Um dos canais do cabo anda a exibir westerns clássicos de forma avulsa ao longo deste mês de maio. A campanha promocional denomina – sem ironia, o que é ainda mais triste – o evento como “Coboiadas non-stop“. Ontem passavam um filme de Budd Boetticher, já houve também Fritz Lang e há dois dias apanhei, mesmo nos créditos de abertura, um de Henry King, talvez o mais conhecido dos seus filmes, The Gunfighter (O Aventureiro Romântico, 1950). Apesar da hora tardia não me consegui desligar e deixei-me levar pelo drama de Jimmy Ringo (Gregory Peck), um herói atormentado pelo peso da sua popularidade. Tendo ainda fresca a memória de Dorogie tovarishchi! (Caros Camaradas!, 2020), de Andrey Konchalovsky, não pude deixar de criar um inusitado diálogo entre os dois filmes, reencontrando num os temas e as preocupações do outro – como se a luz de um iluminasse as sombras do outro, e a escuridão de ambos os unisse num abraço triste mas fraterno.
Peck interpreta o mais veloz dos pistoleiros do oeste, “mais rápido que a própria sombra” como se dizia de Lucky Luke. Só que essa heroicidade de folhetim quadriculado surge aqui como sina mortal: Ringo não consegue um momento de paz sem ser desafiado por um qualquer rapaz imberbe desejoso de se mostrar melhor que o melhor dos melhores. A fama transforma-se em fado e a sombra, lenta, persegue-o, imparável, porque ela não trabalha na rapidez mas na persistência. Este herói é uma figura trágica, atormentada pelo seu próprio sucesso que, a cada disputa, se faz mais funesto – cada homem que ele mata crava um prego no seu próprio caixão. É, nesse sentido, uma personagem profundamente melodramática, por se encontrar nela a causa da própria desgraça. Daí que The Gunfighter seja, essencialmente, um filme de espera. Um homem, um relógio de pêndulo que balança, um saloon vazio, um copo de whiskey e a morte que viaja (a galope) no seu encalço. Esse destino, firmado na rocha, é inescapável, e todos os sabem; nós, que espectamos, e eles, que sonham com uma possibilidade de final feliz irrealizável.
Poderia jurar (apesar de o saber falso) que no filme não há um único plano em que as personagens surjam de corpo inteiro. E o mesmo se pode dizer da forma como o realizador decompõe o espaço, sempre obcecado por enquadres que se focam mais nas divisórias do que nas divisões.
Esse mesmo fardo melodramático de um impasse trágico que nasce dos próprios ideais encontra-se no cerne de Caros Camaradas!. Aqui, Konchalosvky descreve uma comunidade – mas especialmente uma personagem (Yuliya Vysotskaya, mulher do realizador e sua atriz recorrente) -, na União Soviética, no início da década de 1960, alguns anos após a morte de Estaline (quando se iniciava uma revisão do seu legado afinal-não-tão-memorável-assim). É, portanto, um retrato de um conjunto de pessoas que cresceu num regime totalitário, que participou do terrível esforço de guerra e que observa, aos poucos, o descamar da propaganda e os paradoxos de um estado que, periodicamente, impõem uma lavagem dos factos à medida das necessidades políticas do momento. Acentuado, naturalmente, pelo aceleração desse processo de reescrita histórica, que é, no caso real em que se baseia a história, literalmente escrita a sangue e apagada a jato de água (e depois soterrado com asfalto) em direto, num intervalo de apenas dois dias diegéticos. O filme retrata uma revolta sindical que acaba em mortandade e valas comuns.
Trata-se, portanto, não tanto de um herói atormentado pelo peso da sua heroicidade, antes um regime construído sob a figura tutelar de um deus-rei que entra numa crise de fé, aquando de mais uma fanática inversão de paradigma. Tudo isto, naturalmente, filmado em 2020, a partir de uma Rússia contemporânea, que demoniza violentamente o comunismo (o socialismo e, em grande medida, a própria democracia). E talvez essa seja a maior grandeza de Konchalovsky: nunca transformar as ideologias por que se regem as suas personagens em considerações morais sobre as mesmas. A tragédia advém, exatamente, de apesar de tudo o que lhes acontece, as personagens continuarem a sonhar uma utopia comunista. De certo modo há, aqui, a mesma desilusão de Jimmy Ringo, o mesmo projeto de futuro radioso que colide com o pragmatismo das decisões diárias.
Claro que este inevitável desalento comunista é algo que já se viu descrito em muitas e divertidas formas: desde o recente The Death of Stalin (A Morte de Estaline, 2017), de Armando Iannucci; até, por exemplo, Palombella rossa (1989), de Nanni Moretti. Este último cruza, de forma encantatória, o projeto comunista com o melodrama (também de emissão televisiva) de David Lean, Doctor Zhivago (Doutor Jivago, 1965). Esse reencontro impossível entre o sonho romântico da juventude e a realidade dos corpos e do tempo que passa (cristalizado no final puxa-lágrima de Lean) é, no fundo, a compreensão chorosa de que a luta por um sonho, mesmo que inviável, é uma luta que merece ser prosseguida – a despeito do seu insucesso (ou, pior, do seu trágico sucesso). Também Konchalovsky polvilha este drama com poerias de comédia-negra de enganos, e esse é, talvez, a mais desarmante das suas escolhas.
Mas aquilo que mais impressiona, em Caros Camaradas!, é a câmara de Andrey Naydenov que trabalha a composição e o enquadramento a partir de uma ideia de amputação – materializando a impossibilidade de todo aquele projeto de sociedade. O primeiro plano pós-créditos é disso particularmente representativo [ao qual pertence o fotograma acima reproduzido]. Uma cama de lençóis desengajados, um mulher deitada nela, ele ergue-se para se vestir e subitamente um braço que repousava no limite esquerdo do quadro dá corpo a um homem que rola para dentro de campo e estabelece com ela um diálogo matinal. Ela tem que ir buscar mantimentos que os preços dos produtos vão subir e as senhas cedo deixarão de permitir comprar frescos e guloseimas. Enquanto ele permanece deitado, ela percorre o quarto, desaparecendo do quadro, mas ressurgindo no espelho que se encontra adjacente. Veste-se, calça as meias, já em campo, e a câmara permanece, irremediavelmente estática, oferecendo um bailado de partes de corpos que se depõem perante a lente.
A um par de dias de distância poderia jurar (apesar de o saber falso) que no filme não há um único plano em que as personagens surjam de corpo inteiro. E o mesmo se pode dizer da forma como o realizador decompõe o espaço, sempre obcecado por enquadres que se focam mais nas divisórias do que nas divisões: paredes, janelas, grades, muros, portas, corredores, tudo o que compartimente o ecrã. Recusa-se, sucessivamente, a continuidade. Não há desafogo possível para o olhar, como não há desafogo para aquela pequena cidade e os seus habitantes. Nesse sentido, há muito de film noir aqui, a mesma desilusão, a mesma sujidade (e disso é prova aquele longo diálogo, dentro de um carro, reduzido a dois rostos, filmado numa só toma com grande-angular, em que um rosto gigantesco, em primeiro plano, e o outro, escondido no fundo no banco de trás, testam os limites da suas convicções).
Não por acaso o filme termina no topo de um telhado, certamente o único sítio onde se pode ver o horizonte. Mas Konchalovsky (ao contrário do plano final do filme de Henry King) nunca nos oferece a paisagem, antes – e só – o olhar do desespero daqueles que a olham sem nela encontrarem (re)conforto.