1.
O Amascultura, também conhecido por Malaposta, foi um festival dedicado ao documentário, que teve como seu fundador e grande entusiasta Manuel Costa e Silva. Este festival internacional de cinema documental contou com 12 edições, de 1990 a 2001 e antecede o DocLisboa cuja primeira edição data de 2002. Manuel Costa e Silva falece em janeiro de 1999 tendo Luís Correia assumido a direção do Amascultura nesses últimos três anos e, a seguir, foi o primeiro diretor do DocLisboa.
Na Malaposta decorriam grande parte das sessões do festival, mas também as havia noutros locais, como na Amadora. Foi numa sessão na Amadora (o local certo já não consigo precisar e o ano seria 1992 ou 1993) que assisti à projeção de Jaime (1974), de António Reis. Esta projeção não durou apenas o tempo da sessão prolongou-se durante o percurso que fiz a pé até uma casa, mais ou menos por ali perto. Que o cinema mostrasse coisas que mexem já o sabia, era o óbvio. Aliás foi assim que se apresentou ao mundo com os operários a sair, o comboio a chegar, o mar em agitação… Que o cinema revelasse o movimento das coisas que não mexem, apenas o sabia de ouvir dizer, nunca o tinha sentido. Com Jaime percebi a mobilidade das imagens do cinema. Inicialmente, uma estranha mobilidade, fruto da mente atormentada de Jaime de cujos desenhos emanava uma angustiante mobilidade que, pela primeira vez, via filmada. Depois, aos poucos, fui assumindo que as imagens de cinema possuem sempre uma mobilidade intermitente, que cintila a todo o momento, mesmo quando no ecrã estão coisas que não se mexem, mesmo quando no ecrã o fotograma se apresenta fixo (em freeze, congelado), suspenso no tempo. E mesmo quando no ecrã estão coisas que se mexem, há sempre uma outra camada de mobilidade sobre esses movimentos visíveis. A mobilidade está constantemente presente porque há um movimento de cada objeto ou pessoa, que apenas o olho da câmara consegue ver. Nada no universo é imóvel, mas apenas o cinema tem a capacidade de dar a ver essa mobilidade (e aqui sigo, obviamente, o conceito de fotogenia usado por Louis Delluc e recuperado por Jean Epstein, assim como o cine-olho de Vertov).
No festival Amascultura, para além dos filmes a que assisti, também passava algum tempo a ler o catálogo de cada edição. Lia as sinopses dos filmes cuja exibição tinha perdido e a dos que ia ver a seguir. Tinha que decidir em que local iria assistir às exibições e a sinopse ajudava a tomar essa decisão, transmitia a aproximação do filme ao real.
Dessas leituras ficou-me uma palavra que associo a todos esses catálogos: acompanhar. Este verbo surgia muitas e muitas vezes (não fiz uma estatística, esta é uma daquelas certezas que pode estar factualmente errada). Se não estivesse textualmente escrito “acompanhar”, lia palavras e expressões que, de um modo ou de outro, acabavam por ir parar a esse verbo, como dia a dia ou quotidiano. Os filmes eram todos documentários e as sinopses manifestavam a relação entre quem filmou e quem foi filmado, através de palavras que denunciavam uma câmara a movimentar-se no espaço, a acompanhar o dia a dia, o quotidiano de pessoas tão diversas quanto uma senhora num país bem distante, homens portugueses no interior norte do país, ou um grupo de rapazes num bairro nos arredores de Lisboa. Estar com as pessoas, acompanhá-las, andar atrás delas ou ao lado delas, com uma câmara em que as mudanças bruscas de iluminação, que numa qualquer ficção seriam um erro a corrigir, eram aqui celebradas. Essa falha na imagem era largamente compensada ou pelo diálogo, ou pelo som de passos de maior ou menor pressa, ou mesmo pelo necessário e justificado silêncio, que muitas vezes se partilha com o Outro.
Na minha experiência no festival Amascultura fez-se perceber a escolha deste fotograma que acompanha este texto e a necessidade deste texto acompanhar este fotograma do filme Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz. A começar pelo título que seduz pela constante mobilidade. Uma mobilidade física de deslocação no espaço, mas quantas viagens não podem ser feitas, sem sair do lugar, antes de regressarmos para junto de quem amamos?
2.
O percurso que fiz até chegar a este fotograma liga-se com a experiência que me ficou do Amascultura a partir de onde uma intermitente mobilidade das imagens do cinema me afastam da relação próxima entre fotografia e fotograma. Conta-se que na primeira sessão pública de cinema, os irmãos Lumière tinham uma primeira imagem, um fotograma, visível no ecrã e quando a sessão começou, começou também o movimento. A partir desse momento, o cinema afastou-se da fotografia, deu-se início a uma imagem de outra natureza, ao fotograma, que suporta o movimento das coisas que mexem e o próprio movimento das coisas. A fotografia eterniza, capta a essência de cada ser, como nos retratos e está mais próxima da escultura que do cinema. Aqui, neste fotograma, a matéria nada tem a ver com a escultura, está a ponto de se desvanecer. Não pretendo estabelecer com rigor uma distinção entre fotograma e fotografia, mas uma visão em que pode um fotograma aproximar-se do poder e energia centrípeta da fotografia e uma fotografia da fragilidade e energia centrifuga do fotograma.
Este fotograma que acabou por vencer a indecisão suspende um movimento e, em simultâneo, possui uma mobilidade sempre iminente. Outros fotogramas que estiveram para acompanhar este texto não lhe são distantes.
Inicialmente, o fotograma que, imediatamente, me surgiu para este texto foi do filme Calabria (2016), de Pierre-François Sauter. Um dos vários momentos de uma viagem em que dois homens se vão revezando a conduzir uma carrinha funerária. Entre um homem e outro, um espaço escuro na parte de trás da carrinha, uma presença que não se vê, um homem imigrante que morreu na Suíça, e que agora é levado a Calabria, Itália, a sua terra natal. A viagem é longa, dá para os dois homens se conhecerem um pouco melhor e falarem sobre a vida. De um lado, um português imigrante na Suíça, que acredita na morte, mas não na ressurreição. Do outro, um músico sérvio que tendo ido tocar para um hotel na Suíça acabou por ficar por amor. Numa só imagem, os rostos destes homens, o homem morto lá atrás e a estrada que o espectador não vê. É um plano próximo que não dá aquilo que supostamente o plano aproximado oferece, a possibilidade do espectador ver melhor, porque está mais próximo. Um engano, as personagens veem muito mais que o espectador e espaços que parecem de ausência, mas com uma presença.
Mas, talvez a primeira escolha não seja a melhor escolha e surgiram outras possibilidades. Um clássico é sempre boa escolha. Talvez Stagecoach (A cavalgada heróica, 1939), de John Ford. O fotograma seria um momento dentro da carruagem, onde viajam um fora da lei, uma prostituta, um médico bêbado, a mulher de um oficial, um jogador e já não sei quem mais. Talvez não, melhor que seja um filme mais moderno na sua narrativa. Cosmopolis (2012), de David Cronenberg, no qual um jovem milionário, dentro da sua limusine, que usa como escritório pode, num só gesto e a qualquer momento, fazer colapsar toda a economia a seu favor. Mas a este filme chamam-lhe ficção… Melhor que seja um documentário. A Dama de Chandor (1998), de Catarina Mourão, um filme de um momento especial na história do documentário português, os anos 90. A câmara acompanha D. Aida dentro de um carro. Sentada no banco de trás, o seu rosto sereno e desencantado tem como pano de fundo, pela janela, uma paisagem que passa e que contrasta com a sua quase imobilidade.
Mas há mais fotogramas que filmes. Facilmente encontraria outro para tentar garantir a melhor seleção por entre várias possibilidades (a bem dizer, essas possibilidades não são assim tão distantes umas das outras). Recomecei a escolha com Bir Zamanlar Anadolu’da (Era uma vez na Anatolia, 2011), de Nuri Bilge Ceylan. Numa noite, três carros com vários polícias, um médico, um advogado e dois irmãos suspeitos de homicídio, percorrem os arredores de uma vila, à procura do corpo da vítima. Falam sobre tudo, desde iogurte de búfala a morte, suicídio, mulheres e ex-mulheres. Regressemos aos clássicos, Splendor in the grass (Esplendor na relva, 1961), do grande Elia Kazan. Depois de visitar Bud (Warren Beatty), o seu amor perdido, Denie (Natalie Wood) entra num carro e uma amiga pergunta-lhe: “achas que ele ainda te ama?” Ela não responde. E, finalmente, Smultronstället (Morangos silvestres, 1957), de Ingmar Bergman, um filme viagem, que tem como ator o inigualável cineasta Victor Sjöström. Ou então, Locke (2013), de Steven Knight, outro filme que dura toda uma viagem não apenas pelo espaço, mas também pela consciência, com uma figura fantasmagórica no bando de trás, o pai do protagonista do filme Ivan Locke (Tom Hardy), com quem vai acertando contas sobre decisões a tomar na vida.
Mas perante tanto interior de carros acabou por vingar um plano geral, aberto, mas com uma estrada, por onde passaram as carruagens e os carros dos filmes que quase foram colocados em destaque. Excluindo o interior de carros e este plano geral, só conseguiria mesmo eleger um estendal de roupa, um fotograma tão frágil e etéreo quanto os elementos que estão em campo neste fotograma. Estão de passagem, a desaparecerem-nos da vista, como a roupa que, a qualquer momento, pode desprender-se da corda.
3.
O fotograma escolhido tem muito céu, uma paisagem árida, um casal que caminha para lá, um camião vermelho que avança para cá e o calor do asfalto, que mesmo que não se veja sente-se, e parece envolver tudo. A estrada convida à deslocação, e à sua beira, pela terra batida, um casal abraçado, lado a lado, caminha num movimento harmonioso, movido pela mobilidade invisível dos sentimentos que partilha entre si. Este é um fotograma frágil, como me parecem ser todos os fotogramas, efémeros, sempre em vias de continuarem ou iniciarem um movimento que ficou suspenso no espaço e no tempo, sempre a necessitarem do suporte de um outro fotograma, sob pena de se desfazerem.
Um plano geral, aberto. Aberto a elementos que não se veem. O camião que tem alguém dentro que o conduz e o casal que está de costas para o espectador. Do seu amor, a imagem recusa a felicidade estampada no rosto, para nos dar um movimento aqui interrompido pela imobilidade da fotograma, mas de onde emana uma afável e movente comoção. O camião e o casal são elementos cujo movimento ficou suspenso no fotograma. Esta é a camada mais óbvia, mas que me parece relevante porque, ao contrário da fotografia, o fotograma suspende o movimento que a qualquer momento continua. Vejo em cada fotograma a instabilidade de um movimento que se interrompeu no tempo e no espaço. O que o fotograma dá a ver é a dimensão documental de um filme.
Sertão de acrílico azul piscina (2004) antecede Viajo porque preciso, volto porque te amo. Há imagens que se repetem nos dois filmes. Foram registadas por Marcelo Carvalho e Karim Aïnouz em Pernambuco, Paraíba, Ceará, Alagoas, Sergipe e Bahia. No primeiro, temos o olhar do viajante sobre o maior ou menor exotismo ou a identidade cultural do que é filmado, como algo exterior. Em Viajo porque preciso, volto porque te amo as mesmas imagens estão contaminadas pela desesperança de quem as olha.
Um geólogo viaja a partir de Fortaleza pelo sertão nordestino tendo por missão verificar a viabilidade da construção de um canal de águas para ligar a região do Xexéu ao Rio das Almas. É provavel que os locais por onde passa fiquem submersos, mas ele é quem se encontra submerso. A saudade e o desejo de voltar para casa, as palavras de amor-ódio que dirige à sua amada que não consegue esquecer, apesar de estar longe e de ter o trabalho como refúgio e amparo à falta de amor.
Tem por companhia canções lamechas que fazem aqui todo o sentido, com palavras ridículas (como todas as cartas de amor..), o barulho dos camiões e carros que o ultrapassam ou que com ele se cruzam e os seus próprios pensamentos. À sua volta tudo é árido. A voz deste narrador que nunca vemos, mas constantemente ouvimos, em forma de diário, diz-nos que tem vontade de voltar, mal a viagem tem início. Por entre um discurso de análise geológica e os pensamentos sobre a vida, faz a contagem decrescente dos dias para regressar para o “amor da minha vida”, a quem chama de “galega”. Muita poesia e muita poeira ao longo de todo o caminho. Vai encontrando algumas pessoas pelo caminho, mas sai um pouco da sua rota para, de facto, ver gente. Vai à Cidade dos Romeiros. Mas vê tudo como vê as paisagens, com o mesmo tom de voz, a mesma melancolia, a mesma tristeza que projeta nas imagens cheias de gente, transformadas em paisagem humana tão árida quando a esterilidade das paisagens do nordeste. Deixa uma fotografia do seu casamento na casa dos Milagres.
Quando inicia a viagem ilude-se com um regresso, mas não tem para onde voltar. Deparou-se com paisagens, gentes e locais que são um eco do abandono, solidão e desamparo que sente. Da viagem só se cansa de tentar esquecer alguém de quem constantemente fala. A dado momento, não quer que a viagem acabe nunca. Nesta viagem solitária e de solidão deixa de reparar nas rochas tectónicas e passa a olhar mais demoradamente para as pessoas e para as flores, porque a sua amada é botânica; e ele geólogo, um casamente perfeito, “todo o casamento é perfeito até que acaba”. Quase no início da sua viagem para num posto e vê uma coisa pintada na parede que quase nem reparava, a frase que dá título ao filme. E, mais adiante: “se aqui tivesse correio mandava um telegrama p’ra você, com estas palavras: viajo porque preciso vírgula volto porque te amo ponto”.
Todo o filme é, afinal, um longo plano subjetivo. Os cortes são um pestanejo.
Manuela Penafria, professora universitária da UBI (Universidade da Beira Interior).