Then I open up and see
The person falling here is me
A different way to be
The Cranberries, Dreams
Wong Gok ka moon/As Tears Go By (Ao Sabor da Ambição, 1988) começa com um plano fixo sobre o qual surgem os créditos pintados num vermelho vivo. Trata-se de um plano de exterior, em que as luzes de néon rompem o escuro da noite numa cidade visivelmente sobrepovoada, iluminando-a com exuberância. À direita, ocupando mais de metade do campo, um quadriculado de televisões forma uma única imagem, na qual nuvens atravessam um céu azul, diurno.
O núcleo dramático da primeira longa-metragem de Wong Kar-Wai está condensado neste primeiro plano. O protagonista, Wah, um gangster, vive numa cidade tendencialmente escura, muito cool (como não, se a fonte de iluminação primordial é o néon?), mas perigosa, violenta, com um quê de claustrofóbico e de propensão à redução da potência do ser (a grande ambição de uma das personagens é, justamente, não morrer sem ter sido alguém). No ecrã da mente de Wah, porém, há um céu azul, diurno, pontuado de nuvens, esvaziado da coolness das luzes da cidade, mas pleno de um efeito de real que o néon, por muito sedutor que seja, nunca veicula. E, no entanto, se olharmos com atenção para os ecrãs das televisões, percebemos, sobreimpressos nelas, o reflexo das luzes da metrópole, o que talvez signifique que o sonho está inevitavelmente contaminado pela realidade matérica, contingente, da cidade. Ou seja, para bom entendedor (porque não obstante a sua má fama de objectos design, os filmes de Kar-Wai falam, na verdade, a língua dos bons leitores): este céu azul e a promessa de vida que ele representa nunca deixarão de ser um sonho inalcançável neste filme.
Em suma, na sua primeira obra, Kar-Wai apresenta-nos dois mundos simbólicos que se concretizam em dois espaços distintos: a malha urbana de Kowloon, onde decorre a quase totalidade da acção, e a ilha de Lantau. Cada um destes espaços, por sua vez, associa-se a diferentes personagens: a cidade pertence a Wah e ao seu companheiro Fly, e Lantau pertence à prima de Wah, Ngor. E estas localidades associam-se, por fim, a estéticas diferentes.
Kowloon é um prenúncio da cidade nocturna e do estilo do vindouro Do lok tin si (Anjos Caídos, 1995): hiper-estetizado, sensual, bidimensional, mais líquido do que sólido, filmado com grandes angulares que abstractizam o espaço e deformam os rostos e os corpos, em temporalidades alteradas (a temporalidade da violência, do estertor, da pulsão de morte), numa refracção constante da matéria do mundo em superfícies reflectoras. Lantau, por seu turno, parece filmado à Hou Hsiao-Hsien (nos filmes dos anos 80): iluminação tendencialmente naturalista, um uso da câmara discreto, uma outra temporalidade, mais lenta (o tempo necessário à respiração, ao toque e — em termos melodramáticos, que são aqueles em que este filme deve ser visto — ao amor), cores homogéneas, a solidez e o peso das coisas físicas, e, por fim, a natureza: o mar, o céu, as árvores, e o canto dos pássaros, que, muito oportunamente, calam a música pop que, de outro modo, ameaçaria inundar o filme.
Todo o cinema de Wong Kar-Wai é extraordinariamente naturalista, porque todo ele é sobre este sonho, sobre a vida virtual.
Percebe-se, portanto, que Wong iniciou a sua carreira de cineasta no campo do cinema codificado de gangsters, resgatando a antiga história do homem cansado de uma vida de violência e incerteza, que encontra numa mulher, e em tudo o que ela traz consigo — uma beleza desmaquilhada, uma estranha doença pulmonar, uma aversão à desordem, o talento para a abnegação e, sobretudo, uma vida em Lantau, num quarto bem iluminado, pago com trabalho honesto e digno —, a possibilidade da fuga. Esta fuga é, no mundo intrincado e polissémico de Wong, uma fuga múltipla: à cidade de Kowloon, ao mundo do crime, a uma existência solitária (nos filmes deste realizador, a vida ideal é sempre a dois), e também, num prolongamento reflexivo da questão, ao cinema de gangsters.
Na verdade, Ao Sabor da Ambição parece ser, justamente, um filme de género que visa, por meio do desejo de mudança do seu protagonista, suplantar os próprios códigos genológicos com os quais se constrói. A evasão que Wah ambiciona para si significa, também, a fuga de Ao Sabor da Ambição ao cinema de género de Hong Kong dos anos 80 e a entrada numa outra tendência cinematográfica, mais naturalista. Porém, o final trágico dir-nos-á que esta transição é impossível. E, com efeito, o fatalismo desse final dita, também, o destino do cinema de Wong Kar-Wai, em que o naturalismo, ou a “vida natural”, será quase sempre uma miragem, aqui simbolicamente veiculada na imagem nas televisões do plano inicial, mas que viria a reaparecer, com um estatuto análogo, num bilhete de avião em Chung Hing sam lam (Chungking Express, 1994), num conjunto de ovos em Dung che sai duk (As Cinzas do Tempo Redux, 1994), num candeeiro em Chun gwong cha sit (Felizes Juntos, 1997)…
As personagens de Wong viverão sempre esta impossibilidade de serem pessoas reais, com vidas reais, e permanecerão sempre enclausuradas no regime da imagem, da bidimensionalidade, da opacidade, do código e do género: o filme de gangsters, a comédia romântica, o melodrama, a ficção científica, o wuxia. No entanto — e de suma importância —, elas serão também sempre seres que, no seu achatamento cinematográfico, sonham. O sonho é a realidade que reivindicam para si. E, por esta razão, todo o cinema de Wong Kar-Wai é extraordinariamente naturalista, porque todo ele é sobre este sonho, sobre a vida virtual, ou, melhor dizendo, sobre a virtualidade da vida, seja esta concretizada em sonhos e memórias, ou em desejos e vontades.
Para além de tudo isto (e sem que disto se dissocie), há Maggie Cheung, que — como Delphine Seyrig, Yoshiko Kuga, Romy Schneider, Bulle Ogier… — tem em si mesma o cinema e, ainda, um mundo inteiro melhor do que o cinema.
Wong Gok ka moon (Ao Sabor da Ambição, 1988) está em exibição pela mão da Medeia Filmes. Consulte horários e locais de exibição aqui.