João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,
que não amava ninguém.
Carlos Drummond de Andrade, “Quadrilha”
Em meados dos anos 60, Mick Jagger e Keith Richards compuseram uma canção que intitularam “As Time Goes By”, repetindo o título da música que Sam (Dooley Wilson) tocou e cantou em Casablanca (1942) a pedido de Ingrid Bergman (“Play it, Sam, for old times’ sake”). “Time” foi substituído por “Tears”, e chegou-se a “As Tears Go By”, que Marianne Faithfull tornaria célebre, cantando-a em 1964.

Wong Gok ka moon/As Tears Go By (Ao Sabor da Ambição, 1988) é também o título da primeira longa-metragem de Wong Kar-Wai, que não possui, contudo, à partida, qualquer ligação explícita com essa canção, e que integra, na verdade, um outro hit pop ocidental: uma versão chinesa de “Take My Breath Away”, dos Berlin, interpretada por Sandy Lam. Há, porém, pelo menos dois elementos na canção de Jagger e Richards que se parecem conjugar e que se afiguram relevantes numa abordagem ao filme de estreia de Wong. Refiro-me, em primeiro lugar, aos versos:
I sit and watch the children play
Doing things I used to do
They think are new
I sit and watch
As tears go by
Por um lado, a construção lírica põe em evidência duas temporalidades distintas, a dos jovens e a de alguém mais maduro. Por outro lado, os mesmos versos fazem coalescer simbolicamente os jovens e os mais velhos, dado que os primeiros fazem coisas que os últimos haviam feito com a idade deles. O aspecto fulcral a ressalvar aqui, no entanto, é o nível de consciência de uns e de outros: os jovens fazem coisas “que julgam ser novas”, não se apercebendo de que estão a repetir os mesmos “jogos” que as gerações anteriores jogaram. Os mais velhos sabem que os mais novos estarão, no futuro, no mesmo lugar em que eles agora estão. As lágrimas correm com a tomada de consciência de um tempo perdido, um tempo em que o presente era vivido na primeira pessoa, com a frescura e a vertigem da novidade, ao invés de ser testemunhado a partir de fora (“I sit and watch”).
Sendo esta uma canção sobre a dor associada à consciencialização da passagem do tempo, o que se revela extraordinário no último verso (que é também o título da canção) é a proximidade fonética, que dificilmente passa despercebida, entre “As tears go by” e “As years go by”. Com uma espécie de tropeço, o passar dos anos e o derramar das lágrimas confundem-se.

De certa forma, o primeiro filme de Wong Kar-Wai tinha que ver com este “tropeço” ao tematizar as vidas de jovens demasiado comprometidos com o presente para conseguirem projectar-se no futuro. Eram jovens, literalmente, sem futuro. O tópico da juventude — ou, melhor, da nostalgia pelos dias e pelas noites selvagens da juventude — volta a tornar-se central em Ah Fei jing juen/Days of Being Wild (Dias Selvagens, 1990), uma obra cujo título original cantonês, segundo David Bordwell, se traduziria em inglês como “The Story of Rebellious Youth”, que é justamente o título que Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, 1955), de Nicholas Ray, recebeu em Hong Kong. Se tivermos em conta que As Tears Go By também retoma elementos de Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973), de Martin Scorsese, percebemos que, nos seus primeiros filmes, Wong Kar-Wai navega uma rede de referências associadas aos universos múltiplos das juventudes (a ocidente e a oriente) no cinema.
Assistimos aqui a uma contradança, a um vasto conjunto de personagens que se apaixonam por outras que não lhes correspondem, e que estão, por sua vez, irremediavelmente apaixonadas por outras.
Days of Being Wild distingue-se do anterior, em primeiro lugar, no género: ao passo que, na longa-metragem de estreia, Wong se inscrevera no gangster film, no filme subsequente estamos em pleno campo do melodrama, em particular do melodrama novelesco, dos romances do argentino Manuel Puig, das fotonovelas, da Hollywood dos anos 60, da música pop sentimental dos anos 50 e 60, e de toda uma mitografia que radicaria em Dallas. E, contudo, associando-se a tudo isto, Wong cria um filme singular, sem paralelo na história do cinema.
Tal como no célebre poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, assistimos aqui a uma contradança, a um vasto conjunto de personagens que se apaixonam por outras que não lhes correspondem, e que estão, por sua vez, irremediavelmente apaixonadas por outras. Zeb está apaixonado por Lulu, que está apaixonada por Yuddy; e, concomitantemente, Tide está apaixonado por Su Li-zhen, que está apaixonada por Yuddy. Tal como a Lili do poema de Carlos Drummond de Andrade, Yuddy não está apaixonado por ninguém. Ele é o protagonista no centro da rede de descoincidências e de não-correspondências, um homem incapaz de amar os seres ao seu redor — as mulheres, os amigos, a madrasta —, e que é consumido pela obsessão de encontrar a sua mãe verdadeira, uma figura ausente, um fantasma que nunca obterá presença (embora apareça num breve plano), permanecendo proscrita da vida do filho, que nunca encontrará, por isso, um sentido para a sua vida, condenando-se, por conseguinte, à inexistência.

Na verdade, as figuras presentes de Days of Being Wild não são menos espectrais do que a mãe desconhecida que tudo assombra. Esta trata-se de uma dança (em certas sequências, particularmente belas, essa dança é literal) de fantasmas. Perdido na sua obsessão, Yuddy passa pela vida como um zombie, ou como um pássaro sem pernas que é transportado pelo vento e tem de morrer assim que pousa pela primeira vez (uma metáfora com a qual o próprio se descreve); Lulu e Su Li-zhen perdem-se no amor por um homem que não as reconhece como quem elas são verdadeiramente; Tide nunca se torna, para Su Li-zhen, mais do que a alternativa inferior e insatisfatória a Yuddy; Zeb não se consegue emancipar da condição de sombra de Yuddy; Rebecca não quer dizer ao filho adoptivo o nome da sua verdadeira mãe, que substituiria o seu, preferindo ser odiada a ser esquecida por ele.

Ao ler as últimas linhas, a conhecedora do cinema de Wong Kar-Wai saberá que poderiam estar a ser descritas personagens de outros dos seus filmes. Porventura influenciado pela auto-referencialidade do cineasta, repito aqui o que escrevi a propósito de Do lok tin si/Fallen Angels (1995), que, “tal como em Jacques Demy, as personagens de Wong têm algo de intercambiável: os plots e counterplots que elas encontram para si mesmas garantem-lhes uma certa singularidade, mas, no fundo, essas intrigas são uma contingência fruto de um mundo que, por estar em movimento, produz inevitavelmente histórias. Na raiz, as personagens de Wong confluem todas numa solidão desesperada e num vazio ontológico que tentam, em desespero melancólico, preencher com intrigas amorosas”. E, assim, Su-Lizhen, que reaparecerá em Fa yeung nin wah (Disponível para Amar, 2000), é, aqui, muito semelhante à personagem que a mesma Maggie Cheung interpretara em As Tears Go By; Lulu, que reaparecerá em 2046 (2004), tem algo da bailarina de Zhang Ziyi no mesmo 2046; Tide antecipa as personagens de Tony Leung Chiu-Wai em Dung che sai duk (As Cinzas do Tempo Redux, 1994), Disponível para Amar e 2046; Leslie Cheung repetiria, com efeito, a mesma personagem em Chun gwong cha sit (Felizes Juntos, 1997); Rebecca não está muito longe da mulher loira de Fallen Angels. Etc. Etc.

O mundo psicológico de Wong Kar-Wai é um mundo fora dos eixos, de desequilíbrio constante, de um inacabamento perpétuo. E esta instabilidade narrativa tem um reflexo na forma. O ritmo da música, da montagem, do movimento dos corpos, inscreve o filme numa tradição da linha sensualizante da imagem que — sendo aqui tintada de constantes verdes e azuis — vem de há muito tempo, dos melodramas mudos protagonizados por Asta Nielsen, pelas divas italianas, por Lillian Gish [os anjos e o mundo em ruínas de Broken Blossoms (O Lírio Quebrado, 1919)]. As tensões psíquicas, emocionais, são rematerializadas no fumo dos cigarros, no nevoeiro, na iluminação tímida, no pó das casas, no vento que abana as copas das árvores, na chuva que fustiga os carros, nos tecidos e nos panejamentos, no calor opressivo e, acima de tudo, no suor que cobre corpos, roupas, cabelos.
O melodrama, entre outras coisas, é justamente isto. Se todo o cinema de Wong Kar-Wai viria a ter no seu centro a transposição simbólica do mundo invisível (a memória, as paixões, o desejo) para a superfície visível do mundo físico (aquela, portanto, que é transformável em imagem), Days of Being Wild é o primeiro passo seguro dado pelo cineasta nessa direcção.
Ah Fei jing juen (Dias Selvagens, 1990) está em exibição pela mão da Medeia Filmes. Consulte horários e locais de exibição aqui.
Leia aqui o texto de José Bértolo sobre As Tears Go By, filme também em exibição pela Medeia Filmes.