Há vários filmes dentro de Ruan Lingyu (Actress/Center Stage, 1991) de Stanley Kwan, grande realizador do cinema de Hong Kong que continua relativamente pouco visto se comparado com alguns dos seus contemporâneos. Em Ruan Lingyu, que precedeu outra das suas obras máximas, Hong meigui, bai meigui (Red Rose, White Rose, 1994), Kwan convoca os fantasmas de Xangai dos anos 1930 e de uma das suas mais icónicas estrelas, a homónima Ruan Lingyu. A Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema exibe-o este mês, pela primeira vez.
Há vários filmes dentro desta obra, dizíamos, e todos eles exploram formas de recordar e recriar a vida e obra de Ruan Lingyu. Nessa exploração aflora-se também tudo o que não é possível recuperar. O filme abre com fotografias de filmes do início da carreira de Ruan de que já não restam cópias, e, quase no fim, fecha com os últimos momentos da vida dela incluindo, em off, uma espécie de voz interior da actriz num desabafo que conjectura os seus minutos derradeiros, que não tiveram quaisquer testemunhas. Kwan imagina o desconhecido e convoca memórias múltiplas, um caleidoscópio de referências parcelares numa busca quimérica por quem foi, na verdade, Ruan Lingyu. Mas ela fica sempre além, inalcançável na sua totalidade, e, quiçá por isso, sempre envolta num fascínio inquebrável associado apenas a certas estrelas de cinema (James Dean, por exemplo).
Ruan Lingyu viveu num tempo em que, na China como em muitos outros países do mundo, o cinema mudo permitiu a ascensão de fabulosas celebridades da representação, mulheres que desafiaram, dentro e fora dos ecrãs, convenções, preconceitos e limites. Muitas delas, como a própria Ruan Lingyu, foram também casos de grande mobilidade social, ultrapassando passados de pobreza (a preocupação com a sua independência financeira é subtilmente sugerida pelas cenas em que a vemos registar entradas num caderno de orçamento pessoal) e tornando-se importantes figuras do mundo do espectáculo devido ao seu talento. Esse progresso não foi bem recebido por todos: a ideia de mulheres profissionais com autonomia, influência e grande exposição física era vista como disruptiva e combatida por muitos como desviante ou amoral. Ruan Lingyu foi de um tempo (terá já passado?) em que as “mulheres modernas” eram símbolos contraditórios de mudança: celebradas pela sua liberdade e vanguarda, eram projectadas nelas ideias de progresso, mas também eram alvo de diferentes tentativas de controlo, sobre a sua aparência, onde se moviam, com quem se relacionavam, etc. A sua visibilidade pública sem precedente atraía admiração, mas também um escrutínio obsessivo, muitas vezes conservador e sexista, com um papel muito relevante da imprensa – e Xangai era um vibrante centro editorial onde proliferaram periódicos de cinema e femininos – que reportavam a sua vida privada como coisa pública em constante busca por escândalo.
Na sua curta vida de estrelato, Ruan Lingyu experienciou uma série de pressões cruzadas, que o filme de Kwan mostra mais ou menos subtilmente: pessoais, profissionais e políticas.
Ruan Lingyu matou-se aos 24 anos no auge da carreira, no Dia Internacional da Mulher, em 1935. O filme em que estava a trabalhar na altura, e que estreou postumamente, Xin nüxing (New Woman/New Women, 1935) fora inspirado no caso de uma outra actriz, Ai Xia, que também se suicidara, e expunha diferentes formas de opressão de mulheres que procuravam trabalhar na cidade. A morte de Ruan foi um acontecimento monumental à época, com a multidão no cortejo fúnebre estendendo-se por quilómetros, e gerou um intenso debate público sobre a responsabilidade da comunicação social, as pressões sobre as actrizes, e sobre as mulheres em geral, nos meios culturais urbanos.
O filme de Stanley Kwan revisita os últimos anos da vida de Ruan, de 1929 a 1935, nomeadamente aqueles em que trabalhou para a Lianhua (também conhecida pelo nome inglês United Photoplay Service), uma das principais produtoras cinematográficas chinesas na época, fundada em Hong Kong mas com estúdios também na China continental. Evoca os filmes onde Ruan trabalhou, e os círculos de cinema de Xangai onde se movia, entretecendo-os com fragmentos da sua vida pessoal, normalmente mostrados à noite: as suas relações com Zhang Daming (Lawrence Ng), um antigo parceiro abusivo a vários níveis, e Tang Jishan (Chin Han), um homem de negócios abastado e casado com quem se envolve romanticamente, e também os seus laços familiares, com a sua mãe e a menina que adoptou (essas maternidades estão representadas de forma muito bonita numa cena em que as três mulheres se apoiam umas às outras para mudar uma lâmpada no tecto). Quando Zhang Daming ignora os termos de um acordo de divórcio e revela a tablóides a suposta vergonha da “coabitação” de Ruan com Tang, os ataques contra ela tornam-se particularmente vitriólicos, abrindo caminho ao auto-sacrifício, uma escolha que, algo ironicamente, seguia modelos tradicionais valorizando a morte de mulheres como expressão pública de “honra”.
Na sua curta vida de estrelato, Ruan Lingyu experienciou uma série de pressões cruzadas, que o filme de Kwan mostra mais ou menos subtilmente: pessoais, profissionais e políticas (invasão japonesa da China, censura sobre produção cultural), mas todas elas foram por ela vividas de forma particularmente aguda precisamente por ser mulher e pelas expectativas sobre o que a sua conduta e imagem deveriam ou não ser. Talvez não seja intencional mas várias cenas de Ruan Lingyu a subir escadas trazem à mente Onna ga kaidan o agaru toki (Quando Uma Mulher Sobe as Escadas, 1960) de Mikio Naruse.
O filme aborda também a forma como Ruan Lingyu foi lembrada e, ao mesmo tempo, desafia os actores do filme que recriam as figuras dos anos 30 a reflectir – muito ao de leve – sobre a sua própria experiência, por exemplo, perguntando a Maggie Cheung – que interpreta Ruan Lingyu – se quer ficar na memória, como Ruan, dali a cinquenta anos.
Estes diferentes níveis de recordação e recriação de Ruan Lingyu são articulados através de diferentes opções estilísticas. Combinam-se entrevistas a preto e branco ou a cores com os actores do filme-a-ser-feito; gravações a preto e branco com entrevistas com actores e cineastas que trabalharam com Ruan Lingyu; recriações a cores de filmes com Ruan de que não restam cópias; excertos (a preto e branco) de filmes que sobreviveram; recriações a cores de cenas da vida de Ruan – com todo o estonteante detalhe cénico e trabalho de luz e cor de outros filmes de Stanley Kwan como Yanzhi kou (Rouge, 1987) ou Hong meigui, bai meigui –; e cenas em que se vê Kwan e a equipa técnica a dirigir os actores que dão vida a essas recriações. É um filme sobre cinema, ora mais subtil ora mais exibicionista, fazendo uso hábil da montagem para construir visualmente uma série de paralelos. Certos jogos de espelhos (por vezes literais) são pura delícia cinéfila: Maggie Cheung imitando Ruan Lingyu imitando Marlene Dietrich, por exemplo. O retrato de Xangai nos anos 30 tem algo de claramente nostálgico, procurando captar a atmosfera de glamour – sem nunca esconder as suas sombras – de certos ambientes (veja-se, por exemplo, as cenas no salão de baile).
Ruan Lingyu é sobre uma época de ouro do cinema chinês e o filme recria alguma das suas figuras mais aclamadas e populares, começando, claro, por Ruan Lingyu mas incluindo também os realizadores Sun Yu (Sun Dongguang), Wu Yonggang (Xiao Rongsheng), Cai Chusheng (Tony Leung Ka-fai), Zheng Junli (Zheng Dali), o compositor Nie Er (Fu Chong), as actrizes Li Lili (Carina Lau), Lim Cho Cho (Cecilia Yip), Lai Cheuk-Cheuk (Maryanna Yip) ou o actor Jin Yan (Xue Guoping). As entrevistas que se ouvem entre os segmentos que recriam as suas vidas profissionais incluem testemunhos de alguns deles. Vários dos actores que dão vida a estes gigantes do cinema de Xangai são também conhecidos actores do cinema de Hong Kong, incluindo algumas das suas superestrelas, como Tony Leung Ka-fai, Carina Lau ou, obviamente, Maggie Cheung. O paralelo com os seus “antepassados” é ainda claro pelo facto de Sun Yu ser interpretado pelo seu filho Sun Dongguang, e Zhang Junli pelo seu filho Zhang Dali.
As ligações e ecos entre Xangai e Hong Kong são, aliás, importantes para o filme. A relação entre as duas metrópoles é mencionada em diferentes cenas. Hong Kong foi refúgio quando Xangai era lugar de perigo – o conflito militar com o Japão em 1932 levou à relocalização temporária de Ruan e colegas para Hong Kong. Mas esse refúgio nem sempre é certo. Quando Ruan Lingyu pede a Cai Chusheng que a leve para Hong Kong, ele rejeita a ideia de fuga (num diálogo que também põe a descoberto o privilégio masculino dele, pois não é sujeito à mesma reprovação de Ruan por ter amantes). Ruan Lingyu foi feito em 1991, a poucos anos da transferência de soberania de Hong Kong, e uma certa ansiedade que é constantemente atribuída a vários filmes de Hong Kong em torno do fim do domínio colonial britânico está provavelmente aqui subjacente também.
Essa tensão sobre mudanças iminentes é igualmente sugerida pelo advento do cinema sonoro na China. Na noite que acaba por ser de despedida, Ruan Lingyu vai a uma festa em honra de um técnico estrangeiro, o senhor Skinner, que instalara um sistema de som síncrono na Lianhua. Ruan nota, com algum nervosismo, que em breve irá falar mandarim nos filmes. Falante nativa de cantonense e xangaiense, o seu domínio da “língua nacional” não era perfeito e, é sugerido, poderia vir a ser um obstáculo à sua carreira. O cantonense falado por Ruan – também a língua materna de Stanley Kwan – é explicitamente mencionado em várias cenas; é a identidade cantonense que primeiro a aproxima de Cai Chusheng, por exemplo. Nessa cena do jantar, Ruan exibe entusiasticamente o início discurso que iria dar no dia seguinte numa escola, a convite de uma amiga; as suas palavras em mandarim a favor da emancipação feminina são bem recebidas mas breves. Oferecem uma promessa, que fica suspensa. Há uma certa ambiguidade aqui, como se Stanley Kwan aludisse subtilmente ao futuro incerto do cinema de Hong Kong, um cinema maioritariamente falado em cantonense. Imagens de desolação mais directas são, quase no fim, as das ruínas do estúdio da Lianhua em Xangai, como se a morte de Ruan fosse sintoma do fim de um certo cinema – o mudo de Xangai – e, aqui, de receios quanto ao que poderia acontecer a um outro – o de Hong Kong.
O filme de Stanley Kwan persegue os indícios do que se perdeu, procura recriar um passado que não é possível mostrar por inteiro, seja nos filmes de que não restam cópias ou em palavras ou relações cujos pormenores são meramente especulativos. Essa incerteza é ela própria incluída no filme, com perguntas sobre o que poderia ter sido, o que se ouviu dizer sobre, como o que alguém gostaria de saber. Ou ainda, como é dito a dada altura quando Cai Chusheng é obrigado a cortar uma cena do filme que estava a fazer com Ruan, a ideia de que a história irá mostrar o que aconteceu, com o filme Kwan podendo ser visto como essa “história” a acontecer, o acto de lembrar como acto de justiça. Ruan Lingyu é uma tentativa possível de mostrar o que não se viu ou não se sabe bem, de constrangimentos relacionados com política ou com género.
Ainda assim, note-se que a voz de Ruan Lingyu permanece esquiva e ilusória: ouvimos Maggie Cheung mas nunca, por não restarem gravações, a verdadeira Ruan Lingyu. Os seus projectos, preocupações, angústias, frustrações, desejos, sentimentos, e esperanças, bem como o desespero que a levou à morte, são adivinhados, mas não restam traços sonoros (e poucos escritos) das suas palavras. Aliás, desde o início do filme, o que ouvimos são homens a falar sobre ela: desde Stanley Kwan a “explicar” as fotografias dos primeiros filmes até à recriação de um encontro de profissionais da Lianhua discutindo os seus talentos numa casa de banhos. É também Kwan, autor já na altura conhecido pelas suas películas sobre experiências femininas, quem tem a última palavra (a ordem de “cut”). Do grito de desafio da última personagem de Ruan (“我要活啊!”/”quero viver!”), restam apenas os caracteres projectados por um realizador (Cai) sobre o seu rosto e as instruções ditas por um outro realizador (Kwan) sobre como filmar a rodagem dessa cena. Da voz da verdadeira Ruan nada ouvimos. É interessante notar que, embora o filme seja sobretudo associado a Stanley Kwan e à actriz Maggie Cheung, a dupla de argumentistas inclui Peggy Chiao, figura importantíssima da produção, distribuição, crítica, ensino e escrita sobre cinema de Taiwan, Hong Kong e China continental, cujo papel nos bastidores nem sempre é reconhecido.
Numa das últimas cenas em que se recria o funeral de Ruan e se imaginam memórias dos que trabalharam com ela (vemos Kwan admitir que inventou as deixas), é indicado a Maggie Cheung para tentar não respirar de forma a tornar convincente a imagem de cadáver. Não mostrar que se está viva; o que, no fundo, era mais ou menos o que se exigiu a Ruan e tantas outras mulheres. O plano final é mesmo o rosto imóvel de Ruan, novamente uma fotografia do que passou, embora o tom seja fúnebre e sem a jovialidade das imagens fixas dos seus primeiros filmes que víramos no início.
Ruan Lingyu é um filme sobre desaparecimentos, um filme sobre história e prática de cinema, sobre homens que constroem imagens de mulheres e sobre a ausência de vozes femininas nesse mesmo cinema, vozes que não estavam – nem estão aqui – realmente no “centro”.
Ruan Lingyu passa na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema amanhã, dia 8 de Junho, às 20h15, no ciclo “Carta Branca a Augusto M. Seabra” que homenageia o crítico que tem tido um papel de relevo na divulgação de cinema asiático em Portugal.