Foi em 2000 que entrei pela primeira vez no Arquivo do Exército (CAVE). Na altura, estava a fazer pesquisa para um filme sobre os tempos da ditadura, que viria a concluir nesse mesmo ano. Apesar de não ser o tema directo da minha pesquisa, inevitavelmente comecei a ver as imagens da guerra colonial.

Estas acabariam por me perturbar a tal ponto que, juntamente com as imagens que vi no Arquivo da PIDE/DGS nesse mesmo ano, viriam a determinar todo o meu trabalho posterior.
No decorrer dos visionamentos, comecei a perceber que partira para a pesquisa com uma série de certezas sobre acontecimentos históricos, sem ter inteiramente consciencializado algumas das dimensões neles presentes. O facto de ter nascido já em plena guerra colonial, de ter tido familiares próximos nela envolvidos, nomeadamente dois tios direitos, tendo ambos feito campanha em Angola, não me tinha deixado olhar para o paradoxo da situação: uma guerra longínqua contra a qual nos revoltávamos, uma guerra simultaneamente próxima que não se discutia no seio familiar.
Ao ver as imagens das operações em Angola, Moçambique e Guiné, ao deter-me nas acções dos elementos das forças armadas no seu quotidiano ou em situações de guerra (muitas delas propositadamente encenadas para a câmara, outras captadas em situações extremas no inesperado do teatro de guerra), ia tendo a sensação de que aqueles homens tanto podiam ser os meus tios, como o meu irmão (se não tivesse havido revolução), mas também um filho meu, se tivesse vivido e existido nos tempos da ditadura (e se não nos exilássemos, como era o plano previsto pela minha mãe, éramos nós ainda crianças).
Nesse tempo desorientado, uma imagem causou-me um grande impacto. Encontrei-a num rolo, habitualmente não mostrado ao público, de “restos” que não entraram nas montagens finais dos filmes. É um plano aproximado dum soldado, sentado no chão, encostado a um veículo. Sei, por ter visto as imagens precedentes, que foi alvo de uma emboscada. Apesar do movimento de toda a sequência, dos planos de soldados feridos levados em macas pelos seus companheiros, dos rostos de dor, acabei por me fixar neste curto plano de 3 segundos e 10 fotogramas, parando-o, na mesa de montagem, num dos fotogramas que o compõem.

Trata-se de um plano anódino, sem grande conteúdo “informativo”, no sentido restrito do termo. O soldado está apenas. Não se move. Não vê. Olha, como se olhos abertos tivessem de olhar apenas por serem olhos. Não há gesto nesta imagem. Apenas um rosto. Um rosto que, no entanto, se torna ecrã de projecção: nele, projectamos os nossos próprios traumas, as nossas construções, as nossas próprias dúvidas. Nele, vejo a essência da guerra colonial, de qualquer guerra colonial.
Este foi um dos planos que se tornou numa das imagens-embrião de Natureza Morta (2005), filme integralmente construído a partir de imagens de arquivo dos tempos da ditadura. No entanto, após um ano de montagem, foi com grande perplexidade que percebi que afinal não cabia no filme.
Esta imagem assombrou-me durante muitos anos. Fez, inclusivamente, parte de alinhamentos provisórios de trabalhos posteriores, acabando por nunca ter encontrado neles lugar. Talvez porque falte o fotograma que se estabeleça como seu contracampo, um fotograma que, apesar de terem decorrido já várias décadas após a Revolução, continua a fazer parte do nosso presente.
Susana de Sousa Dias
Realizadora e professora na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa