O Cinema Português é como a electri[ci]dade: ninguém sabe de que se compõem. (…) Porque é um filme português – o crítico tem obrigação de ser indulgente, de fechar os olhos às imperfeições que possa conter, e deve, apenas, apontar como genial, como qualquer coisa de transcendente, as passagens em que o filme se equilibra e atinge o normal em Cinema. E se o crítico não é indulgente, se não fecha os olhos às imperfeições do filme, se emite, sem tartamudear, uma opinião que prima pela franqueza e pela honestidade para com o público, que deseja, acima de tudo, ser elucidado sôbre a categoria do espectáculo em si, sem se importar com vãos patriotismos, – aqui d’el-rei que é um derrotista, que possui intenções maldosas, e que está cheinho de inveja… Perante um filme português o crítico deve obedecer a três princípios: pôr de parte as camaradagens ou as inimizades, esclarecer o público claramente e apontar os produtores, com desassombro, os êrros que cometeram, para que, em futuros empreendimentos, não tornem a cometê-los – para o bem do Cinema português, em geral, e para o seu bem, em particular.
Jorge Brum do Canto, in Cinéfilo n. 82, 15 de março de 1930
Que imagem é esta? Melhor, o que há nesta imagem? Tantas coisas… É uma imagem cheia. Cheia de grão, por exemplo. Está toda atravessada por uma textura arenosa de impressão sobre papel envelhecido. De facto, esta é uma imagem que foi originalmente publicada numa revista, a Cinéfilo, suplemento semanal do jornal O Século – e título fundamental para perceber como o cinema português se viu a si próprio entre o final dos anos 1920 e o final dos anos 1930 (quando a escrita sobre cinema levantava mais polémica do que os próprios filmes). Esta imagem surgiu no número 82 dessa publicação, colocado nas bancas a 15 de março de 1930. Segundo a legenda, a imagem é da autoria de Raúl Reis, repórter fotográfico que, nessa altura, como tantos outros, andava entre as páginas dos jornais ilustrados e os décors dos filmes que se iam produzindo, fazendo registos das rodagens e fotografias de cena para a respetiva divulgação.
Pois bem, já se terá percebido que esta imagem retrata uma rodagem: uma rodagem de um filme português de 1930. Agora é preciso perceber, de que filme se trata? Ver e Amar! é o seu título. O mais certo é que nunca tenha ouvido falar dele. Já o nome do seu realizador talvez seja mais sonante: Chianca de Garcia. Se mais não fosse, Chianca realizou A Aldeia da Roupa Branca (1939), no qual João Bénard da Costa encontrou “o mais belo grande plano de mulher no cinema português (…) esse em que ela [Beatriz Costa] apareceu com as três camisas de um enxoval”. Só que Aldeia era já o terceiro filme do realizador, depois de Ver e Amar!, com o qual se estreou, e O Trevo de Quatro Folhas (1936), o seu primeiro filme sonoro. Esses dois primeiros filmes estão hoje perdidos – daí o esquecimento. Dos 2152 metros de película que Ver e Amar! tinha (o que correspondia a cerca de uma hora e quarenta minutos de duração), sobra hoje um fragmento com apenas dois minutos e seis segundos, arquivado no ANIM – Arquivo Nacional da Imagem em Movimento. Não tive oportunidade de ver esse fragmento e não será sobre o que lá se encontra que versará este texto. Este texto é todo sobre uma só imagem.
Esta é, portanto, como todas a fotografias, uma imagem de perda. Não só todos aqueles que aqui aparecem já morreram (passaram-se mais de nove décadas desde que o obturador da câmara de Raúl Reis estalou), como o resultado do trabalho que aqui vemos registado se esfumou também. Uma dupla perda, portanto. Esta imagem é, por isso, simultaneamente um símbolo da degradação inevitável das coisas e um rasgão luminoso para algo que embora perdido, se preserva como evento histórico e cultural relevante, através de formas indiretas – mas já lá vamos.
O chão
Antes disso, olhe-se, de novo, para a imagem. Onde estamos? Percebe-se que o soalho, onde todos repousam, é um palco de teatro – denunciado pela abertura onde se esconde o ponto e pelas cortinas que servem, literalmente, como pano de fundo. Que palco é este? O do teatro São Luís. Chianca de Garcia (Eduardo Augusto eram os seus nomes próprios) trabalhava nesse teatro como “secretário técnico” (ou “diretor técnico”, dependendo das fontes), depois de, no início dos anos 1920, se ter estreado na dramaturgia teatral com a peça A Filha de Lázaro (1923, coescrita com Norberto Lopes e levada a cena pela companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro). O teatro, especialmente o teatro musical, de revista e de variedades, sempre foi o seu maior interesse, sendo o cinema apenas um side job (e seria esse o seu desfecho, depois dos desaires cinematográficos, já no Brasil, para onde emigra em 1939, como encenador de espetáculos de variedades, primeiro no “mítico” Casino Urca, depois no Copacabana Palace, mais tarde nos primórdios da televisão brasileira).
Em entrevista ao Expresso, em 1977 (a partir do Brasil, já que nunca regressaria a Portugal), Chianca recorda como começou a sua ligação a esse teatro re-nomeado São Luís: “Eu conhecia vagamente o seu administrador [do teatro República], o advogado Ricardo Jorge (…). E eu disse-lhe: ‘Consta-me que vai transformar o teatro em cinema, é verdade?’ E ele disse-me: ‘Não sei. Pensámos nisso. Mas a verdade é que eu não percebo nada de cinema’. Era a minha chance, e tive que mentir: ‘Não? Mas eu sei tudo. Chame-me para o seu lado, e nós podemos fazer do República o mais importante cinema de Lisboa’. A conversa prolongou-se durante horas. A ideia foi lançada. E ninguém queria acreditar. Mas a verdade é que um ano depois, sob o nome de São Luís, nascia o mais importante cinema da capital portuguesa. Foi assim que eu passei a ser um homem da indústria cinematográfica.”
Terá sido a partir do seu gabinete, no São Luís, que se organizou uma tertúlia cinéfila onde se incluíam António Lopes Ribeiro, José Leitão de Barros e um jovem de seu nome José Manuel Félix Ribeiro, futuro fundador da Cinemateca Portuguesa e agregador obsessivo de tudo o que cheirasse a filme (mesmo quando avinagrado). Desses encontros fundou-se uma revista, Imagem, editada por Chianca e Lopes Ribeiro. Daí que, quando a direção do teatro se preparava para os eventos carnavalescos desse ano de 1930 – ano de viragem, em muitos sentidos, de década, mas também de reformulação do novo regime – talvez por sugestão de Chianca, talvez não, surgiu a ideia de realizar uma pequena curta-metragem, nas próprias instalações do teatro, para acompanhar as costumeiras “fitas estrangeiras” que ali se apresentavam como parte do popular programa festivo. Eis senão quando o pequeno projeto se avoluma, junta-se Lopes Ribeiro e Leitão de Barros à festa e o pequeno filme comemorativo – cujo título original era São Luiz Melody – se transforma numa longa-metragem de ficção que acaba por estrear comercialmente durante um par de semanas nessa mesma sala.
A vontade
Esta imagem é, pois, representativa de uma urgência e de uma vontade de fazer cinema. À primeira oportunidade, mesmo sem condições, de forma improvisada, entre amadores e principiantes, o importante era fazer qualquer coisa. E fez-se. Como o escreveria Lopes Ribeiro, sob o pseudónimo com que assinava os artigos no Diário de Lisboa, Retardador, “É o primeiro filme português em que os ‘interiores’ predominam, interiores completamente construídos e filmados dentro dum pequeno estúdio improvisado.”
Há que recordar que até então essa nova geração de realizadores, a primeira composta por artistas nascidos em Portugal (já que quase todo o cinema mudo português realizado até então havia sido assinado por cineastas estrangeiros, na sua maioria franceses, e um italiano), havia realizado apenas curtas-metragens e um documentário [Lopes Ribeiro fizera Bailando ao Sol (1928) e Uma Batida em Malpique (1929), Brum do Canto fizera a A Dança dos Paroxismos (1929, que permaneceria engavetado por muitos anos), Manuel Luís Vieira roda O Fauno das Montanhas (1926), e Leitão de Barros realizara os “privados” Mal de Espanha (1918) e Malmequer (1918), o abortado O Homem dos Olhos Tortos (1918, que teria sido a sua primeira longa-metragem) e, só uma década depois, Nazaré, Praia de Pescadores (1929), escudado pela patine do documentarismo]. Ver e Amar! foi, deste modo, a primeira longa-metragem de ficção dessa geração de realizadores [estreada alguns meses antes de Maria do Mar (1930), Lisboa, Crónica Anedótica (1930) e A Severa (1931), todos de Leitão de Barros].
Ainda assim, afirmar tal coisa é fazer uma notabilíssima (e difícil) exceção: Reinaldo Ferreira, o conhecido Repórter X, também se havia aventurado no cinema por essas alturas e, no espaço de um ano, estreara quatro ficções, uma longa-metragem e três curtas, por si dirigidas: O Táxi n. 9297 (1978), Rita ou… Rito!? (1978), Vigário Sport Club (1927) e Hipnotismo ao Domicílio (1927). Só que dada a hiperatividade de Ferreira (que rapidamente o afastou do cinema) e a sua morte prematura em 1935, dificilmente se pode associá-lo à geração dita das “vanguardas”. Geração essa à qual, além dos já citados, se deverá acrescentar ainda um outro nome, Manoel de Oliveira – ainda que, deslocado no Porto, se tenha mantido a uma distância de segurança dos trambiques lisboetas (apesar de vir a ser, em 1932, um dos cinco acionistas fundadores da Tobis Portuguesa – mas já lá iremos).
Esta é, então, a imagem de uma fagulha, de um primeiro impulso que espoleta um movimento. Mas essa fagulha não é apenas simbólica. Embora perdido, todas as informações que se conservam sobre o filme parecem indicar que este é algo mais que apenas um marco historiográfico. A partir de Ver e Amar! podem traçar-se linhas de continuidade que se propagam por toda a produção cinematográfica da década de 1930 e ainda na década de 1940: desde a construção do estúdio da Tobis à sedimentação do género da “comédia à portuguesa”. Ver e Amar! revela-se como título seminal (pela congregação dos vários elementos que viriam a definir o cinema português durante as primeiras décadas do Estado Novo). E esta fotografia de rodagem surge como evidência desse caldo primordial, quando as comadres ainda se davam bem (q.b.) e todos trabalhavam com propósito comum: a conjugação de esforços para que se organizassem as condições necessárias à produção regular de cinema em Portugal.
O que se vê nesta imagem é, pois, um conjunto de pessoas em cima de um palco, com dois holofotes, uma pequena câmara de manivela, a tentar fazer de um teatro um estúdio de cinema. É, por isso, uma imagem que espelha as condições precárias em que se fazia cinema em Portugal, depois da falência da Invicta Film em 1928 (Reinaldo Ferreira foi dos últimos a lá filmar… o que o coloca, também por aí, fora do escopo desta geração). Ver e Amar! tornou-se, por tudo isto, num emblema da vontade de fazer cinema e, simultaneamente, um exemplo das dificuldades e da falta de condições. Quase todos os que escreveram sobre o filme, aquando da sua estreia, ora favoráveis, ora reprovadores do esforço, começaram os seus textos críticos por uma reflexão sobre o estado da produção cinematográfica nacional.
O contexto
Lopes Ribeiro, como Retardador, escreveu, três dias antes da estreia (já que estava mais que envolvido no projeto), “Quási exclusivamente filmado dentro dum estúdio que, de nenhuma forma suporta comparação as instalações cinematográficas estrangeiras, os metros de filme que contém representam um esfôrço extraordinário dos seus animadores (…). Ver e Amar! é um verdadeiro ’tour de force’. Mas isso não é dito para desculpar e encobrir as suas possíveis deficiências, resultantes da escassês do tempo em que foi realizado e da insuficiência de material com que lutam os que em Portugal procuram fazer cinema a sério.” E acrescentaria, no dia da estreia, já como “A.R.”, “ficou (…) demonstrado à evidencia que é possível fazer com elementos portugueses obras que honram ‘um cinema português’ (…). Basta utilizar conscientemente, sensatamente, sem embaraçosas dúvidas nem ilusões vaidosas, as qualidades de que dispomos, suprindo com elas a escassez do material. Não se julgue, porém, que é possível filmar uma scena exclusivamente iluminada pela luz da razão… É indispensável dispôr de aparelhagem eléctrica apropriada, treinando electricistas e operadores na sua utilização.”
O próprio Chianca de Garcia, em entrevista a A. Lourenço, para a Cinéfilo de 1 de março, justificar-se-ia com: “um filme que foi feito dentro do Jardim de Inverno do São Luís, improvisado em estúdio, deficientemente apetrechado com material de iluminação, não pode deixar de possuir defeitos e outros desequilíbrios, que de todo foi impossível evitar. (…) Mais do que fizemos, dentro de um estúdio, em cêrca de cinco semanas, não é humanamente possível fazer entre nós.” E Leitão de Barros acrescentaria, “Ver e Amar!, se fosse realizada nas condições materiais correntes no estrangeiro, com impecável fotografia, ‘décors’ justos e elementos de conjuncto facílimos de encontrar no estrangeiro e impossíveis de improvisar aqui, seria uma comédia soberba. Assim, é, apesar da precipitação com que teve de ser feito, uma hora de cinema que deve interessar todos os portugueses (…).”
Na retranca, mas conscientes das necessidades comuns, estavam Avelino de Almeida (diretor da Cinéfilo), que assinou um artigo que começava com “Não é para que ninguém se indigne, ou sequer esmoreça, a ousadia fácil de proclamar que, em matéria de produção cinematográfica, apenas engatinhamos [sic], se bem que, dentro em pouco, possa haver firmeza nas pernas e segurança nos passos, não de raros, mas de muitos.” Acrescentando, “Algumas firmas, bem poucas, estão empenhadas na tarefa das produções cinematográficas nacionais. Não querendo analisar a sua orientação, simplesmente me apraz reconhecer o facto e registá-lo com simpatia. Mas atrevo-me a perguntar se, ao meter ombros a tal empreendimento, se rodearam antecipadamente das condições primordiais para que se atingisse o seu fim. Não bastam, com efeito, boas vontades, teóricas, vocações súbitas, entusiasmos fervorosos e autênticas disponibilidades monetárias. É mister algo mais.” Concluindo, “Há um exemplo, porém, que não pode ser adoptado, sem o perigo de entravar o progresso e o aperfeiçoamento da cinematografia portuguesa: é o do modo como foi trazido à tela o novo filme de entrecho Ver e Amar!”.
E Brum do Canto, também para a Cinéfilo, duas semanas depois, num longo artigo que faz o ajuste de contas – e ao qual regressarei em breve, e de ontem retirei a epígrafe que encabeça estas palavras – escreve: “Fazer Cinema em Portugal, e sôbre tudo bom Cinema, é difícil, é, até, quàsi impossível, pela falta de material técnico e pelo péssimo apetrechamento dos nossos laboratórios. (…) Enqüanto os laboratórios carecem de tudo o que carecem – e não é pouco –, enqüanto os estúdios tiverem para iluminar meia dúzia de arcos voltaicos, enquanto não houver facilidade em obter, sem demoras, o que o trabalho de realização pede – jamais se deve estipular um prazo de tempo determinado para a efectivação de uma película, para que o resultado final são seja tristemente lamentável.”
E termino este périplo pela crítica publicada com as palavras lapidares de Alfredo Meca, para a revista Invicta Cine, “Porque não se reúnem meia dúzia de interessados e aficionados do cinema, e solicitando o auxílio do Estado, constroem um estúdio suficientemente apetrechado, com todos os requisitos que a Arte exige, e só então produzir de forma que os nossos filmes nos não envergonhem nos mercados estrangeiros? – Para quê, eternamente, vivermos de ilusões? (…) O público [e] a crítica não pode[m] estar interminavelmente sujeit[os] a experiências e tentativas vindas de longos anos. – Ou faz-se cinema, ou proíbe-se a sua execução.”
O estúdio
E foi o que aconteceu! Não a parte de se proibir a sua execução – está bem de ver – antes aquela em que se sugere que se juntassem meia dúzia de interessados com o auxílio do Estado. A partir de Ver e Amar!, Chianca de Garcia acaba sendo um dos nomeados para a comissão a que o Governo (na pessoa de Óscar de Freitas, Inspector dos Espectáculos) propõe, em agosto de 1930, o estudo para a construção do que viria a ser a Tobis Portuguesa (acrónimo de Ton-Bild Syndikat, Sindicato do Som e Imagem) – comissão que Chianca integrava como representante da imprensa, juntamente com Lopes Ribeiro, e onde contavam ainda o já citado Ricardo Jorge do São Luís, o arquiteto Raul Lino (Tivoli), João Botto de Carvalho (Sociedade Geral de Filmes, produtora “inventada” para Ver e Amar!), o distribuidor Castelo Lopes, Aníbal Contreiras (laboratório Lisboa Filme) e Leitão de Barros, magnânimo. A Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm foi criada em 3 de junho de 1932 – o primeiro estúdio de cinema sonoro em Portugal – com sede na Avenida da Liberdade (n. 141, onde agora existe uma loja da Hugo Boss) e estúdios na Quinta das Conchas (no local onde atualmente está instalado o Instituto do Cinema e Audiovisual – ainda que num edifício diferente).
Além disso, Chianca seria o conselheiro técnico (não creditado) da primeira produção do estúdio, A Canção de Lisboa (1933) – como se lia na publicidade da época, “o primeiro filme português feito por portugueses”. Aliás, o próprio Cottinelli Telmo, realizador único desse filme (porque nunca mais realizou outro), disse ser Chianca “a alma” do projeto e Beatriz Costa, a protagonista feminina (com quem Chianca viria a trabalhar amiúde, tanto no cinema como no teatro) afirmou que o “Chianca estava por detrás disto tudo”. É de notar que os cinco acionistas fundadores da Tobis eram, além do (endinheirado) Manoel de Oliveira – que demoraria uma década a lá filmar -, Leitão de Barros, António Lopes Ribeiro, Jorge Brum do Canto e o próprio Cottinelli (que, como arquiteto, tinha desenhado os primeiros projetos do edifício). Ou seja, por algum motivo, Chianca não entra como acionista.
Esta é, deste modo, também, a imagem de um impasse e de uma mudança de paradigma – é a demonstração material de uma necessidade e a afirmação, a contrario, de um novo modelo de produção (e de um novo cinema), já que uma produção assim improvisada só era possível por se tratar, ainda, de cinema mudo.
A propósito, é importante frisar que, segundo algumas fontes, há uma dimensão experimental associada à exibição de Ver e Amar!. Sendo um filme mudo, as sessões eram acompanhadas por discos tocados em gramofone. Esses acompanhamentos musicais incluíam alguns fados (de Ruy Coelho, Manuel Rey Collaço, Fernando de Carvalho, David de Souza e Nicolino Milano), o hino nacional, “A Portuguesa”, e um foxtrot que parodiava a composição para o filme Ben-Hur: A Tale of the Christ (1925) – já lá irei. Não é, portanto, surpreendente que poucas semanas após a estreia de Ver e Amar! se noticiasse, na imprensa da especialidade, que Chianca de Garcia e Ricardo Jorge viajavam “ao estrangeiro” com o objetivo de “estudo do cinema sonoro” – aprendizagem que desembocaria, claro, em A Canção de Lisboa.
O género
Mas regresse-se, mais uma vez, à imagem. Para onde aponta a câmara? Refiro-me não à câmara fotográfica de Raúl Reis, mas sim à câmara cinematográfica, operada por Salazar Diniz e Manuel Luís Vieira (o tal d’O Fauno das Montanhas), que serão os dois homens de casaco escuro, junto ao tripé. O que filmam eles? Dois homens de tronco nu e saiotes, outro muito branco e de chapéu, junto a um enorme cavalo de papelão, por entre cortinas e estrados? Que raio de filme é esse? Mais uma vez, por se ter pedido quase integralmente a película que o sustentava, é difícil de saber. Além disso, não se conservam materiais de trabalho, como guiões ou planificações, já que, como se explicou, o processo de rodagem deste filme foi atípico, feito, muito literalmente, do pé para a mão, numa meia dúzia de semanas. Mas sobram as críticas e os textos de imprensa, e neles encontra-se uma descrição muito pormenorizada da ação. Passo então a transcrever um parágrafo da crítica de um tal J.N.G., publicada na Cinéfilo de 1 de março de 1930.
“Uma costureirinha, arrastada pela sua paixão pelo teatro, esquece o amor que lhe dedica o seu vizinho chauffeur, aceitando os galanteios interessados do autor da revista Ver e Amar!, a representar em breve no teatro onde ela é, então, uma modesta bailarina. Realmente a pequena apenas deseja, [à] mercê da protecção do autor, realizar as suas aspirações de estrêla. Vê coroados os seus desejos. Mas, na noite da estreia, perde a segurança deante do mar de cabeças da plateia e o seu sonhado triunfo redunda num lastimoso insucesso. O chauffeur que, para estar junto da sua amada, aceitara figurar na revista, surge no palco e, naquela ocasião crítica, canta uma valsa que conquista as simpatias do público e salva a peça. A costureirinha perde, é certo, a glória do palco, mas consegue felicidade maior, na tranquilidade do lar, junto daquele que ama.”
Faz lembrar alguma coisa? Faz, com certeza. Esta é, mais coisa, menos coisa, a trama de muitas das comédias (e não só) que se realizariam nos anos seguintes. No catálogo que a Cinemateca Portuguesa dedicou a Chianca de Garcia, em 1983, publica-se uma carta deste a Augusto Fraga, onde o primeiro afirma: “Se você reparar bem, todos os filmes portugueses são iguais. Iguais ao primeiro modelo que já era errado: A Canção de Lisboa. Ora veja. Lá está o casal amoroso, a tia ridícula, o velho pernóstico e o estroina generoso. De então para cá é sempre a mesma coisa.” Se de facto o sucesso de Canção de Lisboa parece ter servido como garante narrativo para grande parte das comédias que se fariam depois [sendo A Vizinha do Lado (1945), de Lopes Ribeiro, a mais cabal e preguiçosa das cópias]. Mas, até certo ponto, poder-se-á especular que o “primeiro modelo” terá sido, afinal, Ver e Amar!.
Há, aliás, um filme que parece decalcado a papel químico de Ver e Amar!, é ele O Pai Tirano (1941) – de novo de António Lopes Ribeiro. Pois note-se. Tudo começa pelo título, ambos os filmes são nomeados pela peça de teatro que se representa no seu interior. Onde o filme de Chianca retratava uma rapariga “indecisa” entre o chauffeur pobre mas honesto e o produtor de teatro rico mas perverso, Mega, o protagonista do filme de Lopes Ribeiro, está indeciso entre a pacata funcionária do Grandela (sua colega na peça) e a moderna balconista da loja de perfumes (que odeia o teatro e ama o cinema) – oposição semelhante às irmãs de O Leão da Estrela (1947), a virtuosa (Branca), e a frívola (Juju), e muitas mais oposições amorosas se conseguiriam encontrar pelo cinema que nesses anos se filmou. A figura do empresário/encenador é, em ambos, encarnada por um homem encorpado (Dr. Horta e Costa – é ele o homem pálido da imagem, diante da câmara de filmar, “funcionário do sector da administração da Philips”, segundo Félix Ribeiro – e Vasco Santana, respetivamente) e, segundo as críticas a Ver e Amar!, existem vários gags cómicos associados à personagem do ponto, como em O Pai Tirano. Nos dois filmes existem também múltiplos planos que demonstram o rebuliço nos camarins (vejam-se as fotografias de cena publicadas na imprensa, com as coristas em Ver e Amar! – cena várias vezes referida nas críticas –, por oposição à cena dos rapazes colocando as barbas postiças em O Pai Tirano), havendo até, nesse pormenor, algumas semelhanças nos adereços e nos cenários (as fotografias espalhadas pelas paredes dos bastidores do teatro, por exemplo).
Porém, a figura da “costureirinha” com voz afinada – tipicamente lisboeta como salientou Leitão de Barros – reaparece ao longo das décadas seguintes em filmes como A Rosa do Adro (1938, do próprio Chianca), Sol & Touros (1949), A Costureirinha da Sé (1958), sendo também a base para, por exemplo, Fado, História d’uma Cantadeira (1947, história semibiográfica de Amália Rodrigues, interpretada pela própria). E muitas das comédias incluem peças de teatro ou récitas dentro dos filmes, logo a começar por Canção de Lisboa e Aldeia da Roupa Branca, estratégia de “variedades” depois repetida ad eternum. E a isto junta-se o facto de, como referido, Ver e Amar!, apesar de mudo, ser já composto por vários fados e momentos musicais, o que será definidor de quase toda a produção nacional subsequente.
As referências
Mas volte-se à imagem. Afinal que cavalo é aquele? Há pouco referi uma paródia a Ben-Hur, eis a razão de ser daquele cavalo. Noutras imagens, de promoção do filme, percebe-se a dimensão e a utilização deste adereço. Nas críticas, J.N.G. fala da “ hilariante representação da revista com a caricatura de Ben Hur e os seus impagáveis figurantes [os tais rapazes de tronco nu e saiote]”, José Gomes Ferreira (o futuro poeta, que à época escrevia sobre cinema, participou no filme tanto como ator, como autor dos intertítulos) recorda a dificuldade técnica para filmar essa cena, “de frisar o facto de se ter conseguido iluminar o enorme palco do São Luís, para que o quadro do Ben-Hur fôsse filmado—caso inédito no cinema português!” e Brum do Canto destaca “scenas como as das girls, a de Ben-Hur e tantas outras, que se prestavam a detalhes saborosos, estão mal aproveitadas.” Félix Ribeiro recorda, já que esteve nas rodagens, que exatamente por causa desta criação de papelão, quase se pegou fogo a todo o teatro, uma vez que “foi utilizada a própria luz do palco pelo que (…) se esteve à beira de um incêndio quando um dos projectores usados, pela intensidade da luz e a proximidade do cenário próprio da cena que se filmava – a das quadrigas, paródia ao Ben-Hur, com Erico Braga a fazer de Messala… – pegou fogo muito próximo do pano de boca do teatro. Por sorte, um bombeiro de piquete, requisitado propositada e cautelosamente para estar presente, evitou uma catástrofe (…).” Terá sido no dia em que Raúl Reis tirou esta fotografia? Talvez… Mas foi, certamente, mais um argumento que demonstrou a necessidade de se construir um estúdio devidamente preparado.
Só que esse cavalo, escondido na imagem por entre cortinas, demonstra ainda algo que é importante salientar: as influências cinéfilas de Chianca (e dos seus tertuliantes). O realizador, em entrevista, afirmou que “Eu não sei nada de técnica cinematográfica… (…) Fiz, apenas, o que instintivamente senti que devia fazer. (…) Não tenho mestres, tenho visto filmes!” E isso, apesar de o filme não se poder hoje ver, está patente em várias referências aos cinema norte-americano. A paródia a Ben-Hur é a mais óbvia, mas outra encontra-se no título provisório do projeto, São Luís Melody, qual adaptação lisboeta de The Broadway Melody (1929), o primeiro filme sonoro da MGM, um musical de variedades centrado numa dupla de irmãs que tentava fazer sucesso no vaudeville, entre romances cruzados entre pessoas de alta classe e pobretanas (and the whole shebang). O curioso é que o filme de Harry Beaumont só viria a estrear em Portugal a 23 de outubro de 1930, nove meses depois da estreia de Ver e Amar!. O que isto denota é a atenção dos cinéfilos-e-futuros-cineastas portugueses à imprensa estrangeira, que certamente acompanhavam com atenção.
E quem serão todas estas pessoas que surgem na imagem? Estão quase todas de costas… Não é fácil identificá-las. Com base noutras fotografias, no porte e no tipo de cabelo, diria que Chianca de Garcia é o homem que, de pé, com os braços nas ancas, observa a cena junto ao holofote da esquerda. Além dos operadores da câmara, diria que a figura feminina em primeiro plano talvez seja a protagonista (Heloísa Clara, interpretando “Ela”, ou, na verdade, qualquer outra das atrizes do filme – Celeste de Oliveira como “a actriz”, Laura Hirsch como “senhora Maria” ou Maria Emília como “a discípula” – é impossível afirmar com certezas). Porém, há uma figura que se destaca. Caso ainda não tenha reparado, há, na imagem, uma cruz branca, sobre a perna de um homem que se acocora junto ao (suposto) Chianca de Garcia. Quem é este proscrito, marcado a giz, qual Peter Lorre em M (1931)?
O punctum desta imagem não é, de todo, subjetivo. Está ali, traçado a branco, bem visível para qualquer um. Tenho, propositadamente, escondido esse dado, foi ele que me fez escolher esta imagem para o dossier Fotograma, Meu Amor. Na legenda, que acompanha a publicação desta imagem no referido número da revista Cinéfilo, pode ler-se: “Sempre de cócoras – é o terceiro filme em que intervém nesta posição – o sr. António Ribeiro (X), que atacou insolentemente os críticos de Ver e Amar!, meteu, como o prova a fotografia, a colherada na realização do mesmo filme, sendo, pois, a sua atitude a única verdadeiramente suspeita.”
A cruz
Esta fotografia, além de representar o fim do mudo e o início de a profissionalização do cinema em Portugal, de retratar uma nova geração de realizadores que despontava, de anunciar, por oposição, o mais importante empreendimento do cinema português de então (a construção do estúdio da Tobis) e de revelar indícios de uma matriz estética e narrativa para o cinema das primeiras décadas do Estado Novo, esta imagem materializa, de forma muito evidente (X), as lutas “sanguinárias” que pautaram a crítica de cinema em Portugal durante a década de 1930.
Como justificou Félix Ribeiro, na respetiva entrada dedicada a Ver e Amar!, no monumental e nem sempre muito fiável Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949, “Por vários motivos, alguns deles sem terem qualquer ligação com o filme, mas porque, muito à portuguesa, se procuravam fazer certos ajustes de contas entre oficiais do mesmo ofício, (na ocorrência, posições ligadas à revista Imagem que o realizador Chianca de Garcia dirigia e a sua ligação estreia com a empresa do São Luís […]), Ver e Amar! foi alvo de campanha depreciativa que conduziu até à publicação de anúncios desagradáveis, o que atesta bem o clima agreste que envolveu o filme. (…) Os deuses cinematográficos da época estavam reunidos em concílio quando, de súbito, Chianca de Garcia, com o seu sorriso subtil e irónico, lhes atirou um filme inteiramente realizado num estúdio de bonecas, em mês e meio. (…) As opiniões dividiram-se. Houve duelos de frases. Os cinéfilos atiraram uns aos outros palavras que feriam como pedras. Uns elogiando (…). Outros zombaram do filme, inventaram-lhes alcunhas, riram a bom rir dos defeitos, apontaram os ângulos despropositados, chamaram nomes ao realizador…”
Aquela cruz sobre António Lopes Ribeiro é, na verdade, um alvo, e o franco atirador é Brum do Canto – é do já citado artigo deste último que extraí a imagem, a epígrafe deste texto, e convém recordar que o título dessa peça rezava como “’Ver e Amar!’, visto ao retardador” – em referência ao pseudónimo de Lopes Ribeiro no Diário de Lisboa. No longo texto, Brum do Canto refere muitas objeções ao filme, mas o ataque a Lopes Ribeiro é, já, algo pessoal. Vou transcrever a longa passagem que lhe é dedicada, para que se perceba o tom e, mais que tudo a violência das suas palavras.
“[C]onvém frisar que o sr. António Lopes Ribeiro confessa que as criancices e as leviandades, que comete a cada passo, são a resultante do seu feitio piadético. O sr. António Lopes Ribeiro é um piadético de ofício; chamam-lhe até a adaptação humano-grotesca de O homem que ri. O que tem piada é que, havendo sido um colaborador assíduo de Ver e Amar!, não o tivessem chamado, felizmente, na hora aflitiva do desastre, para que, com os seus conhecidos méritos de cineasta ilustre, procedesse à nova montagem! O sr. António Lopes Ribeiro é, sem dúvida, um modêlo de piada, de auto-piada. Foi por piada que o nosso lupo-megafónico e acocorado camarada realizou Bailando ao Sol. É por piada que actualmente assevera não ter sido o realizador do dito Bailando. Foi por piada, todavia, que (não sendo o realizador, como afirma) veio agradecer ao palco, na noite da festa da defunta Imagem, as homenagens prestadas pelos snobs pseudo-cinéfilos ao autor dêsse modelar ensaio visual. Foi por piada que disse mal de Azas [sic – imagino que se refira ao filme de William A. Wellman, de 1927], nas colunas de um jornal da tarde, depois de ter visto êsse mesmo filmes nos escritórios da Paramount, e, aí, lhe ter tecido os mais encomiásticos panegíricos. Foi por piada que se intitulou (ou se deixou intitular) director das scenas portuguesas de Fraülien Lausbub [sic], quando afinal foi Artur Duarte quem as dirigiu. Foi por piada que procedeu de certa maneira (que Leitão de Barros muito bem conhece), a-fim-de ser apresentado a Fritz Lang. Foi por piada que, em Paris, cometeu certa gaffe (que Leitão de Barros também conhece) com um realizador francês. Foi por piada que maltratou o último filme de Paul Leni, exibido entre nós [refere-se a The Man Who Laughs (1928, O Homem Que Ri), estreado em Portugal a 21 de janeiro de 1930]. Foi por piada que, não há muito, atacou os letreiros de um seu colega legendista, sem se lembrar que os tem feito bem piores, sem se lembrar do ‘incêndio’ da quinta parte do Filho do Outro, de Tcherviakov [sic – creio que se refere a Moy syn (1928), de Yevgeni Chervyakov, estreado em Portugal nas vésperas do filme de Chianca, a 20 de março]… Sr. António Filipe Lopes Ribeiro: Não queira mais afogar nos seus interesses a sinceridade dos outros, e veja se de aqui em diante consegue ser um homem… ao menos por piada.”
Esta reação resultava de, na sua crítica no Diário de Lisboa, Lopes Ribeiro ter oferecido três possíveis posições aos detratores do filme: “Julgar Vér e Amar! como uma obra normal, é fazer justiça. Julgá-lo como uma obra definitiva— é ser, á escolha, parvo; ignorante ou mal-intencionado.” E a isto seguiram-se alguns ‘réclamos’ onde se podia ler, por exemplo, “Pretendeu-se levantar uma cabala contra o filme Vêr e Amar! / A resposta dá-a Leitão de Barros nestas palavras: Mesmo que o filme fosse uma super-produção os ‘homens entendidos’, os ‘realizadores de café’ e os ‘assistentes de esquina’ haviam de pôr restrições”. Ou ainda, ‘A-pesar dos ataques pessoais e das invejas ridículas / o filme português Ver e Amar! triunfou, triunfa e triunfará / A prova cabal de que é o primeiro filme português com categoria / É que acabam de ser assinados os contratos para exibição de Ver e Amar! / Na França, na Bélgica e em Espanha / É esta a única resposta a todas as campanhas.”
A crítica
Talvez não se justificasse tanto, é certo, mas não sabemos o que se dizia sem ser por escrito. Brum do Canto teria, certamente, as suas razões e Lopes Ribeiro não era, nem nunca seria, flor que se cheirasse. De qualquer modo, o que me interessa é a força daquela cruz. A materialização daquela rasura revela a força e a influência da crítica, e o sangue na guelra com que se escrevia sobre cinema à época – imagine-se o escândalo que seria se qualquer crítico de cinema, hoje em dia, escrevesse algo daquele género sobre, sei lá… Paulo Branco (por muito menos, os críticos da nossa praça foram banidos – temporariamente – das sessões de imprensa do respetivo distribuidor). E atente-se que Brum do Canto também ataca Leitão de Barros (referindo-se ao “seu ultra-condescendente artigo sôbre Ver e Amar (…) [onde] brada, com ar apostólico: ‘Que importa que uma scena esteja longa ou um pormenor falho de luz? É preciso ir um pouco mais longe’. Mas, amigo Leitão de Barros, você sabe tão bem como nós que isso não é assim, que isso nunca foi assim, que isso nunca pode vir a ser assim.”) e José Gomes Ferreira (“disparatadas opiniões”).
A força e influência da crítica eram tais que o filme, ao fim de uma semana, como se percebe pela passagem de Brum do Canto, foi remontado e reduzido, em função do que se havia escrito. Regressando a Canto, “Ver e Amar!, tal qual se exibiu na sua segunda semana no São Luís, é já uma fita razoável, e vê-se sem grande enfado, em virtude dos cortes consideráveis que sofreu, segundos os conselhos da crítica conscienciosa. Ver e Amar!, na noite da estreia, não era um filme: era uma colecção de filmagens, ligadas umas às outras com seqüencia, mas sem vida, sem alma e sem talento.”
Já Adolfo Casais Monteiro (que, por exemplo, seria um dos poucos defensores públicos de Douro, Faina Fluvial, aquando da sua estreia), na recém-criada revista Princípio, escreveria bem pior: “Ver e Amar! está abaixo de toda a crítica. Julgo difícil fazer pior, quer em estupidez de argumento, quer em pobreza de realização, quer em má qualidade de fotografia e montagem. O sr. Chianca de Garcia fazia melhor indo plantar batatas, já que não faz a mínima ideia do que seja cinema.” E João Rodrigues Freitas, na mesma página, resumia Ver e Amar! a “imbecil”. A juntar à festa, na referida Invicta Cine, escreveu-se que “Um dia, alguém lembra-se de ser realizador cinematográfico. Não pensa se para isso tem vocação ou competência (…) [Ver e Amar!] é um filme mau, mesmo muito mau”, concluindo tratar-se da “obra de um jumento” e que um título mais apropriado para o filme seria “Ver e Cavar”. Alfredo Meca, mais meigo, ficou-se por “Chianca de Garcia merece louvores pelo esforço despendido. Não acertou, talvez prejudicado pelos seus numerosos assistentes com prosápias de técnicos. Para a outra vez será. Não é caso para desanimar.”
E, na verdade, foi. Foram os “assistentes” que geraram, em grande medida, a reação crítica (proporcional à defesa comprometida – mas nunca declarada – de Ribeiro, Barros e Gomes Ferreira), e ninguém desanimou, bem pelo contrário. Não se pode esquecer que Portugal é pequeno e o meio cinematográfico era, e continua a ser, um penico (onde toda a gente se conhece). Não tardou, pois, até que Brum do Canto e Chianca Garcia se cruzassem: o primeiro foi assistente de realização do segundo em Trevo e depois das múltiplas vicissitudes da rodagem atribulada de A Canção de Terra (1938), na ilha da Madeira, foi Chianca que intercedeu para que o filme se terminasse, em estúdio, na Tobis. E não é Brum do Canto o argumentista e assistente de realização de As Pupilas do Senhor Reitor (1935), de Leitão de Barros? A fúrias eram muitas, mas passavam depressa (até com Lopes Ribeiro haveria de colaborar, como crítico – ! – na revista Kino, editada pelo primeiro).
Há, a este respeito, que recordar o grande desaguisado público (e publicado) entre Lopes Ribeiro e Leitão de Barros, um par de anos depois, a propósito dos seus respetivos Gado Bravo (1934) e As Pupilas, onde Lopes Ribeiro acusava Leitão de Barros de fazer cinema velho (adaptações literárias à imagem dos filmes da Invicta) enquanto ele é que era o cineasta moderno, a par das vanguardas – segundo Bénard da Costa este foi um episódio em que Ribeiro procurou meter-se em bicos de pés, procurando pôr em causa a favorabilidade que Leitão de Barros tinha junto de António Ferro.
Esta era uma crítica de cinema feita pelos próprios realizadores (ou colaboradores dos projetos nas mais diversas funções), que eram por sua vez acionistas do estúdio único do país e diretores das revistas mais influentes (em papel ou de atualidade). É algo que revela o grau de promiscuidade e a instrumentalização da opinião pública que, na generalidade, não deveria cruzar os nomes e as responsabilidades. Nesse aspeto Lopes Ribeiro foi o rei dos conflitos de interesses nunca enunciados (na forma como através da SPAC e do Jornal Português retirou inúmeros benefícios pessoais e incluindo, também, na forma como re-construiu o legado “popular” dos seus próprios filmes através da televisão, décadas depois, que se mantem até aos dias de hoje). Aquela cruz é uma denúncia de Brum do Canto a toda esta “corrupção” que, em 1930, era ainda incipiente.
Será, talvez, o gag das cócoras, em O Pai Tirano, uma resposta bem-humorada ao texto de Brum do Canto (à fotografia “reveladora” de Raúl Reis e à marca da cruz), mais de uma década depois do incidente? É provável que não, mas não custa recordá-lo. Mega, o protagonista desse filme, interpretado pelo próprio irmão de Lopes Ribeiro (Francisco Ribeiro, o Ribeirinho), é acusado pelo seu colega (Vasco Santana) de se “abaixar demasiado perante as mulheres”, enquanto se acocora para guardar uma caixa de sapatos na prateleira mais baixa. E acrescenta, enquanto Ribeirinho sobe umas escadas para chegar à prateleira mais alta, “saber deitar a escada é uma ciência. Para se subir no conceito da mulher é preciso ser-se menos piegas e dar-se-lhe menos importância”. Se onde se lê “mulher”, se ler “crítica de cinema”, talvez se encontre um retrato da personalidade de pele dura de António Lopes Robeiro, e um exemplo da sua “ascensão” a cineasta (não-)oficial do regime.
Escrevi que esta imagem representava uma dupla perda: a da morte e da materialidade do trabalho. Ela representa ainda uma terceira perda, resultado de todos os cambalachos que aqui desvelei. A perda de Chianca de Garcia do panorama do cinema português. Talvez motivado pela guerra que se anunciava, talvez tocado pelo regime que se enrijecia, mas certamente irritado com o ambiente espeço do meio do cinema, assim que recebeu uma proposta para filmar no Brasil (da parte do empresário Adhemar Gonzaga), Chianca partiu, em junho de 1939, para não mais voltar. O primeiro filme que assina, do outro lado do Atlântico, é Pureza (1940) e é com a (muito divertida) comédia 24 Horas de Sonho (1941) que Chianca se despede da realização – ainda que existissem projetos que acabaram por nunca se concretizar, um deles com Beatriz Costa, entretanto também emigrada para as “terras de Vera Cruz”.
Nesta imagem, onde se descobre a força do despontar de uma geração, encontra-se também, de forma inversa, o seu destino funesto. A energia e o sangue na guelra resultariam em silenciamento, emigração ou acomodação ao regime. Chianca escolheu a segunda, Oliveira foi remetido à primeira, Ribeiro, Barros e Canto seguiram a terceira. E assim se desfez o sonho da geração das “vanguardas” – sobrou apenas Manoel de Oliveira, sempre na crista da onda da modernidade.
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Este artigo, cuja pesquisa e escrita aconteceu durante o último confinamento, não seria possível sem o profissionalismo e amabilidade de Teresa Borges, da Biblioteca da Cinemateca Portuguesa, a equipa da Hemeroteca Municipal de Lisboa, na pessoa de Anabela Ferreira, e a equipa da Biblioteca Municipal do Porto, na pessoa de Carla Azevedo.
Para este artigo, foram essenciais, além das publicações citadas diretamente, dois textos de José de Matos-Cruz no Jornal de Notícias (04/08/91 e 11/08/91), as dissertações “A presença portuguesa no Arquivo Miroel Silveira” de José Jorge Filho, “Imagens na Imagem em Movimento. Documentos e Expressões” de Hugo Daniel da Silva Barreira, “Se não se podem ver filmes, leiam-se as revistas. Uma abordagem da imprensa cinematográfica em Portugal (1930-1960) – Volume I” de Joana Isabel Fernandes Duarte, “Portugal (1928-1968): Um Filme de J. Leitão de Barros” de Afonso Manuel Freitas Cortez Pinto, o fundamental ensaio “A comédia à portuguesa, ou a máquina de sonhos a preto e branco do Estado Novo” de Paulo Jorge Granja, o “Dicionário do Cinema Português 1895-1961” de Jorge Letão Ramos, o documentário “Tobis Portuguesa” de Manuel Mozos e Pedro Éfe e os excelentes blogs Restos de Colecção de José Leite e o Citizen Grave de Francisco Grave.