Na história que encerra a trama narrativo-ensaística que compõe Die Macht der Gefühle (O Poder dos Sentimentos, 1983), de Alexander Kluge, um homem é violentamente golpeado na cabeça por um assaltante que o deixa estendido num tapete, inconsciente. Um casal, donos do apartamento em que se sucedeu a tentativa de homicídio, com receio de se verem envolvidos no imbróglio judicial que poderá daí decorrer, carregam o corpo para uma cabana na floresta e lá cuidam do inanimado homem. Sabem que para manter ativo o cérebro é necessário continuar a estimulá-lo, daí que, numa das sequências, leiam, em simultâneo, palavras avulsas de vários livros, produzindo uma cacofonia de passagens aleatórias que acaba, num dos planos seguintes, por reanimar o comatoso senhor.
Com a cabeça ligada, ele abre timidamente os olhos e observa uma lâmpada que balouça no teto. O narrador informa, “Se uma pessoa movimentar objetos luminosos defronte de uma criança de quatro semanas, os olhos desta acompanham o movimento, ainda que a cabeça permaneça imóvel. Uma expressão de inteligência surge no seu rosto. Um olhar ativo…” E a frase é subitamente interrompida (para não mais ser terminada – o final do filme aproxima-se) e ficamos sozinhos com o olhar do homem, combalido, que persegue o casquilho, para lá e para cá, sem mexer a cabeça. Desse salvamento transfronteiriço (porque o homem é um traficante de diamantes soviéticos e eles querem devolvê-lo à sua terra natal) re-nascerá a paixão do casal. Nesta sucessão de imagens encontra-se, parece-me, uma súmula perfeita do projeto cinematográfico de Alexander Kluge, sendo possível descobrir nela ecos em muitos dos seus filmes (tantos os anteriores, como os seguintes), e de forma mais evidente em Orphea (2020).
Aqui comprimem-se várias ideias: o poder da palavra que é capaz de trazer aos mortos à vida; a cacofonia como ferramenta torrencial de combate à inerência das coisas; a força do medo/horror e do amor/paixão, juntas – como tendências inseparáveis de um mesmo gesto; a atração da luz e do movimento que capt(ur)a o espetador como uma traça; a redescoberta (na idade adulta) da inocência do olhar pós-natal; a estimulação do “olhar ativo” a que se impõe um trabalho de acompanhamento, interpretação, comparação, justaposição, etc.; a fronteira (geográfica, mas também aquela que separa géneros cinematográficos e literários) como local onde nos demoramos e descobrimos o outro a partir do nosso posto; e, por fim, o conceito de interrupção, de descontinuidade, da natureza fragmentária dos raciocínios, das palavras e das próprias imagens.
Se no cinema que o realizador desenvolve nos anos 1980 estes temas são explorados de um ponto de vista formal – há uma estrutura encantatória de tecedeira milenar que cruza, impercetivelmente, narração ficcional, texto literário, pintura, cinema, tratado filosófico, informação histórica e científica, ópera, entrevistas e outros registos documentais -, são-no, acima de tudo, de um ponto de vista alegórico – veja-se o extraordinário Der Angriff der Gegenwart auf die übrige Zeit (The Assault of the Present on the Rest of Time, 1985). O fragmento é, primeiro, um assunto e, só depois, a substância do filme. A isso acrescenta-se, como já dei a entender, uma noção de elegância que costura os retalhos numa sedosa manta. Depois dos anos em que quase deixa o cinema para se dedicar por inteiro à televisão (ao longo da totalidade da década de 1990), Kluge abandona qualquer noção de polimento, assumindo violentamente as costuras das suas tapeçarias fragmentárias. A imediatez e alta velocidade caracterizam a produção do cineasta nos anos 2000, quando regressa ao cinema de maior fôlego narrativo, a que se acrescenta o elogio da desconexão, nos anos 2010, quando envereda pelo cinema instalado e converte (e canibaliza) a sua prática cinematográfica e televisiva em vídeo-arte.
Assistir a Orphea implica aceitar o elogio da dissonância, a partir daquele que é, possivelmente, o último representante da estranha interseção entre o dadaísmo e a teoria crítica: Alexander Kluge.
Daí que assistir, sem possibilidade de perspetiva, a Orphea seja, antes de tudo mais, um choque; um violentíssimo choque. Como afirmou, em entrevista recente a António Guerreiro, para a revista Electra, “sou um iconoclasta, um iconoclasta moderado”. E essa devoção às imagens, já numa terceira fase de processamento (isto porque neste momento Kluge trabalha, muitas vezes, com imagens de filmes seus que, por sua vez, já haviam integrado outras composições durante os anos de televisão – numa mise en abyme da auto-citação) resulta em soluções que mergulham, alegre e convictamente, no fértil lamaçal do kitsch. Kluge é, muitas vezes, comparado (inclusive por si) a Jean-Luc Godard, e de facto a radicalidade destes dois nonagenários (o alemão faz 90 anos em fevereiro próximo) é semelhante. Só que se Godard gosta de explorar a abjeção (xixi, cocó), só muito raramente se deixa submergir na celebração do ridículo. Kluge, por seu lado, delicia-se nesse banho de imersão do mau-gosto, como um ralo de esgoto que engole tudo: tanto o lixo como a poesia, e tudo o que se encontra entre uma coisa e outra.
Nessa mesma entrevista, o realizador provocado pela recorrente imagem do Anjo da História, que Walter Benjamin constrói a partir de uma pintura de Paul Klee, responde com uma outra obra do mesmo pintor, Stachel der Clown (Prickle the Clown, de 1931). Este é, segundo Kluge, um anjo “pragmático”, por oposição ao outro, “melancólico”. É um anjo com uma “pá para cavar”, um “arqueólogo”, um “comediante”, um “operador”, um “anjo que olha em frente”, que é “prático e trabalha com as mãos”. Mas acrescenta, “ambos formam o meu estandarte”, “são gémeos”, e dão origem a uma criatura “bifrontal, com Janus”. Esta ideia de que um artista (e, mais geralmente, uma pessoa) é múltiplo e congrega em si vários e díspares olhares é algo que Kluge defende em diversas entrevistas – regressando à de Guerreiro, ele diz, por exemplo, que “em mim [Benjamin e Adorno] dão-se bastante bem”, em alusão às conhecidas oposições entre os dois filósofos.
Daí que, e regressando a Orphea, seja importante perceber que este é, de forma extrema, um desses filmes multitudinários – a começar por ser uma co-realização com o prolífico cineasta filipino (cuja obra desconheço), Khavn de la Cruz, com metade da idade de Kluge e, aparentemente, muito nos antípodas da prática ensaística do realizador alemão. Orphea constitui a segunda colaboração da dupla, depois de Happy Lamento (2018), e apresenta-se numa estrutura quase epistolar, parecendo, a espaços, uma improvável correspondência entre dois olhares opostos: geracionalmente, geograficamente e culturalmente, mas ligados pela mesma radicalidade underground punk, por uma fímbria narrativa (o mito de Orfeu e Eurídice aqui com um câmbio de género, Orfea e Euridico – “o poder da palavra que é capaz de trazer aos mortos à vida”) e pelo corpo de uma atriz, Lilith Stangenberg.
Fora isso, este filme funciona como local de experimentação (do chroma key manhoso que caracteriza muita da prática televisiva de Kluge aos drones de Khavn) de onde se depreende que a adversativa não se enquadra no processo artístico dos dois realizadores. Kluge envereda pelos seus habituais desvios operáticos, com leituras, máscaras de carnaval, pinturas, intertítulo diagonais em comic sans, imagens de arquivo e tangentes sobre a luta musical contra o fascismo promovida pela URSS, a crise dos refugiados (aquando da descida ao submundo de Orfea) apresentada em paralelo com a invasão nazi da Polónia – nos ecrãs tripartidos que funcionam de base à sua “trialética” audiovisual pós-2010. Já Khavn saltita entre imagem digital cristalina, vídeo, stop-motion, câmara de 360º e película Super 8 a preto-e-branco, com intertítulos caligráficos em tagalo, por entre danças e performances mais ou menos gritadas, onde a intérprete germânica interage com um elenco integralmente filipino, e onde as línguas se misturam numa babel polifónica onde o inglês surge como o único ponto de contacto.
Assistir a Orphea implica aceitar o elogio da dissonância e do esdrúxulo, a partir daquele que é, possivelmente, o último representante da estranha interseção entre o dadaísmo e a teoria crítica da Escola de Frankfurt. Algo que se encontra cristalizado no momento em que se escuta a canção “O Regresso do Mamute” (na enfurecida entoação de Stangenberg e na jocosa dramaturgia de Kluge), com base num poema póstumo de Theodor Adorno, onde se ouve:
O que é aquilo que conduz um carro enquanto estica a sua longa tromba?
O que é aquilo que conduz um carro enquanto estica a sua longa tromba?
É um mamute. É um mamute. É um mamute. E está a guiar de volta para casa.
É um mamute. É um mamute. E está a guiar para casa. A guiar para casa.