No rés-do-chão onde Giuliana (Monica Vitti), protagonista de Il deserto rosso (Deserto Vermelho, 1964), se prepara para abrir uma loja de faianças, há uma parede onde se pintaram algumas amostras de cor, ensaios para a decoração da venda: azul-celeste para as paredes, verde para o tecto, uma escolha de cores frias, que não incomode os compradores, distraindo-os dos produtos à venda, diz ela ao engenheiro Corrado (Richard Harris). A brandura dos tons não serve só o negócio e o contentamento dos clientes, mas parece sobretudo apaziguar o mal-estar de Giuliana, constantemente perturbada pela hostilidade do ambiente que a rodeia, uma paisagem industrial, feita de cores escuras e ocres: o cinzento e o negro das fábricas, dos fatos, da terra e da água contaminadas; o laranja e o amarelo do fogo cuspido pelas chaminés, os tons avermelhados da ferrugem que cobre máquinas e barcos.

Il deserto rosso é o primeiro filme a cores de Antonioni, cores que serviram como ponto de partida mais firme do que um possível enredo. De acordo com uma entrevista ao realizador feita durante a rodagem do filme, em 1963, e incluída no documentário Michelangelo Antonioni: Lo sguardo che ha cambiato il cinema (Michelangelo Antonioni: O Olhar que mudou o cinema, 2001), de Sandro Lai, a cor seria justificada por um dos poucos elementos que conhecia no início do projecto, aquilo que descreve como a neurose da protagonista, termo impreciso e hoje caído em desuso entre a comunidade médica, mas que Antonioni usa para dar conta da instabilidade psicológica daquela mulher, do seu estado de permanente angústia e da sua incapacidade de se ajustar ao mundo em que vive.
O uso de película a cores veio responder à necessidade de acolher e tornar visível a percepção alterada de Giuliana em momentos de crise, diz Antonioni nessa entrevista. Mas esta aparente centralidade de um estado psicológico na construção do filme é de natureza muito distinta daquilo que encontramos na chamada “trilogia da incomunicabilidade”, que Antonioni concluíra no ano anterior então e onde se incluem os filmes L’Avventura (A Aventura, 1960), La notte (A Noite, 1961) e L’Eclisse (O Eclipse, 1962). Se nesses três filmes, diz, o desenvolvimento narrativo era sempre mais interno do que externo, o que encontramos aqui é o contrário.
Segundo Antonioni, o filme começou a desenvolver-se quando viu os lugares e as paisagens de Ravena, onde a rodagem viria a acontecer. Essa região, que descreve na entrevista como marcadamente distinta da mais familiar realidade urbana de Roma, tinha sido sujeita nos últimos anos a um intenso desenvolvimento industrial, observando-se assim a substituição de uma paisagem por outra, através do violento ataque à flora e à fauna da região, causado pela poluição das fábricas. Antonioni não condena o progresso tecnológico e o desenvolvimento industrial que o possibilita: como diz numa entrevista a Jean-Luc Godard, em 1964[1], “as linhas e as curvas das fábricas e das suas chaminés podem ser mais bonitas do que o contorno das árvores, que já estamos demasiado acostumados a ver. É um mundo rico, vivo e útil”. Interessa-lhe antes pensar de que modo o progresso altera a existência humana, de que forma a alteração daquela paisagem acarreta também uma modificação “da nossa psicologia, da nossa moral, dos nossos sentimentos”, propondo-se assim uma relação directa entre o mundo material e o mundo não material, relação extremamente complexa no contexto deste filme e de outras obras de Antonioni, e que só de forma embrionária poderei abordar aqui.
Quando não sei o que fazer, ponho-me a olhar para as coisas. Há uma técnica para isto também, ou aliás várias técnicas. Eu tenho a minha.
Poderíamos dizer que aquilo que o realizador descreve aqui é o nascimento de uma história em função de certas imagens, ecoando o início do fragmento que dá o título a uma colectânea de textos seus, Quel bowling sul Tevere (1983)[2]: “Quando não sei o que fazer, ponho-me a olhar para as coisas. Há uma técnica para isto também, ou aliás várias técnicas. Eu tenho a minha. Consiste em trabalhar ao contrário, partindo de uma série de imagens até chegar a um estado de coisas.”
Segundo esta passagem, não seria a história a gerar as imagens, mas as imagens a gerarem a história. Ainda que uma noção de núcleo narrativo continue a ter relevância em Il deserto rosso, sugere-se aqui que o ponto de partida da obra é outro, e exterior. A propósito disto, é curioso notar que na entrevista de 1963, Antonioni diz deste filme que ainda não lhe conhece a história, mas apenas (e sirvo-me aqui do italiano) a materia, palavra que denota simultaneamente o conceito de assunto e de matéria, coincidência relevante, já que a paisagem de Ravena se torna simultaneamente assunto e matéria do filme. Esta coincidência dá conta do interesse de Antonioni em explorar uma aproximação à realidade, não exactamente à semelhança daquilo que encontramos nos seus filmes mais propriamente neo-realistas, como Gente del Po (1947) e Nettezza urbana (1948), mas através de um modo novo, que o próprio realizador admite ainda não ter consolidado.
Na entrevista a Godard, diz que Il deserto rosso é “realista de um modo diferente”. Considera que o filme é apenas parte de uma pesquisa ainda em curso acerca dessa aproximação à realidade, que aqui se concretiza num gesto particular: o de “colocar as personagens em contacto com as coisas, porque hoje em dia são as coisas, os objectos, a matéria aquilo que mais pesa”. Sublinha-se a importância de conhecer e trabalhar a partir da realidade material, impulso que caracteriza de modo igualmente forte o cinema de Margarida Cordeiro e de António Reis, a propósito do qual o próprio Reis refere, a certa altura, “uma estética dos materiais”[3]. Assim, se o filme de Cordeiro e Reis em que Il deserto rosso mais ecoa é, na verdade, Jaime (1974), no texto que cristaliza a concepção de Trás-os-Montes (1976), “Arquitectura do Nordeste”, aponta-se exactamente para a o mesmo tipo de relação indestrinçável entre uma paisagem e um modo de vida que encontramos na origem do filme italiano.
Como se processa então, em Il Deserto Rosso, esta influência da paisagem e da realidade material sobre a feitura do filme? E como é isto conciliável com a ideia enunciada no início deste texto de que o realizar o filme a cores era justificado pela neurose da protagonista e pela tentativa de mostrar a sua percepção alterada? Tal como Antonioni aponta na entrevista a Godard, mais do que a origem do problema do filme, a personagem de Giuliana é um instrumento (como, de certa forma, a utilização da cor) para abordar o que o realizador descreve como um problema de “adaptação”, nomeadamente de adaptação à nova paisagem e ao modo de vida estrangeiro que esta acarreta:
“O que provocou a sua crise pessoal foi a divisão irreconciliável, o abismo entre a sua sensibilidade, inteligência e psicologia, e o modo de vida que lhe é imposto. É uma crise que não tem apenas a ver com suas relações com a superfície do mundo — a sua percepção de sons, cores e a frieza das pessoas à sua volta — mas com todo o seu sistema de valores (sociais, morais e religiosos).”
“O que é que as pessoas esperam que faça com os meus olhos? Para que coisas devo olhar?”, às quais Corrado responde com outra pergunta: “De que modo devo viver?”.
Apesar da dissociação estabelecida por estas palavras de Antonioni entre uma dimensão externa, superficial do mundo, e um sistema de valores, a verdade é que, para Giuliana, a angústia existencial surge associada à sua relação com o mundo físico, especialmente, ainda que não apenas, à relação visual com a realidade, transposta em perguntas como, “O que é que as pessoas esperam que faça com os meus olhos? Para que coisas devo olhar?”, às quais Corrado responde com outra pergunta: “De que modo devo viver?”.
Assim, o interesse de Antonioni em explorar a aproximação à realidade de que falávamos acima surge a par das alucinações plásticas de Giuliana — os dois são mutuamente constitutivos. De certa forma, ambos correspondem a tentativas de definição de um ser a partir do seu olhar sobre coisas que lhe são exteriores: tanto o filme quanto a sua protagonista perguntam, “Quem sou eu e de que forma pode isso ser definido por aquilo que vejo?”. O estabelecimento da relação entre o olhar do filme e da protagonista é analisado em detalhe por Pier Paolo Pasolini, no seu texto “O Cinema da Poesia”[4].
Pasolini propõe que em Il deserto rosso, contrariamente ao que acontece em filmes anteriores de Antonioni, nomeadamente na trilogia, deixa de existir uma imposição “da sua própria visão formalista do mundo a um conteúdo genericamente empenhado (o problema da neurose da alienação)”. No fundo, em vez de uma separação rígida entre forma e conteúdo, passa a existir uma relação estreita entre a estética do filme e, talvez não exactamente o seu conteúdo, mas a realidade que a molda. Segundo Pasolini:
“[Antonioni] olha o mundo mergulhando na sua protagonista neurótica, revivendo os factos através do olhar dela (…) Através deste mecanismo estilístico, Antonioni libertou o mais real momento: pôde finalmente representar o mundo tal como visto através dos seus olhos, porque substituiu, em bloco, a visão do mundo de uma neurótica pela sua própria visão, delirante de estetismo: substituição justificada pela possível analogia entre as duas visões.”
A sobreposição do olhar de Antonioni e o olhar de Giuliana é por demais evidente nas cenas em que a alteração das cores grita, quase literalmente, o estado atormentado daquela mulher. Como diz na entrevista a Godard, estes momentos acabaram por ser praticamente eliminados do filme, restando apenas duas cenas em que a câmara dá a ver as cores alucinadas por ela.
Nessas cenas, como veremos, Antonioni não se serve de uma câmara subjectiva, como a que encontrámos em certos planos de Marnie (1964), de Alfred Hitchcock, filme do mesmo ano que comentámos em crónica anterior, onde a relação entre o estado psicológico da protagonista e as cores era também inversa à que encontramos aqui: a cor era um gatilho que acordava as fobias de Marnie; em Il deserto rosso, são os movimentos internos de Giuliana a alterar a sua percepção do exterior. Nas cenas referidas do filme italiano, a alucinação da cor é experienciada não directamente através do olhar de Giuliana, mas através de um ponto-de-vista posicionado muito perto da sua figura, que permanece sempre visível, numa espécie de fusão entre câmara objectiva e subjectiva, fusão que estaria na base do filme.
Se, inicialmente, cenas como estas teriam justificado a rodagem a cores, acabaram por tornar-se apenas parte de um conjunto maior de alterações profundas que a condição de Giuliana provocou na concepção da obra. Segundo Pasolini, a subversão estética operada por este filme passa sobretudo pela utilização da “subjectiva indirecta livre”, uma câmara que não seria nem objectiva, nem subjectiva, mas uma contaminação das duas, à semelhança da técnica literária do discurso indirecto livre, que justapõe a enunciação do narrador e da personagem.
Esta sobreposição seria visível numa série de exemplos enunciados por James Williams[5], numa análise do filme baseada na proposta de Pasolini, tais como: “o jogo de cores contrastante”; “o enquadramento de figuras contra um fundo plano e desfocado”; a utilização de “movimentos de câmara aleatórios”; o recurso à montagem como forma de “fragmentar e abstrair ainda mais o espaço, com cortes que apresentam um tempo contínuo de diálogo ininterrupto, mas um espaço descontínuo”; ou como Pasolini refere, a colocação, um a seguir ao outro, de dois pontos de vista muito semelhantes sobre o mesmo objecto, materializando visões distintas da mesma realidade, o que, segundo ele, é utilizado para sublinhar o que descreve como o “mito da pura e angustiante beleza autónoma das coisas”.
Aquilo que Antonioni descreve como a sua busca cinematográfica de um contacto directo com o real ressurge na constante sensação descrita por Giuliana de que se vai afundar ou afogar, de que lhe falta o chão.
A angústia de Giuliana nasce da consciência dessa beleza e da separação entre si e o mundo. A crise que a leva ao quarto de Corrado inicia-se quando percebe que não é o filho que precisa dela para viver, mas ela que precisa do filho, o que depende de compreender que as coisas existem independentemente de si. Aquilo que Antonioni descreve como a sua busca cinematográfica de um contacto directo com o real ressurge na constante sensação descrita por Giuliana de que se vai afundar ou afogar, de que lhe falta o chão. Curiosamente, este movimento de descida é absolutamente contrário à exploração de minérios em que consiste o trabalho de Corrado: é uma queda, uma espécie de falta de contundência que surge no filme sempre como fraqueza (e daí as compreensíveis críticas lançadas a Antonioni na época, quanto à escolha de uma mulher de condição psicológica precária), ao invés de uma afirmação de poder a que a competência tecnológica dos homens que rodeiam Giuliana corresponde.
Regresso agora, para tentar uma conclusão, às cenas em que nos são dadas a ver a alucinação das cores. Estas cenas integram a sequência passada no quarto de hotel de Corrado, onde Giuliana vai procurá-lo depois de, transtornada pela descoberta da distância que a separa do filho, vaguear pelas ruas e pela zona industrial de Ravena sem aparente rumo. O que parece procurar em Corrado, e no seu quarto, é, simultaneamente, um refúgio do mundo e, através daquele homem, um ponto de contacto com esse mesmo mundo.

No meio de um estado extremo de tensão, é acometida por visões de cor que a câmara nos mostra: um clarão de luz amarela vindo de uma janela, um tecto manchado de púrpura, uma parede ocre. É para mim tentador pensar que estas cores vêm de uma sequência a que assistimos momentos antes: a história da ilha, lembrada ou imaginada por Giuliana, que a conta ao filho, depois de desenhar num quadro preto de ardósia uma mancha púrpura atravessada por um traço amarelo.


Nessa história, uma menina procura refúgio numa praia deserta, longe da vila e das outras crianças. Aí, encontra um mundo onde ainda são belos os tons da natureza, onde “tudo canta”, onde se encontram, ampliadas, as cores pastel que vimos, só em miniatura, nas paredes da loja de faianças: o azul do céu, reflectido na transparência do mar, o cor-de-rosa da areia, o verde da vegetação, o ocre apaziguado das rochas, antípoda das labaredas cuspidas pelas fábricas. Na praia, uma espécie de idílio palpável, onde até as rochas são “como de carne”, encontra a possibilidade de uma ligação não perturbada com o mundo sensível, ligação que não pode de modo algum alcançar no mundo de Ravena.
Essa luta tem uma tradução inesperada na sequência do quarto de hotel, ao longo da qual tenta insistentemente afastar o corpo de Corrado do seu, como numa tentativa de negação de um mundo ao qual não se consegue adaptar: o mundo moderno, da técnica, dominado por homens. A sua procura desesperada do amante acaba por aprisioná-la no quarto, acentuando-se a dissociação entre si e o mundo, ultrapassada, por fim, da forma mais violenta: numa situação em que será um corpo externo, um corpo masculino, a fazer imperar sobre ela a realidade exterior, numa prova insuportável da sua existência. O culminar da alucinação cromática de Giuliana acontece precisamente na última cena filmada no quarto, depois de ter consumado o seu envolvimento com Corrado: o quarto e todos os seus objectos surgem tingidos de rosa-pálido, numa evidência inescapável do transbordar do olhar da protagonista.

É-me difícil definir exactamente o que resta depois desse confronto entre interior e exterior. Talvez Corrado surja ali como uma espécie de imposição inescapável do mundo de que Antonioni fala, o mundo moderno em que então se vivia. Em parte, o final do filme parece apontar para o início de uma reconciliação entre Giuliana e esse mundo, ainda que me pareça pouco claro que espécie de trégua se estabelece nas cenas do quarto. Parece-me que algo se perdeu nesse confronto, uma forma de relacionamento com as coisas que só está presente naquela praia.
Esse elemento perdido liga-se com o que Antonioni diz sobre “a inclusão de Giuliana no filme depender da sua feminilidade, do seu ponto de vista feminino”, que o realizador considera essenciais para a história, mas que acaba por preterir em favor da força consubstanciada no novo mundo das máquinas, quando deixou cair Celeste e Verde, o título provisório do filme, por este não lhe parecer suficientemente viril, assim nomeando o filme com um deserto da cor do sangue.
[1] Godard, Jean-Luc, in Cahiers du Cinéma 160 (Novembro de 1964).
[2] Antonioni, Michelangelo (1983), Quel bowling sul Tevere, Torino: Einaudi.
[3] Cautela, Afonso (1989). “Rosa de Areia”, Apud Moutinho, Anabela e Graça Lobo (org.) António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra. Faro: Cineclube de Faro, 1997.
[4] Pasolini, Pier Paolo Pasolini, “Cinema di Poesia”, in Empirismo critico, Milão, Garzanti, 1991, pp.167–187.
[5] Williams, James, “The Rhythms of Life: An Appreciation of Michelangelo Antonioni, Extreme Aesthete of the Real,” in Film Quarterly 62, 1 (Outono 2008): 46–57.
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. Il deserto rosso é parte dessa lista.