma paragem cardíaca. É a imagem da cessação vital. Já não há nada para testemunhar. É um silêncio sem linguagem, um emudecimento total e não produtivo, um olhar sem interlocução possível. A Medusa olha-nos de frente. O cinema, esse escudo mediador, deixa de estar presente – sai da frente. Se o filme não acabasse ao fim daqueles quase dois minutos de dolorosa duração, sufocaríamos por completo.
Haverá algo mais assustador que uma casa sem vida (e cinema) no seu interior, onde o ar (e o tempo) deixa(m) de correr?
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Aparentemente, o mais assustador é não existir neste último lugar o que sempre houve nos espaços da obra de Akerman: absoluta tensão. Aqui trata-se, pelo contrário, de um plano cru de materialidade rasa e dura.
O corpo fílmico já não respira, é certo. Mas sabemos bem que, enquanto não chegarem os créditos finais, o sangue ainda corre no seu interior (tal como quando ouvimos dizer nas notícias, impávidos, que uma pessoa ainda viva e ligada à máquina, em “estado muito reservado”, esteve quarenta minutos à espera da ambulância sem respirar…). Mesmo que o ponto de vista da máquina de filmar coincida com o de uma morte que nos olha de volta na sua sórdida indiferença, nem por isso estamos longe da possibilidade de movimento. Por outras palavras: mesmo não havendo a obliquidade do escudo de Perseu, ainda temos a capacidade de nos esquivar. Se olhamos, ainda vivemos – eis o que caracteriza todo um gesto testemunhal que a muitos historiadores do dito “cinema observacional” escapa. Falo da inevitável intervenção activa sobre o que olhamos (por exemplo, desviando o olhar). Afinal, o movimento não está na imagem, mas no observador, como apontado no famoso ditado Zen: “Nem o vento, nem a bandeira, a mente move-se”.
Fotograma a fotograma, sob a égide de uma atenção ardente, agarramo-nos então a uma improvável hipótese, perscrutando na marca d’água akermanina reduzida à sua essência: o domínio minucioso e cruel da durée. Talvez haja no plano final, então, mais do que uma simples demissão da função de cineasta ou uma mera despedida descrente. Talvez nos seja possível vislumbrar um apelo (e um grito) silencioso – espécie de carta entre tantas sem destinatário assinalado, mas, em todo o caso, uma carta enviada.
Primeira suspeita: a “quase” arbitrariedade da duração deste último plano – obviamente decidida na montagem e, como tal, último indício de um apelo que nos é dirigido na filmografia monumental de Akerman – é coextensível ao seu silêncio “quase” total. Estes “quases” são decisivos, pois, por um lado, nem as sonoridades ao redor são totalmente mortíferas (apesar de esvaziadas de desejo e bem longe de um “pianismo dos ruídos” bressoniano que sempre encontrou o seu expoente máximo na gestualidade da obra akermaniana), nem, por outro lado, a duração parece ser totalmente arbitrária, visto vislumbrar-se nela, a certa altura, uma pequena aura de intencionalidade (lá iremos).
Recapitulando, à superfície, a duração parece ser o que é: uma cordial despedida, no limite do suportável (dois minutos conscientes, mas sem respirar, é tempo demais…), num espaço esvaziado de vida. À superfície, os sons que ouvimos são o que parecem ser: meros índices sonoros materializantes (os estalidos da mobília envelhecida, o chilrear dos pássaros ao longe, os sons do trânsito no exterior, que não passam, no fundo, de um registo numérico nos códigos de gravação em tempo real da câmara digital). O que se escuta é semelhante ao cliché de mortes no cinema e séries de televisão: o som atonal de uma linha contínua que anuncia uma paragem cardiorrespiratória definitiva num qualquer monitor de sinais vitais.
Segunda suspeita: é possível denotar algo mais, breves suspiros e leves respirações atrás da câmara, como se alguém hesitasse em fazer-se notar. Que presença fantasmática é esta, a de alguém que parece já não querer nada ter a ver com o filme que lhe serviu de pele até ali? Em profundidade, também o enquadramento dura tempo demais para que nele possamos procurar uma qualquer chama de ignição.
É justamente na confluência destas duas hesitações – misteriosos sons de uma presença invisível e uma estranha duração – que brota, a meio do plano, uma espécie de sinal cardíaco vital: um vislumbre do possível, uma razão mais que suficiente para voltar a arregalar os olhos perante uma inacreditável (mas aparente) ressuscitação em directo do corpo fílmico cuja morte presenciamos. Em suma, na aparente duração e indiferença maquinal deste último enquadramento reside muito mais que um momento contemplativo. Reside, talvez, um apelo. É aqui que uma fotogramática redentora, uma “mutação que pode levar a uma reviravolta completa dos valores” (Barthes, 2009), pode entrar em acção.
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À boa maneira de um eterno retorno nietzschiano, cada vez que revejo este momento encontro um corpo a pedir – a gritar – para ser notado. A resposta possível a este apelo (ir)respondível é: rebobinar e experimentar tudo de novo, na crença de que sentiremos a duração das coisas de forma diferente, pois ninguém vê o mesmo filme duas vezes.
Se os filmes que amamos deixam de nos falar, não deixa de ser possível falarmos-lhes de volta. Se toda a arte nos lança uma pergunta sem exigir uma resposta, não deixa de ser feio ficar sem reagir ao apelo que nos foi lançado. Trata-se de um elementar gesto de gratidão: é preciso devolver aos filmes, em nome do cinema que têm dentro de si, o ar que nos deram a respirar.
Os fotogramas são a fonte de ignição eléctrica que pode espoletar uma cardioversão no corpo fílmico. A nossa hipótese assenta num fotograma potencialmente reanimador. Um fotograma necessariamente extraível desse último asfixiante enquadramento, no qual, como referimos, podemos encontrar o vestígio subtil de um gesto hesitante. É este o fotograma:
Ao rever este último plano sucessivas vezes, frame a frame, apercebi-me de algo diferente: um súbito e quase imperceptível falso raccord – um corte na continuidade – que é possível notar devido a uma ligeira mudança de luz, acompanhada de um pequeno ruído sonoro, ao qual se segue um suspiro pesado. Perante esta minúscula e escandalosa protuberância do corpo fílmico (corte desnecessário tanto quanto as novas tecnologias digitais na fase de edição o permitiriam esconder), que parece existir para aproximar à força o suspiro que se lhe segue, lembramo-nos de uma “troca desigual” de que nos falou Serge Daney (se bem que a propósito de outro cineasta e de preocupações completamente diferentes): “Para melhor evidenciar o carácter incontornável da troca desigual, há que primeiro evidenciar os dois pólos da troca, ou seja, é preciso evidenciar o corpo do cineasta” (Daney, 2015, p. 128).
É justamente o corpo da cineasta que, primeiro, se evidencia como uma sombra reflectida num objecto (a ânfora ao centro do plano) e, logo depois, através de um audível último suspiro. Durante breves segundos após este salto temporal, algo se mexe (e respira) na imagem. Não penso que se trate somente de índices sonoros de uma presença indiferente à câmara de filmar, nem de analogias simbólicas com um corpo tornado fantasma, mas, sim, de uma sombra anódina e perturbadora que convoca o nosso olhar para uma qualquer produção de sentido – um terceiro sentido que está para lá do movimento “fílmico”, diria Barthes. Trata-se, portanto, de uma dúvida induzida através da coexistência de uma imperfeição (des)necessária com o vislumbre de um reflexo involuntário.
O corte, ainda antes do reflexo, denuncia a presença de um corpo. Nesse sentido, entrevemos um auto-retrato: a (auto)representação de um corpo que espera ser notado por via do gesto mobilizado na montagem. Por outras palavras: o corte mobiliza subtilmente o nosso olhar, desviando-o da morte para outro assunto que brota de uma ferida na imagem – aqui, num sentido literal, visto que o falso raccord é literalmente um corte na superfície polida da imagem.
Tal corte produz uma incerteza da visão, um impasse no limiar da visibilidade. Espécie de micro-dissociação cognitiva, dá-nos a possibilidade de sentirmos – e porventura pensarmos – o fluxo da morte como algo interrompível pela vida. A hipótese é que o corte que nos lança numa fugaz sequência de fotogramas, nos quais aparece aquela pequena sombra na parte debaixo da ânfora, manifesta um vislumbre da “vida a engravidar a morte” – palavras que tiro a Tomás Maia (2020). Reconhecer essa sombra, é reconhecer a possibilidade de uma presença que, qual Eros (na acepção platónica), é a condição para todo o desejo de aproximação: uma atracção metafísica, um desvelamento do que está oculto, uma aproximação do que é distante.
Mais que um plano final, este parecia ser um plano demitido de valor de articulação com um antes e um depois, exonerado da sua dinâmica e relatividade num todo – o seu carácter ventilador. Daí só poder seguir-se-lhe o negro absoluto, porque fechado. Mas o vislumbre de um inesperado corte revela espaço (e tempo) para uma dúvida… E a mais pequena dúvida, sabemo-lo, é o suficiente para nos relançar no aberto. Eis o cinema: um ar que invade os filmes para mobilizar o olhar, uma forma de fazer embarcar o olhar no movimento e no tempo desses filmes. Face ao que de petrificante abundava neste último plano – a inexistência, até então, de vestígios de mobilização (não confundir com o movimento, pois esse, sabemo-lo, há sempre) –, algo se reanima.
Levemos a hipótese adiante. Aquele corte fotogramático é mais que uma ferida, é uma fragilidade em nome do inacabamento criativo ou da presença da consciência do cinema nos mais importantes filmes. O que essa ferida aberta no corpo do filme nos diz é que este diferendo entre o corpo fílmico e o ar que nele se respira, se pensado de forma rizomática e não linear, está também (sempre esteve e continuará a estar) por todo o universo de Chantal Akerman: o ligeiro abanão da câmara no maquinal plano final de Hotel Monterey (1972); a voz inaudível sob o ruído da cidade em News from Home (1977); as estranhas (mas determinantes) elipses visuais em Jeanne Dielman… (1975); as hesitantes durações em D’Est (1993); as dúvidas éticas de Là-bas (2006). É uma ferida sintomática da fragilidade do corpo bio-filmográfico de que faz parte, ao longo do qual notamos uma mágoa imensa e uma permanente tensão entre os encontros com outros e a dissolução lenta de uma identidade sem casa, como numa mancha de sangue que não cessa de alastrar mundo fora. Como tal, No Home Movie não pode ser uma despedida, pois até no seu derradeiro suspiro há margem para o elemento de toda a experimentação cinematográfica: a resoluta incerteza do gesto.
Pôr este fotograma (o primeiro no plano final em que se denota uma incerta presença do corpo) em perspectiva, é dar a ver aquilo que torna frágil este filme e, por inerência, qualquer filme. É reconhecer que o cinema que os filmes respiram lhes escapa e foge, mas que também os invade subitamente. A sua condição respirante é dupla: fragilidade e salvação – ou, “tirando” de novo palavras a Tomás Maia, “a vida-e-a-morte numa invariante suspensão”.
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Tenho tatuado na memória este plano final como a mais violenta paragem cardíaca no cinema – não porque deseje ver nela uma qualquer ideia romântica, mas para me lembrar que o cinema é o seu exacto oposto: uma respiração extática, um sopro vital, um gesto vivo diante da câmara de filmar – o cinema é o registo audiovisual do teatro, sabia-o Manoel de Oliveira.
Se o corte (in)visível que permite a indução de ar é uma hipótese real, então a abertura de uma ferida ficou lá. Desse gesto mínimo, quase imperceptível mas suficiente, surge um convite para nos inclinarmos sobre as imagens com o nosso corpo, como se de uma respiração boca a boca se tratasse, e assim reanimar em tom de gratidão o que nelas pareça estar morto. Voltar atrás, ver do início, ver de novo; pôr as imagens em movimento, pará-las, movê-las nós próprios (com a força da imaginação, se necessário), na certeza de que algo de acidental e contingente acontecerá sempre, como se fosse pela primeira vez. Não haverá morte do cinema enquanto não deixar de haver im-pulsos – isto é, pulsações induzidas – para o reanimar.
Seja em ambientes de ar condicionado, seja face à morte em directo de um corpo fílmico, o cinema que até nos mais herméticos filmes se respira pode ser ventilado pelo olhar pulsante do espectador. Voltamos, pela via desta cardioversão testemunhal, à estaca zero das aventuras cinematográficas – como naquela anunciada em Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941), que começa com a ultrapassagem de um sinal de passagem proibida. Perante esse sinal, mesmo que a mais descrente das cineastas nos diga que já não tem nada para mostrar, podemos (devemos) invadir a propriedade privada e responder-lhe que está ainda tudo para ver. Devemos-lhe essa devolução de ar.
Se há possibilidade de movimento, não é porque algo no interior da máquina de filmar se mexa. É preciso entrar nela, abrir as janelas e deixar que o ar natural volte a circular entre o interior e o seu exterior. O cinema é a máquina de ventilação que promove essa corrente de ar dinâmica, que a nós vem e de nós volta a sair – uma reciprocidade respirante, um diálogo em diferido, uma correspondência assimétrica no tempo. Neste sentido, o espectador é um (a)tirador: retira dos filmes o mesmo ar que lhes atira de volta, por via da máquina de ventilação cinematográfica que os liga.
A beleza desta sequência de fotogramas redentores em No Home Movie reside na circunstância de, se escolhermos um só (como aquele que aqui trouxe), ser impossível vislumbrar a hipótese de que falei (e que até talvez tenha inventado). O que significa que o trabalho de escrita sobre os fragmentos pressupõe um preenchimento, uma gestualização do olhar, uma impressão de movimento, uma indução de ar – no limite, beijar a imagem. A inclinação sobre os fotogramas resgata os corpos fílmicos da sua própria morte, entregando ao leitor a responsabilidade da mobilização do olhar. Os textos – e, com eles, os fotogramas – não deixam o sangue estancar, para que no corpo fílmico o ar possa voltar a circular mais tarde.
Voltemos então aos fragmentos do cinema por onde entra sempre uma corrente de ar: aqueles onde, mesmo no meio da escuridão, encontramos apelo a um diálogo luminoso por cumprir. Escuta, diz-nos o filme através do diferimento do tempo, ficou tudo por falar entre nós. Como no cinema de Chantal Akerman, “a urgência de escrever/ não se sabe para quem”.
Pedro Florêncio
Professor, realizador e investigador na área do cinema.
Bibliografia:
Agamben, Giorgio (2000). Notes on Gesture. In Means without End – Notes on Politics. Minneapolis / London: University of Minnesota Press.
Barthes, Roland (2009). O Óbvio e o Obtuso. Lisboa: Edições 70.
Bresson, Robert (2000). Notas sobre o Cinematógrafo. Porto: Porto Editora.
Daney, Serge (2015). O Cinema que faz Escrever – Textos Críticos. Coimbra: Angelus Novus.
Maia, Tomás (2020). Milagre (três diálogos para Paulo Morais a propósito de Invariante uma suspensão – água que arrasta o casulo-mortalha). Texto obtido em: Lisboa: Faculdade de Belas-Artes.
Mendes, João Maria (2018). Sentidos Figurados: Cinema, Imagem, Simulacro, Narrativa – vol. I. Amadora: ESTC Edições.