Era Roger Ebert quem definia o cinema como “uma poderosa máquina de empatia”. The Father (O Pai, 2020) demonstra-o na perfeição. Por mais livros, artigos e reportagens que se consultem sobre o assunto, um tema tão pesado como a demência nunca passará do campo da abstracção para uma pessoa lúcida.
A habilidade do filme de Florian Zeller está em transcender completamente essas limitações e colocar, enfim, qualquer um na consciência do sujeito que atravessa uma situação fora da experiência individual do espectador, fomentando a compreensão e a ligação com ele, passando do “abstracto” para o “concreto”, do “intangível” para o “palpável”, do “distante” para o “próximo”. Forma e conteúdo trabalham sob este propósito e, por isso, partilhamos da subjectividade mental da personagem de Anthony Hopkins, imergindo na sua forma de compreender o espaço, os acontecimentos ao seu redor e as interacções estabelecidas com os outros, entrando num autêntico labirinto cerebral em permanente remodelação. Zeller realiza, assim, um retrato da demência perturbador, emotivo e profundamente humano, qualquer coisa como se David Lynch realizasse Amour (Amor, 2012).
É um puzzle cinematográfico onde estão sempre peças em falta.
É pelo uso astuto do décor e da mise en scène que o cineasta francês constrói uma queda vertiginosa nos efeitos da senilidade. Daí as variações em planos semelhantes que registam alterações subtis no cenário e adereços, conduzindo o espectador a entrar em constante questionamento da sua memória quanto aos aspectos topográficos e decorativos do apartamento. Apartamento que é, praticamente, o único cenário da acção, tornando-se uma personagem tão central como Anthony na medida em que, pelas suas inusitadas transformações, funciona como projecção da deterioração mental deste.
São disto exemplo os frames em baixo, que expõe algumas das metamorfoses observadas em diversas partes da casa ao longo do filme: a cozinha (1 e A) com diferentes móveis e arsenal doméstico, o quarto com quadros, camas e papéis de parede díspares (2 e B), a entrada do apartamento com portas e lances de escada discrepantes (3 e C), ou o hall e as dissemelhanças de todos os ornamentos que o caracterizam (4 e D).
Junte-se a isto ao propositado desarranjo das sequências cronológicas dos eventos; à interpretação de mesmas personagens por actores distintos; à repetição de cenas e planos com inícios (a conversa entre o casal ao jantar sobre a necessidade de meter o pai numa instituição) ou desfechos opostos (o plano que tanto mostra a filha a asfixiar o pai como a acariciar o rosto dele), ao ponto de impossibilitar a audiência na colocação de um crivo que separe a realidade do delírio. É, portanto, um puzzle cinematográfico onde estão sempre peças em falta; um mapa de sequências e enquadramentos onde as coordenadas e os pontos de referência estão sistematicamente a serem apagados; uma pirâmide de imagens e sons onde a base é removida cada vez que se está prestes a chegar ao topo.
Mas é por este intencional efeito desorientador e propositada falta de coerência narrativa que se chega a algo maior: uma verdade emocional que confronta a audiência com as suas inquietações mais intrínsecas em torno da mortalidade e do envelhecimento. Na sua abordagem pungente das fragilidades da condição humana, The Father demonstra que o cinema também serve para para olhar para aquilo que se prefere não ver, para falar daquilo que se prefere manter em silêncio, para conhecer aquilo que o medo, a inconsciência ou a mera ignorância preferem manter encoberto. É um filme que não teme mergulhar no abismo. E arrasta o espectador com ele.
Poderia ficar por aqui, mas há também a apontar esse poço de contradições que é Anthony, tornando-o um protagonista longe de retratos simplistas: compara negativamente a sua filha à irmã dela, mas ainda assim elogia-lhe o penteado no elevador; tão depressa a humilha como se mostra genuinamente agradecido (é o momento mais bonito do filme aquele onde ele lhe diz “Thank you for everything”); é orgulhoso, arrogante e teimoso (é tanta a insistência em não ser ajudado), mas ainda assim capaz de se mostrar (como é dito às tantas) charmoso e encantador. Uma personalidade que tanto aliena como atrai e que, justamente por essa complexidade, se sente tão autêntica.
Resta mencionar o final e do impacto que ganha com aquela simples mão a ser estendida para quebrar o campo/contra-campo paciente/enfermeira, criando um two shot íntimo e consternado, onde o homem tão previamente seguro de si é deixado num estado de total vulnerabilidade junto de outra pessoa. É irónico e verdadeiramente trágico como o patriarca que antes proclamava não precisar de ninguém acaba por procurar, por fim, conforto nos braços de uma estranha. Ou, pondo de maneira mais simples: o pai torna-se criança, a criança verte as suas lágrimas, e essa máquina poderosa de que falava Ebert garante-nos que nelas não está só.