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Kassagi, em Pickpocket
No seu livro O Cinema ou o Homem Imaginário, Edgar Morin comenta uma afirmação de Robert J. Flaherty, segundo a qual “é possível dizer quase tudo através da imagem e do som (…) quase nada através do discurso”[1]. Se o cinema, diz Morin, é, num sentido, mais rico do que a linguagem verbal, é, noutro sentido, mais pobre do que esta: assinala, por exemplo, que Flaherty só poderia expressar a sua ideia através do discurso. Este parece ser o mesmo tipo de entendimento que preside às frases que abrem Pickpocket (O Carteirista, 1959), anunciando, por palavras, que este filme é feito de imagens e sons: “Este filme não é do género policial. O autor esforça-se por exprimir, através de imagens e sons, o pesadelo de um jovem levado pela sua fraqueza a uma aventura de roubos para a qual não foi feito”.
Pensar nas questões filosóficas e morais que estão em jogo em Pickpocket levar-nos-ia para outros lugares. Importa, no entanto, olhar brevemente para um discurso do protagonista, Michel (Martin La Salle), em que este expõe perante o inspector principal da polícia (Jean Pélégri) as suas considerações acerca de um ideal de super-homem, indispensável à sociedade em função da sua inteligência, do seu talento ou do seu génio, que deveria guiar-se unicamente pela sua consciência, em vez de ficar sujeito à obediência à lei. Quando o inspector sugere que isso pode ser difícil e até perigoso, não sabendo exactamente como identificar esses homens ditos excepcionais, Michel responde-lhe que eles próprios, e as suas consciências, ficariam responsáveis por essa identificação.
É a resposta de Michel que me interessa aqui. Segundo ele, o crime seria apenas algo temporário — “Não se preocupe, seria só no princípio, depois pararíamos”: esses indivíduos seriam capazes de se parar a si próprios. Falando de uma questão moral, Michel usa o verbo arrêter, que denota, em diferentes contextos, a interrupção de um movimento, de um fluxo, seja a paragem de um comboio, a interrupção de uma actividade ou a acção física de deter alguém, particularmente pertinente no contexto daquela conversa. Encontramos algo semelhante nas frases de abertura do filme, onde se usa o verbo pousser a propósito de algo de natureza moral: o jovem protagonista vê-se empurrado para a vida de carteirista, aventura para a qual não tinha sido destinado.
Entrevê-se nestas palavras a importância do movimento como eixo do filme, o que poderia parecer inesperado face à centralidade da questão moral na obra. Mas, de facto, o elogio do movimento e da forma em desfavor do pensamento ou das ideias, e, sobretudo, o garantir que é o primeiro par e não o segundo a fundar o filme é concepção cara a Robert Bresson. Surge já explicitamente enunciada na primeira parte, escrita entre 1950 e 1958, das suas Notas Sobre o Cinematógrafo[2], a obra onde o realizador reúne preceitos acerca do seu trabalho e da arte do cinematógrafo.
São os olhos, que parecem mexer-se sem propósito, sem vida, que silenciosamente nos revelam os movimentos escondidos.
Nesse livro, diz dos seus modelos que, contrariamente ao que acontece com os actores, o movimento é descrito do exterior para o interior (17): a construção dessa figura depende de trazer para dentro de si tudo aquilo que era seu, mas que estava fora (26). A acção dos modelos não deveria exactamente ter uma motivação interna, uma reflexão por detrás, uma intenção (27), mas antes nascer através do corpo, dos movimentos, não submetidos a uma vontade ou a um pensamento (34-35): “Aos teus modelos: «Não penses no que dizes, não penses no que fazes». E também: «Não penses sobre aquilo que dizes, não penses sobre aquilo que fazes»” (27).
É da visão daqueles movimentos que, diz Bresson, vem toda a alegria (74). Daí o seu incitamento a que se considere um filme como “uma combinação de linhas e de volumes em movimento, de forma independente daquilo que representam ou significam” (90). Daí, também, que a sua confiança no que descreve como “‘a linguagem visível’ dos corpos, dos objectos, das casas, das ruas, das árvores, dos campos” (26) seja maior do que a que deposita no diálogo verbal — as palavras são essencialmente vistas como um elemento que compõe a lista de recursos do realizador (38-39).
Como na passagem de Montaigne citada por Bresson, segundo a qual “Os movimentos da alma nascem com a mesma progressão que os do corpo” (46), a filosofia de Michel acerca do crime e da moral existe a par dos seus movimentos, descritos em sentido contrário aos daqueles que o rodeiam. Estes movimentos têm uma natureza particular: acontecem em segredo, ocultos no meio de um cenário tumultuoso. As cenas em que Michel e os seus cúmplices actuam como carteiristas têm sempre lugar no meio de multidões: o magote que assiste às corridas de cavalos, as carruagens do metro de Paris, uma rua movimentada à saída do banco, a fila para os bilhetes na gare de Lyon, os corredores de um comboio que se prepara para partir. É contra a azáfama dos habitantes da cidade e as suas motivações que Michel se move, contra a multidão que obedece à lei e ao dinheiro — as apostas, as idas e vindas para o trabalho.
Para que o roubo possa germinar no meio desse desfile, protegido dos olhares da polícia, é preciso que o movimento das mãos se torne imperceptível. Essa invisibilidade nasce, antes de mais, no rosto impassível do protagonista. Anuncia-se naquele corpo uma acção dividida, como se a face e as mãos não pertencessem à mesma pessoa. O rosto de Michel e a quase totalidade do seu corpo acompanham a inércia daqueles que o circundam. Os olhos dirigem-se para um ponto que não corresponde àquele por onde cirandam os dedos, fixam-se no infinito, imitando, na aparência, o olhar dos transeuntes: fitam a janela, o guichet, o jornal, seguem, sem os ver, os cavalos.
Ao abrir Pickpocket com as palavras “Este filme não é do género policial”, Bresson lembra aos espectadores a necessidade de manterem os olhos abertos e de contrariarem aquilo que, à superfície, o filme poderia parecer.
É para dentro que olham, como se contemplassem mentalmente o movimento dos dedos, atarefados mais abaixo, ao nível do peito, da cintura. São os olhos, que parecem mexer-se sem propósito, sem vida, que silenciosamente nos revelam os movimentos escondidos, num eco de uma passagem de Notas, em que Bresson diz ver nos transeuntes figuras de mármore, que só se tornam humanas quando os seus olhos se cruzam com os delas (117).
Numa das primeiras cenas do filme, a excitação crescente da multidão que assiste à corrida de cavalos acompanha de modo perfeito quer a antecipação sentida pelo espectador em relação ao sucesso do roubo de Michel, quer a agitação interna do protagonista. Ele apodera-se da carteira no momento exacto em que os animais cortam a meta, explosão dispersa na torrente de espectadores que abandonam o recinto, caudal no qual Michel se mistura e se esconde, ao mesmo tempo que a sua agitação se dilui também.
É notável, nas cenas em que Michel actua sozinho, ainda sem os seus cúmplices, o contraste entre a neutralidade do seu corpo e do seu rosto e o alvoroço interior que o acomete, revelado apenas através de pequenos detalhes: o burburinho da multidão que assiste à corrida; às vezes a sua própria voz, reposicionada pelo dispositivo de voice-over, que anuncia que o jornal lhe treme nas mãos; o ruído constante das carruagens do metro que, como o sangue de Michel, abalam os túneis de Paris, bombeando a cidade: “o meu coração estava aos saltos”. A desarmonia entre a civilidade do corpo e a falta de decoro das mãos coaduna-se com a convivência de dois níveis distintos no interior do filme. Essa convivência traduz-se num efeito de mise-en-abîme: sob a superfície imóvel das ruas da cidade, circulam carruagens no interior das quais o corpo inerte de Michel é arrastado: apesar dessa inércia, ou no seu interior, descrevem-se outros movimentos.
Ao abrir Pickpocket com as palavras “Este filme não é do género policial”, Bresson lembra aos espectadores a necessidade de manterem os olhos abertos e de contrariarem aquilo que, à superfície, o filme poderia parecer, tal como nas cenas em que Michel actua. Também aí, o movimento geral do plano distrai-nos constantemente do movimento das mãos: são os detalhes que apontam para o que está a acontecer, o que exige que o espectador seja uma espécie de adivinho, sugestão de Bresson que irei recuperar mais adiante.
Por outro lado, ao dizer que o filme não é um policial, estabelece-se de certa forma uma relação com o policial. Propõe-se que é possível um filme parecer uma coisa, sem ser essa coisa, o que se relaciona com considerações desenvolvidas em Notas sobre noções de real, verdade e semelhança. A tensão constante entre o que se vê e aquilo que se esconde, ou entre aparência e essência, é desde logo anunciada nas primeiras palavras de Michel que lemos: “Sei que, normalmente, quem fez coisas destas, cala-se. E que quem delas fala, não as fez. E, no entanto, eu fi-las”. Inscreve-se ali a descoincidência dos dois elementos: a acção silencia a palavra ou a palavra oblitera a acção, num jogo de cancelamento e ocultação mútuos, que ressurge na dança em que as carteiras, como que por magia, aparecem e desaparecem.
A relação entre carteirismo e magia é aliás evidente: ambos dependem da destreza das mãos, que transportam objectos, escondendo-os, fazendo depois com que reapareçam, através de uma espécie de metamorfose: será aquela a mesma carteira que vimos há um segundo atrás? Não por acaso, Kassagi, o famoso mágico franco-tunisino que começou como carteirista, foi responsável pelo aconselhamento técnico acerca dos gestos dos ladrões, e Bresson fez dele o primeiro cúmplice de Michel. Igualmente importante é a relação entre o trabalho dos ladrões-ilusionistas e o do cineasta, numa continuação da relação intrínseca com a magia que marcou o cinema desde a sua origem, e que Bresson recupera aqui. À semelhança de Michel, cuja actividade se relaciona com e, em boa verdade, depende da distracção dos outros, que nada vêem, também o trabalho de Bresson consiste, segundo o próprio, num gesto de revelação de algo que mais ninguém viu: em “tornar visível aquilo que, sem [ele], talvez nunca chegasse a ser visto” (82).
Como se dá essa revelação, de que depende ela? Em Notas, esta pergunta é abordada em detalhe. Em primeiro lugar, destaca-se a importância do trabalho da câmara, elemento que traz ao cinematógrafo um lado mecânico. Bresson concebe a câmara de filmar como capaz de captar, com a “indiferença escrupulosa da máquina”, coisas que escapam “ao olho humano, ao pincel, à caneta” (38). Esta captura, exemplar porque não humana, surge a par de uma concentração extrema por parte do artista, do cineasta (“um estado de ignorância e curiosidade intensas” [28]), que preparou o filme como quem prepara uma batalha (30). O cruzamento entre este lado técnico introduzido pela câmara, juntamente com a disponibilidade e o olhar treinados do cineasta — como a habilidade técnica de Kassagi — e a produção obscura de qualquer coisa (70) — como a sorte de que Michel fala a certa altura — é o que faz do cinematógrafo um instrumento de descoberta (70), uma espécie de espera disciplinada da revelação.
Bresson usa o silêncio, a imobilidade, a simplicidade como ferramentas de revelação e de afirmação, depositando a sua confiança na possibilidade de os espectadores poderem ser também eles uma espécie de adivinhos.
Essa espera relaciona-se com o apanágio descrito ao longo de Notas de uma forma de automatismo, de que Bresson fala a propósito dos modelos, e que permite uma relação justa entre modelos e os objectos (35), porque os seus movimentos estarão libertos daquilo que se descreve como a força opressiva do pensamento (34), das intenções (27), de uma interioridade anterior ao gesto. Será o lado automático, mecânico precisamente, a, paradoxalmente, permitir uma espécie de milagre, o encontro que não se pode, de outra forma, produzir. Segundo o recorrente Montaigne das Notas: “Cada movimento revela-nos” (130), mas apenas, insiste Bresson, se for automático (não comandado, determinado [130]).
Se as ideias que se encontram nos livros serão sempre, como diz, livrescas, o que há a fazer é “ir directamente ao encontro dos objectos e das pessoas” (130). A prática de Bresson é declaradamente centrada nas formas, formas que “se parecem com ideias” e que devem por isso “ser tratadas como ideias” (42), recusando-se assim uma posição centrada no discurso ou na razão, como aliás se subentende no que acima dissemos acerca do embate entre palavra e acção. No interior do filme, o segundo elemento suplanta o primeiro, parece mais sólida a sua realidade: se, de acordo com a formulação de Michel, dizer significa não fazer, a frase com que encerra a confissão — “E, no entanto, eu fi-las” —, na qual se pode ler, dedutivamente, a negação do acto, é em rigor anulada por tudo aquilo que se lhe segue, o filme na sua quase totalidade.
Construir uma afirmação através de uma negação poderia ser aqui parte da lição de Bresson, cuja concepção da arte cinematográfica depende precisamente de um constante jogo entre opostos — fazer desaparecer algo para levá-lo a reaparecer noutro tempo, noutro espaço (as carteiras de Pickpocket), matar uma coisa para dar vida a outra (25). Bresson usa o silêncio, a imobilidade, a simplicidade como ferramentas de revelação e de afirmação, depositando a sua confiança na possibilidade de os espectadores poderem ser também eles uma espécie de adivinhos (107). Sugere por isso “que se escondam ideias, mas de forma a que as pessoas as encontrem”, porque o mais importante, diz, “será o mais escondido” (45).
Trata-se, como disse, de uma espera disciplinada da revelação, um criar das condições ideias para que algo seja desvelado — algo que não existia de antemão, mas que foi criado no processo, no meio: “Isto ocorre porque um mecanismo faz surgir o desconhecido, e não porque encontrámos esse desconhecido de antemão” (70), que ecoa na passagem de Montesquieu sobre o humor que Bresson recupera no final do livro: “A dificuldade consiste em encontrar um sentimento novo na coisa que, no entanto, vem da coisa” (136). Lembro-me assim do que João Bénard da Costa diz num depoimento incluído no documentário Cinema Português —Diálogos com João Bénard da Costa (1997) de Manuel Mozos, sobre aquilo que seria o entendimento do cinema mantido por Margarida Cordeiro e António Reis: “como forma de captação, por um lado, de uma realidade que está perante o olhar da câmara, e dos limites da transfiguração dessa mesma realidade”. Reis, diz Bénard,
“era capaz de estar um dia inteiro à espera daquela luz determinada, com aquele raio, sobre aquela folha, que ia dar aquele tom que ele queria, que ele tinha visto, que lhe parecia, para usar a palavra literalmente, mágico [a obscura produção de Bresson]. E era essa magia que ele estava convencido que acontecia ao olhar da câmara, e que acontecendo ao olhar da câmara lhe cabia captar. Não porque ela não estivesse lá, mas exactamente porque ele acreditava que ela estava lá.”
[1] Edgar Motin, Le Cinéma, ou l’Homme imaginaire [1956]. Paris: Éditions Gonthier, 1958, p.157.
[2] Robert Bresson, Notes sur le cinématographe [1975] (Paris: Gallimard, 1995).
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. Pickpocket é parte dessa lista.