O que queremos compreender está já aberto diante dos nossos olhos. Em certo sentido é isso o que parecemos não compreender. […] Aquilo que sabemos se ninguém nos perguntar, e que já não sabemos se tivermos que explicá-lo, é algo que temos que trazer à consciência.
Ludwig Wittgenstein, em Investigações filosóficas
No artigo de fundo que João Bénard da Costa escreveu para o Catálogo da grande retrospectiva de Alfred Hitchcock, organizada em 1982 pela Cinemateca Portuguesa e pela Fundação Calouste Gulbenkian, terminava com uma pequena história passada na Suiça nos últimos anos de vida do realizador:
“Hitchcock seguia de automóvel com um amigo. De repente, fez-se lívido e apontou para fora do carro: «Olhe, estou a ver a coisa mais terrível que já vi na minha vida». O outro olhou e com grande espanto viu uma cena banalíssima: um rapazinho que passeava com um padre, que tinha a mão pousada no ombro dele e lhe falava com ar muito sério. Não teve tempo sequer de perguntar o que era terrível. O carro já passava junto do padre e do rapaz e Hitchcock abriu o vidro e gritou para o miúdo: «run, litle boy, run for your life»[i].
Na história deixada por João Bénard da Costa à interpretação de cada um, caberia, porventura, começar por avaliar se, nesse «run for life», a vida relativamente à qual Hitchcock incita o rapazinho a dar corda aos sapatos para a agarrar é essa mesma relativamente à qual, considerada a partir do outro extremo, “chegada a hora de falar concretamente” adoptamos, paradoxalmente, uma formulação interrogativa “mas o que é que era isto que eu andei a fazer toda a vida?”. Nesse exercício de trazer à consciência, poderia, na perspectiva desenvolvida pelo psicanalista D.W. Winnicott, usar-se como marcador algo que ele designa de coloração da atitude perante a realidade externa, que proporciona a cada um o sentimento do que faz com que a vida valha a pena ser vivida. Esse modo criativo de percepção, que permite experimentar esse sentimento e ser testemunha de que “viver criativamente é sinal de um estado saudável” tem como atitude oposta a relação de submissão, marcada pela complacência, pela falta de atenção ou mesmo pela negligência. Será preciso, contudo, enfrentar uma dificuldade suplementar: “Se examinarmos as nossas vidas, provavelmente descobriremos que a maior parte de nosso tempo não o passamos nem em acção nem em contemplação, mas num outro lugar.[…] Já utilizámos os conceitos de interno e externo e precisamos de um terceiro conceito. Onde estamos, quando fazemos o que, na verdade, fazemos grande parte de nosso tempo, a saber, divertindo-nos?”[ii]
O propósito enunciado na primeira crónica de em cada uma abordar a forma vitae cinematográfica aconselha a que, para lhe dar seguimento, recorra à constituição de um conjunto interpretativo em que são integradas outras experiências interiores por comparação com as quais a experiência cinematográfica se possa compreender melhor como fazendo parte da “utilização feliz da herança cultural”.
Eis que a escolha de hoje recai sobre um filme ― Under Capricorn (Sob o Signo de Capricórnio, 1949) mais do que controverso, que foi um clamoroso fracasso comercial, que foi massacrado pela crítica inglesa e americana e que, para além do mal-estar manifestado pelos intérpretes, o próprio realizador declara que “toda a sua conduta neste caso não tem desculpa e foi quase infantil”.
“Haverá um dia em que Hitchcock acabará por se comportar como as personagens dos seus filmes que alcançam a salvação confessando-se”.
Já no número monográfico dos Cahiers du Cinéma, publicado em Outubro de 1954, em que tem início a reavaliação crítica da obra de Hitchcock, François Truffaut, constatando que o próprio Hitchcock é uma personagem hitchcockiana, deixara uma observação premonitória: “Haverá um dia em que Hitchcock acabará por se comportar como as personagens dos seus filmes que alcançam a salvação confessando-se”[iii].
A série de entrevistas que Hitchcock depois lhe concedeu, publicadas em livro em meados dos anos 60, contribuem em cada página, para a explanação das mais redentoras ideias de cinema, mesmo quando a confissão parece excessiva, como acontece nas páginas dedicadas a este filme, em que são escalpelizadas as falhas, a atitude “infantil” e de “confusão” em que se encontrava o realizador e se procede à exumação das culpas sem remissão assumidas pelo próprio Hitchcock.
Se for verdade que, como o percebera Truffaut, “este homem que, melhor que qualquer outro, filmara o medo, era ele próprio um tímido […] que ao longo da sua vida experimentou uma necessidade extrema de proteger-se”[iv], o que então procuraria mais que tudo, com este segundo filme produzido pela sua própria companhia, uma vez que “havia uma enorme concorrência entre os produtores americanos para obter Ingrid Bergman”, era “uma vitória sobre a indústria”[v].
No que respeita à justificação para novamente recorrer à utilização de longos planos-sequência que fora levada ao limite no filme anterior Rope (A Corda, 1948), embora apresentada por Hitchcock como um “truque”, o realizador insiste em que “conservava o seu modo habitual de «découpage», ou seja, mantinha o princípio da proporção das imagens em relação à importância emocional dos momentos dados”. Dir-se-ia que tal modo de proceder seria equiparado a um «run for cover» que traduzido por “correr pelo seguro” corresponderia, na explicação fornecida por Hitchcock, ao seguinte: “trata-se de um expediente muito conhecido dos guias e dos exploradores; quando se dá conta que nos enganámos no caminho ou que nos perdemos na floresta, nunca se deve tentar retomar o caminho certo atalhando a corta mato ou confiando no instinto. A única solução é refazer escrupulosamente o caminho percorrido a fim de voltar ao ponto de partida ou ao ponto a partir do qual nos enganámos”[vi]. Será, talvez, de anotar que o princípio desse caminho tem por base uma ideia de «découpage» que, com extraordinária clareza fora enunciada por Luis Buñuel, e a que A. Malraux deu uma formulação consistente, segundo a qual a génese do cinema enquanto arte, isto é, enquanto possibilidade expressiva autónoma, é indissociável da “independência que o operador e o realizador ganharam em relação à própria cena”[vii].
Aconteceu, aliás, que, apesar das reservas manifestadas pelos intérpretes, em particular por Ingrid Bergman, e da zanga havida entre ela e o realizador, que deu origem, perante a particular exigência inerente ao trabalho dos actores, à lapidar réplica de Hitchcock: «Ingrid, isto é apenas um filme», a própria Ingrid Bergman, perto do fim da rodagem, acabou por anotar: “Algumas daquelas malditas cenas longas resultaram muito bem. Num take com a duração de nove minutos e meio, em que não parei um segundo de falar, a câmara seguiu-me continuamente, com óptimos resultados, melhores até do que os conseguidos com os sistemas de montagem…”[viii]
Por outro lado, o mais entusiasta crítico do filme, Jean Domarchi, afirmou que com este filme, que promove “uma relação nova entre a palavra e a imagem, “os que amam o cinema terão ficado com uma razão a mais para acreditar no seu futuro”, e João Bénard da Costa aduz que “se trata duma das obras mais secretas e insólitas da sua produção, tecida sobre a mútua destruição e amor de dois seres”, acrescentando: “Under Capricorn é a matriz do melhor que havia de vir. Saber ou não saber de culpas e da inanidade delas, ser possível ou não dar voz ― e encontrar ouvidos ― para o que dentro de nós tem um sentido que no verbo se não esgota”.
Não será, assim, demasiado temerário acreditar que, para além de desfrutar da vida, desfrutar dos prazeres da vida, dos prazeres do amor, mas também dos da mesa e da bebida, “a vontade indómita de reter a atenção, de criar e depois preservar a emoção a fim de manter a tensão”, tal como “fazer viajar o grande plano”, são para Hitchcock formas de «run for pleasure».
No jantar, oferecido por Sam Flusky (Joseph Cotten), a que faltaram todas as mulheres dos outros convivas, a estranheza de comportamentos que desde a chegada à Austrália (onde a acção se passa no início do século XIX) rodeara Charles Adare (Michael Wilding) é agora preenchida pelo seu reencontro com a prima dos tempos de juventude na Irlanda, Lady Henrietta (Ingrid Bergman), casada com Sam Flusky. Entre a inopinada aparição de Henrietta e a sua precipitada retirada do jantar, a dificuldade de subida da escadaria de acesso ao andar superior deixa, desde logo, bem à vista a fundura do poço em que esta caíra.
Desafiando o poder redentor deste reencontro, Charles Adare, para dar início à missão confiada, precisa de inventar um espelho colocando o seu casaco por detrás de uma janela, em que o rosto de Henrietta se espelhe, demonstrando assim de forma eloquente o acerto da intuição formulada por André Bazin relativamente à noção de presença no cinema, com esse seu carácter absolutamente singular, devido ao facto de a mesma provir de “um espelho de reflexão diferida, em que o estranho guardaria a imagem”, à maneira do que faz o plano ao funcionar não como uma “moldura, mas como um esconderijo”[ix].
Assim protegida, Henrietta está em condições de voltar aos tempos de juventude na Irlanda e ― através desse plano de longa duração e de extrema elaboração, encontrar a poesia mais vibrante no mais ínfimo movimento da câmara que, por esta via, se constitui em paradigma da expressão cinematográfica ― rememorar o seu enamoramento de forma redentora.
“[…] qualquer acto só adquire sentido na medida em que oculta um duplo dentro de si, uma epifania mental, uma acção exemplar que dá uma forma decisiva ao gesto: uma acção que pode ter ocorrido nas pradarias do céu ou entre os despenhadeiros da Anatólia, mas que envolve na sua luz, e para sempre, qualquer outra acção que se lhe assemelhe”[x].
Há, contudo, um segredo neste drama. Como transformar esse segredo, que liga uma consciência a outra, não em escravidão, mas em libertação?
Sam Flusky, moço de estrebaria, acusado do assassinato do irmão de Henrietta, fora deportado para a Austrália. Lady Henrietta, rejeitada pela família depois de fugir com Sam, seguira-o e ficara à espera que ele saísse da prisão. Na escala da diferença de classes, cainharam depois em sentidos opostos. Ele refaz a vida como próspero empresário: Ela vai-se afundando cada vez mais no álcool e no autodesprezo.
Que o assumir das culpas por parte de cada um não garanta o fim dos sacrifícios recíprocos incessantemente agravados, impedindo um encontro de Sam e Henrietta a meio da escala/escada, sem que um terceiro tenha que por sua vez assumir esse sacrifício, deixa em aberto uma inquietante questão relativa à transferência de culpabilidade através da confissão.
Hitchcock acreditava que “a maior parte das coisas que pomos num filme perdem-se, mas o tempo joga a favor delas quando, alguns anos depois, o filme é reposto”, por isso, ainda que equivalente garantia não possa ser dada ao que fizemos na vida, se confinado um espectador esta anotação encontrada em Não te Esqueças de Viver poderá convir-lhe:
«Para saber qual o gosto verdadeiro das cerejas e das amoras é preciso interrogar as crianças e os pardais»[xi].
[i] João Bénard da Costa, «Da Vida e Obra de Alfred Hitchcock», em in Alfred Hitchcock’s (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982), 130.
[ii] D. W. Winnicott, Playing and Reality, [1971] (Hove and New York: Bruner Rutledge, 2002).
[iii] François Truffaut, «Un trousseau de fausses clés», Cahiers du Cinéma VII, n. 39 (Outubro de 1954): 51.
[iv] François Truffaut, Hitchcock/Truffaut, Édition définitive, Ramsay Poche Cinéma (Paris: Ramsay, 1985), 10–11.
[v] Truffaut, 154.
[vi] Truffaut, 155.
[vii] André Malraux, «Esquisse d’une psychologie du cinéma», em Écrits sur l’Art, [1946], Oeuvres Complètes, IV (Paris: Gallimard, 2004), 9.
[viii] Ingrid Bergman e Alan Burguess, Ingrid Bergman: La mia Storia (Milano: Arnaldo Mandadori Editore, 1981), 184.
[ix] André Bazin, «Théatre et Cinéma [1951]», em Qu’est-ce que le Cinéma?, [édition définitive] (Paris: Éditions du Cerf, 1981), 152, 160.
[x] Roberto Calasso, Os quarenta e nove degraus (Lisboa: Cotovia, 1998), 107–8.
[xi] Pierre Hadot, Não te Esqueças de Viver: Goethe e a tradição dos exercícios espirituais, trad. Maria Etelvina Santos (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019), 158.