Elle écoutait l’oiseau, perdue dans une extase. Elle avait des désirs infinis de bonheur, des tendresses brusques qui la traversaient, des révélations de poésies surhumaines, et un tel amollissement des nerfs et du cœur, qu’elle pleurait sans savoir pourquoi. Le jeune homme la serrait contre lui maintenant ; elle ne le repoussait plus, n’y pensant pas.
Guy de Maupassant, Une partie de campagne
1
A imagem é a preto e branco e tem o formato de 4:3. As tonalidades de cinza são predominantemente escuras, não se verificando a existência de brancos puros. Em contraste, há algumas zonas negras. Vemos uma parte significativa do rosto de uma mulher, quase na horizontal, posicionada a três quartos: o olho direito, a sobrancelha direita, o nariz, a boca, uma fímbria do cabelo, uma suspeita de olho esquerdo no limite cimeiro da imagem. Em baixo, uma mão masculina (a mão esquerda) da qual se vê bem apenas o polegar. No canto inferior direito, o que parece ser uma pulseira de couro no pulso do homem. No canto superior direito, um fragmento da outra mão masculina.
Fora de campo: um olho, uma cabeleira, um pescoço, quatro dedos, um braço, uma mão. Dois corpos. Um homem e uma boca? E um cenário, porque não há figuras sem fundo.
Os lábios, pintados de cinzento escuro, estão ligeiramente entreabertos. Entre eles, três vestígios de dentes. A narina pinta uma mancha negra que revela um buraco, um canal que fura a pele e que, convidando ao mergulho, conduz ao interior. A sobrancelha tem um desenho perfeito como só nos anos 30: arredondada na ponta direita e afunilando progressivamente até se tornar um ponto à esquerda. Os cabelos desenham uma franja, percebe-se bem, e parecem longos, mas disso já não é possível ter a certeza.
O punctum da imagem é o olho dela, vertical, vaginal. Encara-nos. Debaixo do olho (ou seja, à sua direita na imagem, porque a mulher está deitada ou reclinada), há ligeiros realces que revelam qualquer coisa de lágrima.
A imagem parece estar, toda ela, ligeiramente desfocada.
2
A expressão no rosto é lânguida. É, talvez, uma expressão de abandono (abandono em relação a quê?). E os realces que, debaixo do olho, aparentam ser lágrimas são de um choro que está a acontecer no momento ou de um choro que já terminou?
As mãos masculinas envolvem o pescoço para beijar ou para matar. A pulseira de couro tem o ar de pulseira de assassino, embora também possa ser a de um amante. Um homem rude com um polegar rude, embora com a unha cuidadosamente cortada. É, sem dúvida, um homem que trata bem das suas mãos, o que talvez signifique que elas sejam o seu instrumento de trabalho: as mãos de um assassino, que estrangula as suas vítimas. Ou as mãos de um amante, que envolve os rostos das mulheres num beijo.
Amor ou morte. De qualquer forma, uma ameaça. Mas a languidez e o abandono visíveis no rosto dela são marcas pré-coitais ou pré-mortais?
E porque olha ela para nós? Busca cumplicidade no amor/na morte? Pede ajuda, em silêncio? Pede-nos que desviemos o olhar, que respeitemos a sua privacidade?
Talvez seja o momento da morte (todo o fotograma assinala uma morte, mas este talvez o faça duplamente), aquele em que a alma abandona o corpo, em que o olho aberto deixa de ver, entra na opacidade.
3
Numa região campestre, perto de Paris, uma carruagem interrompe a marcha sobre a ponte. Os viajantes estacionam para almoçar na estalagem de Jean Poulain. Uma família: a avó, o pai e a mãe, a filha, e o prospectivo genro. A promessa de um piquenique no bosque, como em 1862. Dois homens, vamos chamar-lhes Pierre et Jean (ou Pierre et Jacques, como os Prévert). De uma janela, vê-se a rapariga no baloiço, figurando Fragonard, prefigurando Charulata. No campo, onde a composição do ar é diferente (“em Paris, não há oxigénio”), criaturinhas minúsculas habitam as ervas. As mulheres, que não sabem como as lagartas se reproduzem, sentem uma espécie de vago desejo, que começa no peito e depois sobe até às lágrimas: flor a acordar para a Primavera. Os dois homens preparam-se para a pesca, e as mulheres, para além de flores e lagartas, tornam-se também peixes. Ao fundo, muito longe, uma tempestade. Debaixo da cerejeira, um braço erguido recolhe uma cereja bem vermelha, que é aspirada, eroticamente, pela boca (envolvida em saliva, mastigada, engolida, com caroço e tudo).
Elipse — céu e nuvens.
A mãe pede ao pai que se vá perder com ela no bosque, mas é rejeitada. O marido e o genro saem de cena. As mulheres estão sozinhas, surgem os sátiros e ouve-se a canção de engate. Variações de um passeio de barco até longe da vista. Mas a vista acompanha-os até à outra margem, debaixo do rouxinol. Adeus à mãe, é levada pelo sátiro. A filha fica com o remador. Um braço em torno da cintura, duas vezes. O rouxinol canta, submerso em Kosma. O casal deita-se sobre a relva, beija-se e…
4
A expressão no rosto é lânguida. É uma expressão de abandono ao abraço. A lágrima é de ternura e encanto pelo canto do rouxinol, mas também é motivada pela vertigem que a flor sente quando está prestes a perder as pétalas (“bem me quer, mal me quer”, tinha dito o sátiro). As mãos dele envolvem o pescoço dela para a beijar. A pulseira de couro é a de um remador, de um sonhador e de um amante. A languidez dela é pré-coital e também pré-mortal, porque em francês um e outro são a mesma coisa. Este é o momento que antecede a paixão e uma morte, o fundido encadeado e a elipse.
5
Ela casará com outro homem — se é que podemos chamar isso a uma criatura infra-larvar —, experienciará a infelicidade das mulheres casadas de Balzac, de Flaubert, de Maupassant, terá uma vida que é como uma morte — não como aquela morte que viveu nas margens do rio, naquele dia, naquela aventura, ao som do rouxinol (o mesmo que tinha cantado para Romeu e Julieta e tantos outros casais célebres, segundo o narrador), mas outra, daquelas que não servem como matéria de romance (a menos que esse romance se intitule Une Vie). Ela regressará com o marido à margem do rio e, enquanto ele dorme, ouvirá o rouxinol e reviverá o momento que o fotograma eternizou, aquele durante o qual olhou para o espectador, imediatamente antes de conhecer o prazer pela primeira e pela última vez.
“Olhou para o espectador”, disse?
Há acontecimentos que a linguagem não traduz. Há profundezas a que a imagem não acede. Há regards caméra que não pretendem derrubar a quarta parede, instalar a metalepse e cruzar fronteiras. A rapariga de Manet, Monika, Judy, Nana, Geneviève, Yella, Henriette… Contrariamente à crença intelectual, interpelações como as destas mulheres assinalam, sim, a intransponibilidade última da fronteira. A inacessibilidade do pensamento e da sensação. And yet…
Olha para a imagem, leitora, e repara no círculo branco dentro do olho negro dela. É a objectiva da câmara. Ela não olha para nós, mas sim para o seu reflexo no vidro, como espectadora de si mesma, no filme trágico que se vê começar a protagonizar no momento em que se entrega ao homem desconhecido que se transformará na única coisa que ela alguma vez conheceu.