Uma recente discussão num post de Facebook me levou a pensar novamente sobre as injustiças que cercam o entendimento do que é a crítica, de sua função e também da incompreensão que a cerca. Quase me levou a comentar alguma coisa, e juro que não seria grosseiro (os anos de fúria parecem distantes). Era mais para contribuir mesmo com a discussão (poderia me apresentar como alguém que tem um lugar de fala, mas pareceria ironia). Desconfiei que sairia textão (como falam aqui no brasil* antecipando que muitos iriam reclamar do tamanho do texto), então deixei que esse textão virasse este texto, que envio agora como minha crônica walshiana de maio, sem invadir o perfil de ninguém. Sei que problemas semelhantes acontecem em Portugal, então não corro o risco de falar exclusivamente para os leitores brasileiros deste site.
No post reclamava-se que os críticos (essa instituição uniforme e ortodoxa, com membros que vão todos juntos ao cinema e depois combinam a nota que darão aos filmes) não levam em conta os processos que envolvem a realização no cinema. Nos comentários, um festival de atrocidades de quem não tem a menor ideia do que vem a ser a crítica, alguns comentários lúcidos e ponderados, com os quais concordo em parte, e algumas confrontações mais diretas. Obviamente os lúcidos e ponderados estavam em minoria. Os que confrontavam, em ainda menor número. Pretendia citar nominalmente todas as pessoas porque o post estava público, mas por algum motivo ele foi desativado, então a discussão que ilustrava didaticamente a incompreensão que norteia a crítica vai ficar apenas na memória de quem leu.
Voltando à necessidade de se levar em conta os processos de realização dos filmes, isto me parece um caminho para que todo filme se justifique perante o crítico (…) E, convenhamos, parece também um caminho direto para aniquilar, no fundo, toda e qualquer crítica.
Há alguns anos, achava que críticos deveriam se ocupar principalmente de pesquisas atentas a textos teóricos, textos clássicos sobre a própria crítica e sobre a história da arte, além, claro, de um mergulho intenso e apaixonado em cada filme visto. Claro que a tudo isso se somaria a formação de um gosto cultivado, como queria Clement Greenberg, um gostar que soubesse buscar objetivamente o porquê de se preferir uma obra à outra, uma pintura à outra, uma cineasta à outra, um cinema em detrimento de outro, a câmera assim e não assada. O processo não interessaria ao crítico, porque ele julgaria apenas o filme pronto, tendo, no máximo, a baliza contextual, cuidando para que ela não sufocasse a análise formal.
Ainda penso assim, mas estou mais aberto a outras manifestações críticas e entendo que se alguém quiser entender os processos que levam a cada filme, tudo bem, ou se quiser pensar mais nas relações entre o filme e seu contexto histórico e social, idem. Se quiser se ocupar mais da recepção, se quiser ler os livros dos quais os filmes são adaptados, tudo bem também. Não creio que tais práticas devam ser uma obrigação dos críticos (como a análise formal, que deve estar sempre presente numa crítica). E também não creio ser possível fazer tudo isso para uma única crítica, a não ser que se escreva, digamos, uma crítica por mês, ou até menos. E aí vão reclamar que a pessoa não vê filmes, que só escreve sobre poucos, coisas do tipo. O que entendo também é que muitos reclamam da crítica sem conhecer os processos que levam uma pessoa a ser crítica: a imensa preparação necessária para não se manchar a ideia de pensar livremente o cinema e suas obras.
Deixam também de atentar para as condições e obstáculos encontrados pelo caminho da crítica. Em primeiro lugar, a pessoa precisa ser louca, porque deve ser a profissão mais desprestigiada do mundo; em segundo, precisa ser chapa branca se não quiser arrumar encrenca com ninguém. E se for chapa branca (ou seja, se falar bem de tudo para não se queimar), deixa de ser crítica e passa a ser publicitária. Infelizmente, sou do primeiro grupo. Mas o segundo grupo é muito mais numeroso, dificultando a vida dos que optaram pelo primeiro grupo. Optaram, não, pois não é questão de opção: críticos de verdade só serão capazes de pertencer ao primeiro grupo, o dos loucos.
Mas voltando à necessidade de se levar em conta os processos de realização dos filmes, isto me parece um caminho para que todo filme se justifique perante o crítico, que poderia, se inseguro ou inexperiente, se sentir desmotivado a fazer uma crítica mais contundente. E, convenhamos, parece também um caminho direto para aniquilar, no fundo, toda e qualquer crítica. Sei que não é essa a intenção da pessoa que escreveu o post. Mas a ideia contida no post e amplificada por alguns comentários chega muito perto desse caminho.
Francamente, bater em críticos a esta altura do campeonato é empurrar bêbado numa ladeira. Mas assim como é frequente perceber uma ausência total de empatia em quem cobra empatia dos outros, é igualmente frequente alguém pensar e agir como se a crítica devesse ser uma espécie de assessoria de imprensa para os filmes. Também por isso a crítica está em processo (opa…) de extinção.
* me recuso a escrever em maiúscula enquanto não tivermos um humano na presidência.