Numa das primeiras publicações inteiramente dedicadas à obra de Manoel de Oliveira (Introdução à obra de Manoel de Oliveira, editado quando o cineasta tinha assinado apenas seis longas-metragens), Henrique Alves Costa refletiu sobre a dimensão erótica do cinema do realizador, num ensaio apropriadamente intitulado “O erotismo e a sexualidade na obra de Manoel de Oliveira”. Lá pode ler-se: “Creio que não há um só filme de Manoel de Oliveira que não acuse, ainda que subtil e fugazmente, uma ponta de sensualidade (que é, sem dúvida, um reflexo da sua própria sensualidade). Por vezes é mesmo uma manifestação declarada, embora breve. Desde a cena do almoço do rapaz do carro de bois, no Douro Faina Fluvial [1931], com um gritante símbolo fálico, até à lindíssima e discretamente sensual figura de Mariana do Amor de Perdição [1978], (…) surge sempre um qualquer símbolo erótico ou um sopro de sensualidade envolvente, quando não é mesmo um gesto um tanto grosseiro, como a cena do jardineiro com a mangueira, em O Passado e o Presente [1972], ou a do burro da carroça, em Famalicão [1940].”

A sexualidade, a fertilidade e o desejo são alguns dos temas que melhor definem a obra de Oliveira, de uma forma mais explícita e inocente na primeira metade, de uma forma mais perversa na segunda. Ao ver Prazer, Camaradas! (2019), de José Filipe Costa houve uma cena, em que umas mãos de mulher amassam o pão enquanto, na banda-sonora, se escutam gemidos sexuais e se reflete sobre a autoestimulação genital, que me fez lembrar de O Pão (1959), de Oliveira, e da sua sequência de abertura.
Numa igreja nada adornada duas silhuetas ganham o corpo e o rosto de dois jovens camponeses, a trilha sonora informa-nos que se trata de um matrimónio católico. Sem cortes a câmara acompanha a mão dele que recebe o anel de fora de campo, insere a aliança no dedo anelar dela, e vice-versa, sendo que num raccord de movimento e de ação se liga a inserção da aliança dele com um plano que mostra um arado a entrar na terra. A conotação sexual é evidente: o arado penetra a terra como o esposo penetrará a esposa na “consumação institucional” do casamento, na noite de núpcias. Portanto esse raccord liga o movimento da colocação do anel de casamento (que estabelece um vínculo social entre dois indivíduos e destes perante a sociedade) com o movimento do arado com a terra (nova ligação frutífera, de cuidado e auxílio, entre o humano e natureza), servindo, eroticamente, de elipse sexual nada discreta (quase grosseira, como diria Alves Costa). Do plano picado do arado corta-se para um plano lateral do homem guiando o carro de bois com a mão que carrega, visivelmente, a dita aliança dourada. Depois, três planos, consecutivos, do arado lavrando o solo e, por fim, um plano de uma pomba branca levantado voo. Corte, seara de trigo contra céu nublado.

Sendo esta uma das sequências mais discutidas de O Pão, por aqueles que sobre ele refletiram, aquele que, a meu ver, fez a melhor e mais profunda leitura desta série de planos, foi José Manuel Costa, na folha da Cinemateca, onde se lê: “Após a imagem do casamento, Oliveira salta para a terra, rasgada pelo arado. A fecundação da terra é, como a outra, legitimada pela instituição. Daí poder-se-ia saltar (…) para o trigo já crescido, segundo o que o raccord imediato e essa mesma legitimação justificaria. Porém, entre um plano e outro, entre a terra rasgada e o trigo que dela brota, introduz-se uma nova mediação: o plano da pomba branca que larga a terra soltando-se no céu. O critério, aqui, não é de pura necessidade (…). Por um lado, que a passagem da semente ao fruto requer alguma ajuda suplementar (…): só cresce o que recebe a mediação divina (…). Mas, por outro lado, a insólita aparição não é só presença do divino, pois que é evidentemente a presença do… realizador. Ou seja, segundo a mesma ordem de ideias: só cresce o que o realizador faz crescer. Porque a intromissão de um tal plano é a afirmação frontal do autor e do cinema. O código do raccord arado-trigo é, hoje, um dado assimilado. A mediação que Oliveira lhe introduz é a afirmação do artifício, a condição do processo produtivo que é o filme.”
O grande trunfo de Prazer, Camaradas! reside no modo como este documentário encenado se faz a partir dos próprios intérpretes que carregam, nas rugas do rosto, todas as esperanças e todas as desilusões desses dias de processo revolucionário.
Ao reler estas palavras de José Manuel Costa fico com a perfeita noção que estas se aplicam, com todo o critério, ao filme de José Filipe Costa. Não tanto no modo como o realizador se representa por meio de alegoria, antes na forma como este trabalha o artifício e expõe os mecanismos proto-ficcionais que emprega. Prazer, Camaradas! é um objeto que habita essa profícua fronteira entre documentário e ficção, na sequência da investigação que o realizador havia iniciado com Linha Vermelha (2011), onde se interrogava a natureza construída do “documento” Torre Bela (1975), de Thomas Harlan – registo da ocupação da dita herdade que Filipe Costa analisava no sentido de perceber a profundidade da intervenção dramatúrgica do realizador enquanto grande encenador do proletariado rural pouco consciente dos modos iconográficos da revolução. Após esse filme – que decorria (ou se desenvolvia paralelamente) de uma investigação académica -, Filipe Costa parece ter colocado em prática os ensinamentos cenográficos de Harlan numa curta-metragem posterior, O Caso J. (2016). Nela, as transcrições de um julgamento em tribunal sobre o homicídio de um jovem pela polícia do Rio de Janeiro promoviam uma filme de tribunal teatralizado onde a estrutura dialógica se refletia tanto na cor (do filme e das peles das personagens), como no despojamento cénico e na pantomima semi-burlesca dos atores.
Com Prazer, Camaradas!, o recurso, não sendo o mesmo, mantém com ele um mesmo vínculo artificioso. Só que, agora, a dimensão “brechtiana” da farsa resulta da anacronia entre o texto (que se coloca no Verão Quente de 75) e os corpos dos intérpretes que, tendo participado dos “eventos” retratados à época, se apresentam, hoje, abatidos pelas quase cinco décadas decorridas. Aí reside o grande trunfo de Filipe Costa, no modo como este documentário encenado se faz a partir dos próprios intérpretes que carregam, nas rugas do rosto, todas as esperanças e todas as desilusões desses anos revolucionários. Ao pedir-lhes para se re-encenarem, em modo nostálgico-burlesco dos seus “verdes anos”, produz-se um tocante efeito de empatia: a velhice surge como uma bonita festa adolescente onde o despudor e a conhecimento libertam as personagens do tempo que as produziu e iluminam as pessoas no momento em que as/se interpretam. Conseguindo o realizador manter um estranho equilíbrio entre a auto-caricatura sorridente e o testemunho sociológico.
Essa tensão entre a dimensão científica e o pequeno teatro de robertos ambulante junta-se, naturalmente, a uma componente ideológica e histórica, onde se reflete sobre o “turismo revolucionário” e a perspetiva estrangeira do 25 de Abril. E aí Prazer, Camaradas! destaca-se dos dois anteriores títulos que abordaram diretamente esta questão: o documentário talking head Outro País (1999), de Sérgio Trefaut, e a ficção de produção suíça Les grandes ondes (à l’ouest) (As Ondas de Abril, 2013), de Lionel Baier. E por aqui recupera-se a dimensão sexual que aflorei a princípio – e que define o centro nevrálgico do filme de Filipe Costa. Um dos meus conflitos com o filme de Baier prendia-se com a sua leviandade histórica que encarava o PREC como uma utopia soalheira. Esse filme abordava, de forma interessante mas muito inconsciente, a libertação sexual desses tempos revolucionários (em grande parte estimulada pelo sangue estrangeiro que trazia novas posturas sobre a moralidade e a sexualidade). Só que retratava isso de forma direta, com homens abraçados uns aos outros, mulheres beijando-se e multiplicando-se em referências a variados bacanais onde tudo e todos são experimentados. Sabemos que as coisas não foram bem assim: poucos dias depois do 25 de Abril já se ouvia o coronel Galvão de Melo avisar que “a revolução não foi feita para putas nem paneleiros”. A revolução poderá ter sido uma alegria, mas não fez avançar décadas a mentalidade de um país provinciano. Filipe Costa tem noção disso e aborda a homossexualidade (em particular a feminina) com subtileza – sempre sublinhando criticamente o marialvismo lusitano. Esse é, com certeza, o grande contributo do filme: retratar e refletir sobre uma revolução que alterou tudo mas manteve as mesmas estruturas de poder patriarcal e os mesmos papéis de género.
Regressando a Oliveira, Filipe Costa convoca, igualmente, uma série de imagens que partilham dessa mesma inocência quase-ordinária das de Oliveira. Este é, aliás, um dos aspeto mais lúdicos e, simultaneamente, cândidos, de Prazer, Camaradas!: a forma como materializa o sexo em imagens de uma enorme clareza – por vezes explícita -, mantendo, apesar disso, uma certa doçura imberbe que preserva, nos corpos e mentes maduras, a vibração da virgindade. São várias essas imagens, as mais marcantes, naturalmente, encontram-se nas duas cinturas dançantes, destituídas de tronco, envergando grossos e negros dildos eretos, saltitando ao compasso dos corridinhos – que surge na sequência de uma encenação a propósito dos bailes onde se dava o engate sob o olhar controlador das progenitoras. Outra imagem, igualmente clara, mas aqui infetada por uma ironia feminista, encontra-se no lençol subitamente pigmentado (digitalmente) de vermelho, depois de uma conversa entre várias lavadoras que recordam como “perderam o cabaço”. Essa imagem, de um lençol encarnado de sangue sacudindo-se ao vento remete para o hímen rebentado, mas, decorrendo a ação em latifúndios recém ocupados em pleno Processo Revolucionário em Curso, não deixa de recordar a bandeira comunista hasteada em Bronenosets Potemkin (O Couraçado Potemkine, 1925), de Sergei M. Eisenstein, o único elemento colorido desse filme. Nessa imagem – elemento disruptivo, até pelo kitsch da intervenção digital – cristaliza-se, num só símbolo, a luta do proletariado e a luta feminista (numa alegre inversão dos sentidos opressores da violência e ignorância sexual a que eram submetidas muitas jovens recém casadas). E só assim, nessa interseccionalidade é que a festa pode ser, realmente, bonita.
