Só existem duas estrelas de Hollywood cujas características podem ser entendidas com apenas alguns traços de lápis numa caricatura imediatamente reconhecível, Charlie Chaplin e Marilyn Monroe. Enquanto Charlie costuma ser desenhado de corpo inteiro (com o seu chapéu e bengala típicos), a Marilyn pode ser evocada apenas pelas características do seu rosto. Ambos acabaram por definir o cinema como ele é. Chaplin tornou-se uma grande estrela numa altura em que a quantidade de público aumentava exponencialmente, gerando enormes somas de dinheiro, quando Hollywood era ainda industrialmente desorganizada, e não era ainda a oligarquia rígida em que se havia de tornar. Ele (e os seus colaboradores, menos relevantes, da United Artists) compreendia que a independência industrial seria a chave para o sucesso artístico e financeiro. Por isso, se a imagem de Charlie se havia tornado símbolo do próprio cinema, a ascensão pessoal de Chaplin é emblemática da ascensão de Hollywood, do seu potencial primordial, e a sua capacidade para explorar a sua modernidade, tanto no ecrã como na sua infraestrutura económica. Se a imagem de Marilyn acabou por, também ela, significar cinema, a persona estelar de Monroe surge num tempo em que o sistema dos estúdios de Hollywood entrava em declínio e é, por isso, ainda mais emblemática desse período e das suas contradições.

A propósito, ambas as estrelas investiram profundamente na construção das suas imagens, que eram pensadas ao milímetro e cuidadosamente desenvolvidas em torno de um disfarce superficial. A máscara de Charlie descende da dos palhaços; a de Marilyn é um exagero dos preceitos da cosmética feminina. Como tal, ambas as estrelas, no seu quotidiano, podiam circular publica e socialmente sem serem reconhecidas. Show People (1928), de King Vidor, explora este fenómeno: uma jovem atriz (Marion Davies) acabou de ter a sua estreia de sucesso, o seu primeiro passo para o estrelato, e é incapaz de reconhecer Charlie (o homem mais famoso do mundo à época) quando ele lhe pede um autógrafo. Quando Monroe se mudou para Nova Iorque em 1955, era frequentemente referido que aquela que era, então, a mulher mais famosa do mundo, se podia movimentar fácil e anonimamente pela cidade sem a maquilhagem e o estilo que compunham a Marilyn. Existem, também, paralelos nas suas origens sociais e de classe. Ambos vieram do proletariado da indústria do entretenimento: a mãe de Norma Jeane e a sua falecida mãe de acolhimento eram ambas “cortadoras de negativo” e Charlie Chaplin Senior fora um cantor de music-hall de curta carreira. Norma Jeane foi certamente filha ilegítima, e Charlie foi-o provavelmente; as suas mães sofriam de esquizofrenia e depressão e acabaram confinadas em instituições para doentes mentais enquanto os seus filhos eram colocados em famílias de acolhimento. Ambos cresceram em situações de extrema pobreza, sem acesso à educação e nenhum deles conhecia os seus pais, ainda que Charlie tenha ocasionalmente visto o seu pelos bares de Kennington [1]. Já na idade adulta, tanto Marilyn Monroe como Charlie Chaplin tinham uma inclinação ideológica de esquerda, que associavam às suas privações de infância e à tragédia das vidas das suas mães, assim como à consciência profunda da sua falta de escolaridade e consequente sede de conhecimento.
Existem ainda outros paralelismos: ambos tinham imensas incertezas quanto ao seu trabalho e sofriam de uma tendência disruptiva para o perfeccionismo. Enquanto Chaplin, com a sua acumulação de poder, sendo o seu próprio produtor e realizador, e como fundador da United Artists, podia interromper uma rodagem até estar seguro de si mesmo; já Monroe ganhou fama de insegura: imensamente dependente dos seus vários “instrutores”; constantemente atrasada; sempre a pedir repetições, e nunca segura do resultado final. Num primeiro sentido há, obviamente, uma diferença de género, mas o contraste entre o estatuto das duas estrelas aponta igualmente para um contraste entre os anos de ascensão e queda da indústria de Hollywood. Chaplin fez milhões nas bilheteiras nos seus primeiros anos e podia, assim, progredir para fazer as suas obras-primas (também elas sucessos de bilheteira, pelo menos três foram citadas, ao longos dos anos, como “os maiores filmes de todos os tempos”) ao longo dos seus muitos anos de independência. As condições de Monroe foram muito diferentes.
CODA 1: Ella Ftizgerald foi uma das maiores heroínas de Monroe e foi com as canções de Fitzgerald que aprendeu a cantar. Devido à política de “apenas brancos”, Fitzgerald fora impedida de atuar em Los Angeles, e a esse respeito contou a seguinte história:
Tenho uma grande dívida para com a Marilyn Monroe… ela telefonou pessoalmente para o dono do Mocambo e disse-lhe que queria que agendassem um concerto meu imediatamente, e se ele o fizesse, ela reservaria, todos os dias, um lugar na primeira fila. Ela disse-lhe – e era verdade, dado o estatuto de superestrela da Marilyn – que a imprensa ficaria histérica. O dono anuiu e Marilyn cumpriu, todos os dias, na primeira fila. Isso fez rebentar a imprensa. Depois disso nunca mais tive que cantar num pequeno clube de jazz. Era uma mulher atípica – um pouco à frente do seu tempo. E não o sabia.
Focando-nos agora em Monroe: na sua luta com a 20th Century Fox em paralelo com as mudanças históricas e alegóricas que decorriam no seio da indústria. À medida que se tornava a maior e a última das estrelas dos anos 1950, o sistema dos estúdios, em Hollywood, definhava. Sem dúvida, foi a sua imagem, como o epíteto da “bomba loira”, que a lançou no estrelato e fez dela a mulher mais famosa do mundo. E, paradoxalmente, foram os sentidos e ressonâncias investidos na sua imagem que, à medida que ela lutava pela sua independência financeira, a colocaram em confronto com a Fox. Ainda que essa tenha sido uma batalha que ela acabou por vencer, contra um estúdio enfraquecido, os mesmos paradoxos persistiram no resto da sua carreira.
A relação turbulenta de Marilyn com a 20th Century Fox reflete o antes e o depois dos tumultos industriais que resultaram do decreto Paramount [United States v. Paramount Pictures, Inc., 334 U.S. 131 (1948), lei de defesa da concorrência] e do resultante desinvestimento da integração vertical. Ao longo da sua ascensão, ela sofreu, como tantos outros milhares de mulheres, do sistema de contratos [“contract system”]. Como um estúdio podia cancelar um contrato ao fim de seis meses, os atores estavam à sua mercê: por exemplo, não tinham poder de decisão sobre os papéis que desempenhavam, nem sobre se consentiam ser emprestados a outros estúdios. O primeiro contrato de Monroe com a Fox durou apenas de 1946 a 1947, seguindo por um período de menos de um ano na Columbia. Seria apenas pela insanável devoção do seu agente, Johnny Hyde, vice-presidente da William Morries Angency, que ela conseguiu ser escolhida para pequenos papéis e receber alguma atenção da imprensa. Estes incluem as suas, agora conhecidas, aparições em modo cameo: Love Happy (1949) dos irmãos Marx, The Asphalt Jungle (1950, para a MGM) de John Huston e, com mais sustento, All About Eve (1950) de Joseph L. Mankiewicz.
Pouco antes da morte prematura de Johnny Hyde, este persuadiu a Fox a dar um novo contrato a Monroe. Após mais dois cameos, que a apresentaram a Howard Hawks, o papel principal em Don’t Bother to Knock (1952) não foi suficiente para a tornar numa estrela. Ainda que houvesse algum interesse interno, a Fox nunca soube o que fazer com ela. Como refere Donald Spoto, Darryl Zanuck continuava a defender que ela “não era fotogénica” e não teria sucesso nas bilheterias [3]. Quando ele finalmente aceitou dar-lhe um papel em Niagara (1953) ela já se havia tornado numa celebridade, recebendo atenção constante das colunas de fofocas de Hollywood e vendo as suas fotografias circularem amplamente, quando, no início de 1952, começou a namorar com Joe DiMaggio, jogador de basebol recém-reformado mais ainda a maior estrela desportiva da América.
A história de Niagara havia sido desenvolvida pelo seu argumentista e produtor, Charles Brackett, com as quedas de água em mente e assim que Monroe foi escolhida para o papel principal, a Fox construiu a promoção deste filme como uma espetacular atração dupla. Ainda que Niagara tenha lançado Monroe no trajeto que a conduziria à posição de superestrela, o papel que interpretava, como Rose, era complexo, exigente e muito diferente dos papéis que viria a desempenhar. Como mulher fatal num dos últimos filmes noir de Hollywood, o seu desempenho é estranhamente comovente (numa trama em que uma mulher e o seu amante planeiam o assassinato do marido dela). Apesar de Niagara ter sido o filme que a revelou, seria a partir do filme seguinte, Gentlemen Prefer Blondes (1953, Os Homens Preferem as Loiras), que se daria o tom do seu trabalho futuro, quando as suas conquistas enquanto intérprete seriam sistematicamente descoradas ou até condenadas.

Depois de fazer uma fortuna para os cofres da Fox com o Gentlemen Prefer Blondes e The Seven Year Itch (1955, O Pecado Mora ao Lado), pelos quais nunca receberia o prometido bónus, Monroe continuava amarrada a um contrato. Mas aquilo que a fez transbordar foi a atribuição estereotipada de papéis [“typecasting”]: assim que o estúdio compreendeu que ela era uma “loira burra”, passou a dar-lhe apenas esse tipo de papéis. Depois de River of No Return (1954, Rio Sem Regresso) e There’s No Business Like Show Business (1954, Parada de Estrelas), ela revoltou-se. Mais tarde, como o haviam feito várias outras estrelas antes, como a Bette Davis e a Jean Harlow, ela sumariou o problema do contrato do seguinte modo:
Puseram-me nestes filmes sem sequer me consultarem e muito a meu contragosto. A minha palavra não era tida para nada. É justo? Dedico-me ao trabalho, orgulho-me do que faço e sou um ser humano como todos os outros. Se continuar a fazer estes papéis que a Fox me impõe, cedo o público se fartará de mim.
Ele desejava, de novo no espírito do que fora a luta doutras estrelas antes dela, escolher os argumentos que viria a interpretar e diversificar os seus papéis. O desaguisado da Monroe com a Fox, em 1954, quando o oligopólio dos estúdios começava a quebrar, foi um momento emblemático na defesa contra a tirania do sistema dos contratos e os modos desinspirados e autocráticos que os estúdios haviam imposto ao longo de décadas. Mas foi, também, sintomático da direção em que a indústria do cinema se dirigia.
À medida que o sistema dos estúdios enfraquecia, os agentes ocuparam os vazios de poder para assim negociarem novos tipos de contratos em nome das suas estrelas, conseguindo-lhes liberdade perante o controlo dos estúdios e independência financeira. A agência mCA, de Lew Wasserman, que em grande medida foi a arquiteta da Nova Hollywood, havia negociado acordos que estabeleceram mudanças de paradigma epocais para James Stewart e Alfred Hitchcock. Assim que se tornou numa enorme estrela, Monroe juntou-se ao movimento pela produção independente, fundado as Marilyn Monroe Productions em 1956, com o seu amigo, o fotógrafo da revista Life, Milton Greene. Significativamente, foi fundamental a influência de Wasserman para a criação da empresa, que era então o agente de Monroe na mCA. No acordo final a Fox aceitou, entre outras coisas, que a atriz só teria que aparecer em quatros filmes dos estúdios nos sete anos seguintes, para os quais teria o poder de escolha do realizador, da história e, através da sua própria empresa, poderia desenvolver os seus próprios projetos.
Assim que Monroe conseguiu a sua independência, viu-se a par com o dilema de Marilyn e o futuro daquela que era a sua imagem cuidadosamente elaborada. Ela teria que, gradualmente, resolver a contradição entre essa imagem e as suas aspirações enquanto atriz. Ela sabia perfeitamente que a sua ascensão ao estrelato se devia aos seus fãs e tinha muito pouco que ver com a 20th Century-Fox. Na indústria, o apoio resultou, em grande medida, dos exibidores que perceberam rapidamente que ela tinha um enorme potencial de atrair o público para as salas e gerar receitas. Até antes dos seus primórdios no cinema, a sua imagem de “bomba loira” havia sido o primeiro degrau da sua carreira e o seu frágil passaporte para Hollywood.
Foi através do seu sucesso como modelo pin-up, quando trabalhava para a agência Blue Book, entre 1946 e 1947, onde seria fotografada por, entre outros, Andre de Dienes e Tom Kelly, que conseguiu o contrato com a Fox em 1946. O início da guerra da Coreia, em 1950, deu uma nova vida às pin-ups e foi através de postais e revistas que Monroe ganhou um grande número de seguidores. Até certo ponto, os seus cameos iniciais e os pequenos papéis que desempenhou são quase filmes de animação, versões dramatizadas da sua imagem de pin-up (resumida por Groucho Marx: “Ela é a Theda Bara, Mae West e Little Bo Peep numa só pessoa”). Na Fox, com Allan ‘Whitey’ Snyder o homem da maquilhagem, ela desenvolveu e definiu as características do estilo Marilyn e não há dúvidas de que ela compreendeu que tinha que construir, até explorar, a sua qualidade “olha-para-aqui” [“to-be-looked-at-ness”] de modo a conseguir impor o seu nome em Hollywood. À altura do lançamento de Niagara, no início de 1953, já recebia 25.000 cartas de fãs por semana. A sua fama de pin-up consubstanciou-se, de forma dramática, na sua viagem à Coreia (um desvio durante a sua lua-de-mel ao Japão com Joe DiMaggio, em 1954). Como refere Donald Spoto:
Em apenas dois dias a sua audiência incluía os militares embevecidos da 3.ª, 7.º, 24.º e 40.º divisões – 60.000 homens. A maioria deles nunca tinha sequer visto um filme com Monroe uma vez que a sua ascensão ao estrelato se havia dado quando eles já haviam sido recrutados. Mas eles conheciam a sua fotografia, o calendário, os fotogramas, os milhares de imagens em jornais e revistas.
Porém, se o olhar masculino [“male gaze”] lhe arranjou um lugar no cinema e fez dela uma superestrela, Monroe tinha outras ideias para o seu futuro. À época do seu primeiro contrato com a Fox, no final dos anos 1940, ela já havia iniciado um trabalho com o Actor’s Laboratory, em Los Angeles, no âmbito do qual havia tomado conhecimento de peças de teatro contemporâneas e socialmente conscientes; do teatro nova iorquino e da arte da interpretação. Quando teve finalmente poder para se rebelar contra a Fox, no momento em que o enfraquecido estúdio foi obrigado a capitular perante as suas exigências, assinando um contrato com as Marilyn Monroe Productions, ela começou a estudar teatro e a desenvolver as suas capacidades enquanto atriz, em particular com o Actors Studio de Lee Strasberg, em Nova Iorque, a partir de 1955.

De novo, esta opção de Monroe enquadra-se numa nova tendência geral que definia Hollywood nessa altura: pelo Actors Studio e o seu método haviam passado uma série de estrelas recentes como Marlon Brando e James Dean. Apesar desta reavaliação do seu estilo interpretativo no pico da sua carreira demonstrar que ela estava atenta às tendências de Hollywood, pode entender-se, também, como um gesto contra a tradição da indústria, e as já antigas contradições presentes no coração do sistema dos estúdios e do seu controlo inflexível das carreiras e das imagens das suas estrelas e de todos os atores sob o seu contrato.
Qualquer sistema de estrelas [“star system”] funciona como um encantamento, chamando o público para dentro das salas de cinema com base numa premissa de reconhecimento, regresso e repetição. Para se ser valioso para um estúdio, para se ser uma mercadoria vendável, as estrelas tinham que canalizar uma série de características numa personificação relativamente estável de si enquanto imagem. E para um estúdio, independentemente das mudanças de personagem e guarda-roupa de filme para filme, assim que uma estrela se estabelecesse enquanto tal, a continuidade era determinante. O truque estava em levar para o ecrã uma história e as suas emoções num gesto duplo inerentemente contraditório, de tal modo que o fator de reconhecimento da estrela ameaçava, claramente, a verossimilhança ficcional.
À medida que Marilyn Monroe se transformou num símbolo máximo da sexualidade, das pin-ups aos seus cameos ultrasexualizados, até chegar ao superestrelato de meados dos anos 1950, ela sempre foi mais imagem do que personalidade. Em vez de se produzir uma sugestão de personalidade a partir da continuidade da persona estelar, ela teve que personificar o “olha-para-aqui” e sustentar a sua máscara altamente desenvolvida, gestos estilizados e um comportamento no qual a interioridade de uma personagem seria, em grande medida, irrelevante. Deste modo, a natureza da sua imagem estelar como produto industrial coincidiu com o paradoxo estrutural da fetichização do corpo feminino. A superfície perfeita historicamente cristalizada por Marilyn contém o fascinado olhar masculino. Mas a perfeição é, em si mesma, frágil; uma fissura superficial revela a vulnerabilidade da psique masculina e o temido interior que o fetiche nega. Enquanto Monroe conseguiu manter alguma da dualidade essencial da estrela, foi capaz de trabalhar para alterar o seu significado.
A tarefa de Monroe seria a de encontrar uma forma de ultrapassar a Marilyn fetichizada. Na sequência do seu trabalho com o teatro experimental e o seu interesse pela dramaturgia social em oposição ao espetáculo, ela estava decidida em reconfigurar a imagem da “bomba loira” num registo completamente novo. Escusado será dizer que o seu aspeto [“look”] de Marilyn era fundamental para garantir o fator de reconhecimento que fizera dela uma estrela, e no qual o seu futuro, o da sua carreira e o sucesso das suas Marilyn Monroe Productions dependiam. Por isso, a alteração teria que implicar uma mudança na significação da sua superfície cosmética e na respetiva conotação de vulnerabilidade, longe das projeções da indústria e do público masculino.
O objetivo de Monroe (enquanto atriz e a sua própria produtora) seria enriquecer a Marilyn com uma substância social, através da qual se poderia refletir e fazer representar os dilemas que rodeiam a ideia e os efeitos alienantes do “olha-para-aqui” associado às mulheres. Além disso, ela podia usar a sua imagem construída para representar as considerações das suas personagens sobre essa mesma imagem, a sua interioridade, a sua vulnerabilidade e as suas incertezas enquanto objeto de desejo masculino. Tal como a sua inteligência inata, a sua relação especial com a câmara e o seu tempo cómico altamente desenvolvido elevavam os seus papéis de “loira burra”, o seus papéis posteriores como corista [Bus Stop (Paragem de Autocarro, 1956), Some Like It Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959), Let’s Make Love (Vamo-nos Amar, 1960) e The Prince and the Showgirl (O Príncipe e a Corista, 1957)] sugerem que Monroe estava a adaptar a sua identidade no ecrã, interpretando o dilema da corista em vez de o encarnar.
Monroe desejava, nas suas experiências como atriz, desenvolver uma imagem, dentro da cultura popular que ela dominara enquanto estrela, mas com a qual as mulheres comuns se pudessem relacionar. Ela formou-se com a alta cultura do teatro, mas o seu compromisso político era para com os oprimidos sociais e os desapossados. Ana Salzberg notou que em The Misfits (Os Inadaptados, 1961, escrito por Arthur Miller e no qual ela colocou tantas esperanças para a sua nova imagem e para o seu novo estilo de interpretação) estes desejos são dramatizados no primeiro momento em que Monroe surge no filme. A sua personagem, Roslyn, está sentada defronte de um espelho:
Capturada na luminosidade do espelho, o seu rosto enverga toda a sua famosa beleza: de forma simples, ela carrega a máscara de Marilyn Monroe, a estrela de cinema. No entanto, quando ela se afasta do espelho para encarar diretamente a lente, a câmara revela uma figura um pouco diferente num plano médio: uma mulher com olheiras e rugas em redor dos olhos, a tensão no seu rosto que era tão difusa no reflexo torna-se agora completamente aparente. [6]
Em The Misfits, Monroe desenvolve um extraordinário ato de equilíbrio, além da oposição entre estrela e personagens impostas pelas convenções da indústria ou o naturalismo da ficção de Arthur Miller, numa meditação autorreflexiva sobre a imagem, que só ela poderia construir a partir das ruínas de Marilyn. Roslyn não é uma corista, ainda que as fotografias afixadas no seu armário sugiram que esse tenha sido o seu passado, mas a sua personagem relaciona-se com as questões da máscara e da vulnerabilidade. Se Roslyn já não é assim tão jovem, ela é ainda glamourosa. Ela representa, como à altura era entendido, uma versão democratizada de Marilyn, como se Monroe procurasse refletir sobre a multiplicidade de mulheres que se haviam inspirado na sua imagem durante os seus dias de superestrela. Ela desenvolve a aparência atrativa exterior de Roslyn como uma superfície defensiva; vulnerável às pressões emocionais do dia-a-dia de uma mulher, essa imagem pode dissolver-se, como acontece no filme, em lágrimas. Roslyn foi o último papel da vida de Monroe e, apesar da sua desilusão com Arthur Miller, as tensões em redor do argumento e os problemas de produção como um todo, a personagem destaca-se como um testemunho das suas ideias sobre a significação psicológica e social da loira costemicizada.
Comecei este ensaio com alguns apontamentos sobre várias coincidências entre Marilyn Monroe e Charlie Chaplin. Procurei frisar o modo como ambos produziram imagens icónicas que funcionaram como disfarces perfeitos dos seus respetivos reconhecimentos. Para os dois, o desejo de auto-reinvenção pode relacionar-se com as infâncias complicadas pelas quais ambos passaram. Mas no caso de Monroe, há a sensação de que a máscara original de Marilyn, a bem-sucedida fetichização da sua imagem, poderá resultar da sua necessidade de escapar, definitivamente, de Norma Jeane. Nas personagens do seu final de vida, especialmente Roslyn, há uma sensação contrária de que Monroe estava a tentar recuperar, para o seu trabalho de intérprete e para as personagens a que escolhia dar corpo, algo da inescapável Norma Jeane.
Para mim, interessa-me a evolução do estilo de interpretação de Monroe que está, até certo ponto, em contradição com o meu interesse pela performance da superestrela, com a sua conotação do artifício, da fabricação e do fetichismo. A sua extraordinária fotogenia e a sua intrincada relação com a câmara são importantes para reflexões sobre género, mas também conduzem para o cinemático e para a ideia do corpo do ecrã como uma construção que evoca os mecanismos do cinema, algo tão celebrado pelo espírito da modernidade.

Apesar de já ter escrito sobre a imagem da Monroe loira em Fetichism and Curiosity, comecei a refletir mais precisamente sobre as implicações cinemáticas do seu trabalho de atriz no contexto do livro Death 24x a Second: Stillness and Moving Image. Remontei o dueto de música e dança entre a Monroe e a Jane Russell em Gentlemen Prefer Blondes, “Two Little Girld from Little Rock”. Foi uma das minhas primeiras experiências com o cinema desacelerado [“delayed cinema”], onde explorei a mudança, na atenção dos espectadores, quando um filme é tornado mais lento, imobilizado ou uma das suas sequências é repetida, sempre de modo a tentar possuir e agarrar o corpo do filme enquanto se reflete e analisa a natureza fílmica. Fiquei fascinada pela forma como a Marilyn era capaz de levitar entre movimento e imobilidade e o modo como as pausas, o slow motion e as repetições do cinema desacelerado, no caso dela, materializavam algo que já lá estava. Acabei por escrever os meus pensamentos sobre estes remixes segundo os termos da performance gestual e este texto resulta, em parte, dessas notas.
Ainda que, potencialmente, a não-naturalidade ameace romper com as convenções naturalistas do cinema, cuja narrativa naturalizou mais ainda, a medialidade [“mediality”] dos gestos de Marilyn faz ressoar o próprio meio, evidenciando a fusão com o humano que o projetor anima. Pasi Väliaho argumenta que o cinema sustenta o corpo animado: “A imagem em movimento não representa simplesmente os gestos corporais, as poses e os movimentos, mas, inversamente, agrilhoa os gestos no seu positivismo tecnológico, ao torná-los imanentes em termos da modulação dinâmica do corpo.” [7] Os gestos de Marilyn são grilhões tecnologicamente visíveis e mecanicamente modulados.
Ao observar e trabalhar sobre a série de gestos de Marilyn na sequência de Gentlemen Prefer Blondes acabei por ver nela uma figura exemplar da fotogenia [8]. Pareceu-me que uma análise que simplesmente teorizasse a Marilyn Monroe nos termos da sua relação entre corpo e meio acabaria por descorar a inteligência que ela trazia ao filme (que vai além da presença física e do glamour, independentemente da importância destes), isto é, a sua sensibilidade fotogénica. De uma qualquer forma enigmática e consciente das tensões entre imobilidade e movimento no cinema assim como das tensões entre imagem em movimento e fotografia, ela conseguia fazer e manter uma pose quer no fluxo do filme como no instante da fotografia. Em qualquer dos casos essa pose é passageira, sugerindo uma continuidade de movimento no contexto da imobilidade da imagem ou de uma estase desnaturalizada no contexto da imagem em movimento. A sensibilidade fotogénica de Marilyn habita um espaço de incerteza, algures na relação paradoxal entre imagem parada e em movimento em que a sua fotogenia atua.
Enquanto a maquilhagem lhe restringia a amplitude de expressões faciais, o seu loiro e o recurso à cosmética mantinham-lhe a vitalidade e a luminosidade vivas, que lhe produziam a relação especial dela com o meio fotográfico. Sem sequer ser necessário desacelerar o fluxo do filme ou imobilizar a imagem, a natureza gráfica da “máscara” de Marilyn gera a sua própria lentidão, absorvendo a atenção da câmara como que capturada por uma lentidão inerente a si, ao ponto de que os seus grandes planos criam um ponto de repouso comparativo ou uma estase. Um realizador estaria consciente deste efeito e uma das razões, sem sombra de dúvidas, para o poder particular da dita sequência de Gentlemen Prefer Blondes resulta de Howard Hawks salientar, logo desde o número de abertura do filme, a dimensão “atrativa” de Marilyn (nos dois sentidos da palavra), recorrendo ao artifício da dança para lhe dar, e ao seu grande plano, um impacto máximo.
No gesto final dessa sequência, o grande plano de Marilyn captura o que há de inefável no sexo e no desejo. A sua pose prolonga-se e suspende-se por um segundo, quando a letra da canção deixa de a acompanhar. Mas nos últimos fotogramas ela vira-se ligeiramente e, como se a sua luminosidade houvesse sido atravessada por uma sombra quase invisível, a sua expressão perde algo do distinto e icónico look Marilyn, como se a mortalidade tivesse tingido aquela celebração da sexualidade. Agora, com o benefício do poder retrospetivo, o espectador que atrasa e reflete sobre esta imagem pode facilmente sobrepor as “Marilyns” que Andy Warhol serigrafou, como homenagem à atriz quatro meses após a sua morte, em agosto de 1962. Nessas obras, Warhol aproxima, de forma perturbadora, a máscara da beleza com a máscara da morte. A sobreposição imaginária da serigrafia de Warhol com a imagem da então ainda viva Marilyn produz uma sensação de significado diferido, como se a pose prefigurasse a imobilidade da morte.
O choque da sua morte definitiva é, agora, parte da sua mística e do seu legado, a ponto de que a natureza cosmética e artificial da sua imagem parece já, simultaneamente, repelir e prefigurá-la. Este tipo de conhecimento adicional, combinado com o passar do tempo, traz o “estremecimento de uma catástrofe que já ocorreu”, mencionado por Roland Barthes em relação a Lewis Payne, o jovem fotografado antes da condenação à morte. “Li ao mesmo tempo: isto será e isto foi; observo com horror um futuro anterior no qual a morte estava em jogo.” [9]. Aqui surge o outro paradoxo cinemático: não só as máquinas (câmara e projetor) animam os fotogramas estáticos e inanimados da película e dão a ilusão de movimento às imagens dos seus intérpretes humanos, mas a ilusão também mantém os mortos vivos, enquanto eles executam e re-executam perfeitamente os seus gestos que foram, por uma vez, vivos.

CODA 2: Whitey Snyder conta esta história sobre Marilyn Monroe. Durante a rodagem de Gentlemen Prefer Blondes, ela teve que ir para o hospital. Quando se estava a preparar para sair, ligou ao Whitey a pedir-lhe que lhe fizesse a maquilhagem, “para que caso ela se cruzasse com o público, a imprensa ou qualquer pessoa, estivesse bem”. Perguntou: “Vais-me prometer que se alguma coisa acontecer comigo neste mundo, quando eu morrer, serás tu a fazer a minha maquilhagem para que eu fique bem no momento da partida.” Ele respondeu, “Só se tu ainda estiveres quente, Marilyn.” Ela deu-lhe um clipe de dinheiro onde se lia: “Querido Whitey, enquanto eu ainda estiver quente, Marilyn.” Quando ela morreu, Joe DiMaggio ligou-lhe e disse “Whitey, prometeste”. Então ele foi à morgue e fez-lhe a maquilhagem pela última vez.
Esta anedota exemplifica, a meu ver, com uma verossimilhança perfurante, a “sensibilidade fotogénica” de Marilyn, quase como se ela compreendesse a relação entre a máscara cosmética, a imagem fotográfica e a máscara da morte. Mas esta anedota conduz-nos de volta à relação alegórica entre Hollywood e a carreira de Marilyn Monroe. Reconhecida como um emblema global do glamour de Hollywood, a sua imagem icónica poderá ter ajudado a ocultar o declínio do sistema dos estúdios que se precipitara durante os anos 1950. Mas a sua morte, a 5 de agosto de 1962, certamente terá soado como a sentença de morte para a Hollywood que se desenvolvera com a indústria, juntamente com Charlie Chaplin, nos anos após a Primeira Guerra Mundial.
Laura Mulvey
Extracted and translated from Afterimages: On Cinema, Women and Changing Times by Laura Mulvey (Reaktion Books, London, 2019, pp. 57-71).
Copyright © Laura Mulvey 2019
Tradução: Ricardo Vieira Lisboa
[1] No início das suas carreiras, ambas as estrelas, em entrevista, evitaram a questão de terem as mães em instituições psiquiátricas declarando que estas haviam já falecido. Ambos, no entanto, esclareceriam a questão anos mais tarde.
[2] Gary Vitacco-Robles, Icon: The Life, Times, and Films of Marilyn Monroe, vol. i: 1926 to 1956 (eBook, 6 março 2014).
[3] Donald Spoto, Marilyn Monroe: The Biography (London, 1994), pp. 121, 195.
[4] Ibid., p. 284.
[5] Ibid., p. 290.
[6] Ana Salzberg, Beyond the Looking Glass: Narcissism and Female Stardom in Studio Era Hollywood (Oxford e Nova Iorque, 2014), p. 144.
[7] Pasi Valiaho, Mapping the Moving Image: Gesture, Thought and Cinema, c. 1900 (Amsterdão, 2010), p. 17.
[8] Fotogenia era o termo usado por alguns cineastas franceses avant-garde dos anos 1920 para descrever o modo como a câmara podia tirar partida das suas propriedades mecânicas e da sua relação com a luz, as sombras e a materialidade da película para transformar coisas d quotidiano ou, até, pessoas, em algo especificamente cinemático.
[9] Roland Barthes, Camera Lucida: Reflections on Photography, trad. Richard Howard (Nova Iorque, 1981), p. 96.
[10] Lawrence Crown, Marilyn at Twentieth Century Fox (Londres, 1987), p. 210.