Coro de vergonha quando olho para as fotografias das estantes de DVD dos outros intervenientes que responderam ao apelo do site À pala de Walsh: “Let’s get physical: contra o fim dos suportes físicos, a favor da liberdade do espectador”. Estantes organizadas, quais fileiras militares, alinhadas, em salas próprias. O ditado é popular, mas porventura verdadeiro. Em casa de ferreiro, espeto de pau. Ou em casa de distribuidora, DVD que são como plantas invasoras.
Cá em casa, os DVD não coexistem com as outras espécies de forma equilibrada, multiplicam-se rapidamente e fogem ao controlo da mão. A população não é estável. Por mais que tente anualmente podá-los, desbastá-los, atravessam as estantes em que estavam confinados e espalham-se por outras divisões da casa.
Há DVD na sala de estar, há DVD no escritório, há DVD na entrada de casa e no corredor, às vezes há DVD na mesa de cabeceira no quarto. Escapam a qualquer tentativa de classificação ou organização, à excepção da razão do coração.
Na sala, estão grandes amores que se querem perto. Aqueles a que se volta mais vezes. E o amor não se explica. Por isso, na mesma estante vivem Ozu e Moretti, Straub/Huillet e Almodóvar, Costa e Lynch. E pelo meio alguns CD a que se tem um amor físico parecido ao do DVD e um berçário de suculentas.
Logo à entrada, estão alguns dos franceses preferidos, lado a lado com alguns dos portugueses mais amados. Os muitos filmes da querida Varda estão escondidos por um gato da artista Joana Villaverde. Foi um acaso, mas tenho a certeza que a faria sorrir. Os Tati estão mesmo ao lado dos guias de viagens. Não sei como foram lá parar, talvez tornem as férias mais divertidas. E há fotografias de família espalhadas por todo o lado. Quase tantas como os filmes do João Canijo. Em cima, os filmes são guardados por alguns dos animais que fizeram as edições de DVD do Béla Tarr, provavelmente uma das que mais gostei de ver nascer. E há ainda DVD que acabaram de chegar e por aí ficaram, antes de escolherem o sítio que vão ocupar.
No escritório, estão todos os outros, sempre numa guerra com os livros, a ver quem consegue ocupar mais espaço. Há posters, postais, fotografias de filmes espalhados por todo o lado. Uma das primeiras vezes que um dos meus enteados foi lá em casa perguntou-me se eu lhe conseguia arranjar um poster do primeiro filme do Jurassic Park (Parque Jurássico, 1999). Hoje, também esta lá esse, pendurado na parede do quarto dele, porque o primeiro filme foi “mais fixe” do que todos os outros.
Perco a conta às vezes em que me perguntam: “Mas tens mesmo de ter estes DVD todos aqui?” Tenho. Porque nunca sei quando, por trabalho ou por amor ou por outra coisa qualquer, preciso de pôr um DVD no leitor e ir à procura daquele plano, daquela frase, daquele gesto. Ou simplesmente ver tudo, ver outra vez, melhor, ver de novo, porque vemos sempre alguma coisa que não tínhamos visto da vez anterior.
É claro que não há prazer como o de poder rever em sala, mas, quando não se pode e se quer voltar a um filme, o melhor é tê-lo mesmo à mão. Digo isto e, contudo, não tenho nenhuma nostalgia, nem vício de coleccionadora. Quando digo que todos os anos tento desbastar a colecção, faço-o de facto. Todos os filmes a que acho que não vou voltar são doados. Corro o risco de me enganar e algum dia me arrepender de ter expulsado algum de casa, mas os metros quadrados não esticam e os DVD podem invadir tudo mas têm de deixar espaço às pessoas. E, por isso, quase toda a colecção de VHS com filmes gravados da RTP já não existe. O texto é em defesa dos suportes físicos, mas, como não me canso de o repetir, devíamos defender também a presença do cinema no serviço público de televisão. Vénia minha sempre e para sempre ao Fernando Lopes e todos os outros que programaram cinema na RTP e foram a Cinemateca desta mulher que até aos 18 anos viveu numa cidade de província em que o cinema praticamente não chegava.
Regressando à defesa dos suportes, as razões não são apenas sentimentais. Objectivamente, se não tivermos um filme num suporte físico, para vermos ou revermos muitos filmes, dificilmente encontraremos solução nas plataformas de aluguer ou streaming. Não só porque muitas delas não estão interessadas em muitos cineastas e no cinema que escapa às lógicas comerciais. Mas porque mesmo que estejam, porque também há plataformas, como a Filmin, que tratam o cinema com outro cuidado, existirá sempre um problema legal, de direitos. Quando um distribuidor num país compra os direitos de determinado filme para a sua exploração, nesse país, fá-lo por um determinado número de anos, não para sempre, como no final dos contos de fadas. Sendo que, hoje em dia, e para determinados filmes, a que podemos chamar clássicos, ou para versões restauradas, esse período muitas vezes encurta-se bastante, não ultrapassando os três ou cinco anos. Dito isto, se o distribuidor edita o filme em DVD e eu o comprar, o distribuidor pode não poder vender mais DVD desse filme, ou vender o filme numa plataforma de streaming, ou vendê-lo à televisão, ou mostrá-lo num cinema, cinco anos depois, mas se eu tiver o DVD posso continuar a vê-lo durante toda a vida. Senão o comprar e não o tiver, arrisco-me a que deixe de ser comercializado e deixe de estar disponível. Troco a questão dos direitos assim por miúdos porque aquilo que é bem óbvio, para quem trabalha ou tem um contacto maior com o meio, não é claro para a maioria das pessoas.
O que está na internet também não é “para sempre”. A menos que seja pirataria e disso não falo ou falo apenas para o que nem em suportes físicos foi editado. Gravar um DVD a partir de uma VHS de uma emissão da RTP de há mais de 30 anos de um filme que hoje só pode ser visto na Cinemateca ou no ANIM ou numa qualquer programação especial que um festival lhe dedique é querer apenas partilhar um amor a determinados filmes. Como os de Margarida Cordeiro e António Reis. Ou como a curiosidade que para mim é o No Sex Last Night (1996) da Sophie Calle.
As vendas de DVD caíram a pique. E, em Portugal, ao contrário de outros países, não foram compensadas pelos resultados das plataformas de aluguer. É cada vez mais difícil editar DVD tendo em conta o número de exemplares que se vendem. E é facílimo apontar o dedo a distribuidores por não serem feitas edições em Bluray ou não serem editados determinados filmes, quando, num país de dez milhões de pessoas, vender mil exemplares já é um sucesso. E é ainda mais difícil quando as lojas que antes lhes dedicavam muito espaço, hoje praticamente não lhes dão destaque nenhum. A sobrevivência do suporte está em risco e a única forma de o salvar é continuar a comprar edições.
Volto a quebrar as regras do jogo e, em vez de uma edição, escolho duas. Espero ter perdão possível. Nem foram a primeira escolha, mas essa [a caixa da obra completa de João César Monteiro], por causa de uma programação feliz dos TVCine, deixou de ser tão evidente. No fundo, são duas edições mas a justificação é a mesma. Sublinhar a importância de ter em DVD (e já agora com cópias restauradas) filmes fundamentais do cinema português. Há imensos filmes extraordinários que estão totalmente inacessíveis e que fora da programação da Cinemateca ou dos arquivos do ANIM não podem ser vistos. Alguns nem dessa forma, porque os produtores não os depositaram. E não digo apenas ser vistos por aqueles que, em Portugal, nasceram como eu fora de Lisboa. Digo vistos pelo mundo.
E por isso escolho a edição da Midas e da Cinemateca dos dois primeiros filmes de Paulo Rocha. Tornar disponíveis em cópias restauradas dois dos mais belos filmes do cinema português é serviço público (e muito aplaudo a edição da Grasshopper que os está a levar ainda mais longe). E a edição da Criterion dos filmes de Pedro Costa em que se inclui Juventude em Marcha (2006), que continua infelizmente inédito em DVD em Portugal.
Diz-se que as plantas invasoras podem provocar prejuízos socioeconómicos negativos. É verdade, mas o impacto positivo de poder ir já pôr um DVD no leitor – e, por exemplo, rever Vitalina Varela descer de um avião -, compensa largamente.
Marta Fernandes, distribuição Midas Filmes
Texto escrito em resposta ao nosso apelo em defesa dos suportes físicos, publicado no dia 19 de Novembro de 2020 e assinado pelos editores do À pala de Walsh.