Numa sequência muito famosa de Le Mépris (O Desprezo, 1963), de Jean- Luc Godard, Fritz Lang, ao ver as rushes do filme que está a realizar sobre Ulisses, responde ao produtor (Jack Palance) para ele não se esquecer que “os deuses não criaram o homem, mas antes foram os homens que criaram os deuses”. Esta inversão poderá ter o seu interesse se pensamos na escrita de argumento. Perguntamo-nos: é a omnisciência dos deuses (da escrita) que criam as personagens? Ou são as personagens que criam o sentido de omnisciência e superioridade? Nesta última hipótese, um “all seeing eye” que se estabelece a partir da profundidade de cada ser humano de palavras (e, depois, de luz e sombras). De certo modo, e num sentido literal, o autor cria as suas personagens. Contudo, numa dimensão mais profunda, as personagens, na sua individualidade, guiam o fazer de quem as dá à vida ficcional. Isto é, guiam o escriba.
Estes aparentes dilemas de ovo e galinha sugam-me a consciência durante as quase duas horas de Minari (2020) do realizador americano de ascendência coreana, Lee Isaac Chung. Sabemos que a ideia para o filme se baseia nas memórias e experiências do próprio cineasta aquando da sua infância numa quinta no Arkansas. Neste sentido, Minari é um filme-lembrança. E talvez surjam aqui os seus principais problemas. A família que nos é apresentada – pai, mãe, dois irmãos (entre os quais o pequeno David, que se supõe ser Chung em criança) e avó – nunca deixa de ser devedora de algumas ideias abstratas que devoram a vida interior das personagens. Que ideias são essas? Desde logo, a dimensão biográfica que acaba por fazer corresponder cenas a memórias concretas: por exemplo, a chegada da avó como quando sempre acontece, trazendo comidas de casa e presentes para as crianças, a timidez dos primeiros olhares depois de muito tempo de ausência; ou a discussão dos pais ante as dificuldades, sob o olhar das crianças.
se Parasitas permitia pensar a desconstrução a partir de um dentro através do modus operandi do parasita, no filme de Lee Isaac Chung temos a lógica adaptativa do “organismo estranho”: o parasita não suga, é sugado por uma lógica que o absorve para o interior do seu próprio organismo.
Todos estes “segmentos de memória” surgem em Minari encenados a partir de uma realização e câmara sobretudo funcionais, com excepção dos momentos (demasiado) líricos na relação com a natureza, que procura sublinhar-nos a beleza e a nostalgia de um passado triste, mas alegre ao mesmo tempo. Instalar o espectador numa edilidade rural.
Outra ideia que varre o subconsciente do filme é o facto de Minari querer abordar o tema da integração de uma família de um outro país, numa comunidade rural da América. Os olhares, a curiosidade, as dificuldades, o sonho americano. E com este tema, virão as “boas intenções” do acolhimento (já lá vamos).
Assim, entre a vontade de Chung nos querer emocionar com as suas memórias familiares e a vontade de abordar os problemas de deslocação e integração de uma família de origem coreana num espaço rural, cultural e religiosamente americano, sobra pouco espaço para a construção realista das personagens. Falemos do centro emotivo do filme: a avó. Por exemplo, o neto diz-lhe que ela não é uma avó de verdade pois não faz bolos. Essa “sentença” infantil tem uma correspondência imediata e simplista na personagem: ela gosta de ver luta livre na televisão, jogar às cartas e não quer saber de arranjar as roupinhas do netinho. Isto é, ela converte-se numa caricatura de “avó cool”, da qual o espectador espera retirar os momentos mais bem dispostos do filme. E fazer corresponder uma ternura abstracta, veiculada pelo overacting de Yuh-Jung Youn, uma ideia de talento num certo histrionismo suave, uma crença na “magia do cinema” bonito de carácter (o Oscar, naturalmente, pertenceu-lhe).
Outro exemplo, é dado pelo clown de tiques, o americano religioso fanático, mas de bom coração que ajudará a família. Ou ainda a caricatura de mãe que se opõe sistematicamente ao projeto do marido, em sequências de discussão que se vão acumulando sem consequência e sem que saibamos com profundidade aquilo que sente e a motiva. Em suma, o realizador assinala quando e como deve rir-se. Quando e como devem sentir-se emoções profundas. Lembro o momento da “corrida” final da criança, encenada para sublinhar esse amor entre neto e avó, como superação da sua condição de “doente”. E Minari assinala-nos ainda como e quando devemos ler a simbologia transparente da planta resiliente, o minari do título, como o amor e o projecto familiar que resiste à adversidade.
Em suma, de Minari toda a gente sai emocionada, esclarecida e a sentir-se bem com o triunfo do amor, da força e da integração.
O ano passado tivemos Gisaengchung (Parasitas, 2019) de Bong Joon Ho a vencer o Oscar de melhor filme. E muita gente brincou com esta ideia de um filme coreano ter funcionado como “parasita” do sistema de Hollywood e seus prémios. Ora, sabemos como é cínico e impiedoso o capitalismo: o que outrora assoma como “o fora”, ameaçador de um status quo, logo é integrado e posto a render. As margens de ontem são o centro do dia seguinte. Veja-se o estatuto “indie” de Sundance, hoje absolutamente centralizado. Sundance aliás que deu os primeiros prémios a Minari (público e júri numa unanimidade a reflectir).
Este ano, na lista de nomeados ao melhor filme, Minari desempenharia o papel de suposto outsider, como o filme de Bong Joon em 2020. Com esta nuance, o outsider já é ele fabricado a partir de dentro – da máquina de Hollywood. Se pegarmos na piada do quem “parasita” quem, a premissa inverte-se. Não será a fabricação de Minari, enquanto obra mellow, debruçando-se sobre a ideia do acolhimento, da recepção e encontro do americano com um “suposto diferente”, uma integração conveniente, “americanizada” desse estatuto do longínquo? Por outras palavras, se Parasitas permitia pensar a desconstrução a partir de um dentro através do modus operandi do parasita, no filme de Lee Isaac Chung temos a lógica adaptativa do “organismo estranho”: o parasita não suga, é sugado por uma lógica que o absorve para o interior do seu próprio organismo. O lema parece ser: venha quem vier por bem e quem estiver disposto a ser como nós.
E talvez por isso tenhamos a sensação que Minari seria o “filme diferente” da lista dos nomeados. Mas uma diferença fabricada dentro, no absoluto paradigma da semelhança. Lembremo-nos da lista exaustiva de planos bonitos do sol, das plantas molhadas, da câmara ao nível da relva e das crianças. Brad Pitt foi um dos produtores executivos, mas há mais Brad por aqui: a lente de Chung procura um diálogo com Tree of Life (Á árvore da vida, 2011), também ele um filme de crescimento familiar e de natureza bonita e nada inóspita.