Na aurora industrial do cinema português, os fotógrafos de cena eram recrutados entre os foto-repórteres, e um dos mais destacados cineastas de então, Leitão de Barros, também dirigia um dos jornais ilustrados mais inovadores da década de 30, O Notícias Ilustrado. O vanguardismo gráfico do jornal, traduzia-se na evidente linguagem tipográfica cinética, no sentido moderno da sua montagem entre imagem e texto.
A primeira história das imagens fixas do cinema português foi fruto de uma segunda geração de fotojornalistas que, sob a direção editorial de Leitão de Barros, produziam destacadas reportagens sobre os bastidores das fitas.
João Martins (1898-1972) foi um desses foto-repórteres, que teve o seu primeiro contacto no mundo do cinema quando foi encarregue de realizar uma reportagem aos bastidores do filme As Pupilas do Senhor Reitor (1935). Que resultou na reportagem “A Poesia Cristã das Procissões. Os anjinhos da Procissão das Pupilas vistos por João Martins”, publicada a 6 de janeiro de 1935 no Notícias IIustrado.
O olhar fotográfico de João Martins sobre o filme privilegiou a perspetiva vanguardista dos planos picados, que a montagem gráfica da página do jornal corroborava.
Nas suas Memórias, o fotógrafo refere que Leitão de Barros lhe deu carta branca para “fotografar os anjinhos à vontade. Tem uma boa oportunidade para se impor. Saberei fazer-lhe justiça! Não sou nenhum papão.” (Revista Plateia, ano XVY, nº 282, 28 junho 1966). Leitão de Barros dispunha de uma plataforma moderna e massiva para a promoção de muitos dos seus filmes, e utilizou-a amplamente.
A partir de então, a sua carreira como fotógrafo de cena foi das mais relevantes do cinema português, tendo trabalhado em 57 filmes entre 1936 e 1972. Para além disso, foi também um destacado fotógrafo salonista, tendo estado ligado a alguns dos principais foto-clubes portugueses da década de 50, como o Foto Clube 6×6 de Lisboa, do qual foi cofundador, ou o Grupo Câmara de Coimbra.
O piscar de olhos à estética vanguardista que João Martins ensaiou na foto reportagem das Pupilas não seria a que privilegiou na sua prática artística fotográfica futura, tendo prevalecido a influência pictorialista e humanista.
Mas, em pleno meio fervilhante para o cinema nacional, com a criação da Tobis em 1932 e a incorporação de uma política de propaganda para o cinema português, em 1933, a carreira de João Martins teve o melhor meio para poder projetar-se.
Sem uma estrutura técnica ainda formada e formalizada, a fotografia de cena cinematográfica era entregue aos foto-repórteres, como Ferreira da Cunha, Salazar Dinis, Horácio Novais ou Dinis Salgado, alguns deles ligados mais tarde ao cinema, tanto como fotógrafos de cena, quer como operadores de imagem.
Em 1942, já com uma carreira consolidada, foi o fotógrafo de cena de Aniki-Bóbó (1942), de Manoel de Oliveira.
Na sua carreira de foto-repórter, João Martins, tinha já sido desafiado a fotografar os “rapazes traquinas” que descreve na sua crónica sobre as filmagens do filme (Revista Plateia, ano XVI, nº 289, 16 de agosto 1966), através de uma série de reportagens dedicadas ao trabalho e à população infantil de Lisboa.
Publicadas entre 1932 e 1933, as imagens que João Martins captou sobre as crianças dos bairros pobres de Lisboa, ora acompanharam artigos de apelo à intervenção social das autoridades, ora serviram de enquadramento a textos de índole mais literária. Mas um olhar já cinematográfico preside a todas estas imagens, e nelas ecoa a estética de Aniki-Bóbó, com a qual se reencontraria anos mais tarde.
Emília Tavares
Curadora de fotografia e novos media no MNAC, investigadora e professora