Nos primeiros momentos de The Woman in the Window (A Mulher à Janela, 2021), Joe Wright faz uma série de breves travellings que nos vão revelando detalhes da casa e da vida da sua habitante. A cozinha e a zona de jantar, a entrada com as escadas para cima, os vários andares e uma luminosa claraboia. Num desses planos, vemos James Stewart a ser agarrado pelo pescoço, num esgar de desespero. Uma imagem cheia de grão, aumentada, que se move frame a frame. Os cinéfilos reconhecerão os momentos finais de Rear Window (Janela Indiscreta, 1954), do mestre do suspense. E os espectadores reconhecerão logo de seguida que se trata de um ecrã onde está a passar o filme, pois logo se revela, no movimento de câmara, mais uma divisão da moradia, o escritório. Mas Wright tem gosto em fazer dessas imagens algo compósito: metade cinema, a outra metade o seu filme.


Se distinguimos aqui o cinema e o filme não é apenas por uma questão de facilidade de escrita, é porque essa separação talvez ajude a explicar a razão pela qual The Woman in the Window sente a necessidade de trazer constantemente para o seu universo, um duplo – uma validação, mais do que uma citação – da história do cinema. Seria este filme mais cinema pelas suas referências a Hitchcock, mas também a Lang (o título), e a segmentos de Laura (1944) e Dark Passage (O Prisioneiro do Passado, 1947)]? Por certo que isso tentaria sacudir um pouco o estigma-Netflix, que vai afastando uma ideia de cinema de uma máquina performativa de ver coisas sem linguagem. Contudo, a opção do realizador transcende essa vulgar operação de charme, mesmo que seja grande a tentação de rotular The Woman in the Window como uma actualização de A Janela Indiscreta, para tempos do confinamento. Já cá voltarei.
O uso destes planos frankensteinianos – metade imagens do cinema, metade imagens do filme – colocam lado a lado duas loucuras: a literal da sua protagonista e a do cinéfilo que, mesmo quando confinado habita com essoutros espectros de luz e sombra.
Dizia que a opção de Wright é interessante pois que me parece transcender a lógica da citação, para uma de incorporação. Em vários planos estes segmentos de clássicos de Hollywood surgem sem frame que os enquadre a não ser o próprio plano e Anna, a senhora sua protagonista que – ainda não o disse, digo-o agora – sofre de agorafobia e nunca sai de casa. Se a sua casa é o seu refúgio – e de onde pensa ter assistido a um crime no prédio da frente -, as imagens do cinema também o são. Ou por outras palavras, são uma forma (indirecta, o filme não faz gáudio disso) de fazer Anna evadir desse espaço onde se encontra confinada. O uso destes planos frankensteinianos – metade imagens do cinema, metade imagens do filme – colocam lado a lado duas loucuras, que em muito transcendem o plot bastante convencional de Woman in the Window. São elas, a loucura literal da sua protagonista e a loucura do cinéfilo que, mesmo quando confinado, solitário, habita com essoutros espectros de luz e sombra.


Mas a lógica da duplicação como validação avança por The Woman in The Window em vários outros espectros. Num outro plano vemos Anna lado a lado com a validação de Anna: a filmada pela câmara de Wright e a filmada pelo seu telemóvel, ao tentar fazer um vídeo antes do seu suicídio iminente. A imagem que valida a imagem. Tal como noutro momento, também citado de Rear Window, Anna enquadra pela lente de uma máquina fotográfica os seus vizinhos da frente que são os actores de uma pretensa história de homicídio. Mais tarde perguntar-lhe-ão se chegou a clicar no botão da máquina e a registar algo do que diz ter visto acontecer e ela diz que não. A imagem como prova da imagem.
Creio que faz sentido pensar o filme de Wright como uma espécie de Janela Indiscreta invertida: se no filme de 1954 estamos na potência do voyeurismo, onde a imobilidade é uma condição do olho exterior, uma imagem-movimento onde tudo se passa “lá fora”; já no filme de 2021, a imobilidade, enquanto cerco covidiano, é uma condição que é pensada e filmada por si.
Parece que todas as pistas vão dar ao clássico de Hitchcock: um herói que não pode sair de casa, um crime no andar da frente, as janelas sem cortinas onde tudo se pode ver e até as fachadas dos mesmos tijolos rectângulares. Mas… poderá The Woman in The Window ser um duplo de Rear Window? Que audácia! Talvez nem tanto. Mas creio que faz sentido pensar o filme de Wright como uma espécie de Janela Indiscreta invertida: se no filme de 1954 estamos na potência do voyeurismo, onde a imobilidade é uma condição do olho exterior, uma imagem-movimento onde tudo se passa “lá fora”; já no filme de 2021, a imobilidade, enquanto cerco covidiano, é uma condição que é pensada e filmada por si. Isto é, tudo se passa “cá dentro” e, assim, o pretenso crime na casa do vizinho é que é um pretexto para ver o que se passa dentro da casa (literal e mental) de Anna.
Um female gothic que é agora um female psychic, em que a sua casa é um décor de luz barroca – não há cor que Bruno Delbonnel, o director de fotografia, não use – um palco onde Amy Adams irá evoluir. A casa como desdobramento e desordenação do espaço mental, a imobilidade como condição de uma teatralidade no qual real e fantasia se mesclam. Wright deslumbra-se com as possibilidades: nunca terá a ambição de Cassavetes e da sua Rowlands sob influência, mas andará próximo do lirismo aranovskiano. E essa sua forma de trabalhar o interior revela que se The Woman in The Window é Rear Window–wanna be por fora, acaba por ser muito mais Spellbound (A Casa Encantada, 1945), por dentro.
