Ilya Naishuller já tinha cativado alguns dos membros cá da casa com a sua primeira longa-metragem, Hardcore Henry (Hardcore, 2015), tendo sido considerada pelos walshianos Carlos Natálio e Ricardo Vieira Lisboa um dos melhores filmes de 2016 (um deles, “o” filme de 2016). E a verdade é que a sua adopção cinematográfica da estética do first person shooter tornava-se uma maneira fresca, criativa e inovadora de procurar fazer uso extensivo da câmara subjectiva, inserindo-se numa genealogia formal arriscada que inclui objectos tão sui generis como Russkiy kovcheg (A Arca Russa, 2002) ou Lady in the Lake (A Dama do Lago, 1946). Afinal, devemos levar a sério o cinema de acção / terror / thriller, uma vez que, nas mãos certas, podem-se revelar recreios maravilhosos para um cineasta brincar com a sua câmara. Dada a ambição sedutora em eliciarem respostas fortes na sua audiência (a surpresa, a ansiedade, o medo, a excitação), são eles, possivelmente, os únicos géneros comerciais onde uma audiência mainstream está disposta a ceder totalmente às experimentações formais dos seus realizadores sem se sentir alienada. Hitchcock sabia-o. De Palma, também. É por estas razões que não há qualquer motivo excêntrico (mas apenas lógico) em Luís Mendonça ser um paladino de James Wan ou os Cahiers du Cinéma lá terem o Shyamalan nos tops do ano. Porque, no que ao cinema dos últimos anos diz respeito, a audácia formal só se encontra em dois terrenos: o do arthouse e o da adrenalina.
Naishuller é, claro, um dos nomes que ocupa o último campo. Realizador de videoclipes (na verdade, são menos videoclipes do que curtas-metragens acompanhadas por uma canção) extremamente originais, enérgicos e imprevisíveis para as bandas russas Biting Elbows (da qual é vocalista principal e guitarrista), Leningrad e para o cantor canadiano The Weeknd, alguns que se tornaram virais e serviram de treino para o seu filme de estreia, é um realizador que não parece apreciar regras, normas ou bons princípios em termos de construção formal de uma obra, um cineasta com essa tal vontade de partir à descoberta e de brincar com a sua câmara sem temer represálias ou consequências. E, apesar de Nobody ser, propositadamente, o seu trabalho mais tradicional, nem por isso deixa de ter os seus momentos visualmente audazes. Dois exemplos: o extenso tracking shot scorseseano, motivado pela deslocação de uma personagem num cenário (neste caso, o vilão a entrar no seu club), introduzindo a audiência num espaço que se revelará fundamental para a narrativa com o seu ambiente e topografia devidamente delineados; e o plano que acompanha o movimento rotativo de uma arma a ser atirada com o fundo desfocado a deslocar-se, gerando a ilusão de que esta está imóvel e que ao seu redor tudo circula.
Mesmo que não sejam mais frequentes os momentos como estes ou tão radicais como os que caracterizam a sua obra anterior, Nobody não deixa de ser um exemplar exercício de artesão dentro do género, com os cenários e os seus adereços (a corda do “stop requested” e o varão na luta do autocarro; pratos, chaleiras e até uma lasanha na da cozinha) a desempenharem um papel tão relevante para os combates (e, já agora, para o tom mais cómico e auto-irónico do filme) como as elaboradas coreografias, dando origem a autênticos ballets de pancadaria. Estas não são cenas improvisadas na montagem, mas cuidadosamente estruturadas na pré-produção e no plateau, sem recurso a uma exasperante “câmara-Parkinson” ou a cortes a cada milésimo de segundo para dissimular a inépcia e falta de imaginação do seu autor. Antes, a mise en scène graciosa e atenta de Naishuller demonstra pleno sentido de espaço na forma como explora, em planos ligeiramente mais longos e fluidos, a geografia de cada cenário, a distância entre as personagens, a fisicalidade do embate e queda dos corpos, resultando em sequências de acção imersivas onde o espectador se encontra apropriadamente envolvido e orientado, sem deixar de ser surpreendido.
Nobody adopta uma fórmula típica do cinema de acção: a do ex-soldado/agente secreto/assassino forçado a voltar a tirar as armas repousadas no baú trancado da cave, abandonando a reforma temporária encontrada no equilíbrio conjugal e familiar para regressar ao seu ofício obscuro e violento. Mas o filme de Naishuller adopta estes elementos habituais com o propósito de uma curiosa subversão. Como Naishuller tem referido em entrevistas, o protagonista de Nobody retorna ao activo não por obrigação, mas por desejo próprio. Isto é, fá-lo como necessidade de escape à rotina monótona das tarefas domésticas e laborais onde se sente prisioneiro (dadas, no começo, pela montagem precisa feita da repetição dos mesmos planos banais em durações cada vez menores e mais ritmadas, criando uma cadência musical agressiva que bem representa a mediocridade opressora do quotidiano), usando o pequeno assalto do início e o encontro com o gang no autocarro como estímulo para desconstruir, definitivamente, aquilo que é a sua emasculação. Porque o nosso anti-herói não é um justiceiro solitário movido por razões altruístas, mas apenas um agarrado em reabilitação que precisa da sua droga. E essa droga é a violência.
Claro que toda esta apologia pela força bruta (…) pode soar (como tanto cinema de acção) a fascizante. Mas não foi Luc Moullet quem controversamente escreveu “No fascismo, só o ponto de vista de alguém que foi tentado tem interesse”? Ao ver um filme como Nobody, não se torna nada difícil dar-lhe razão.
Daí que Naishuller filme cada concretização efectiva desta adicção extrema de uma maneira libertadora, onde a estilização do confronto físico e da destruição parece sugerir qualquer coisa como o êxtase singular sentido pela sua personagem. Amiúde, as cenas de acção acontecem (total ou parcialmente) au ralenti, acompanhadas por canções inspiradoras com o seu quê de grandiloquência. Olhe-se para os títulos de algumas: “What a wonderful world”, “I’ve Gotta Be Me” ou “You’ll never walk alone.” O cineasta quer que façamos parte da sensação de catarse que o protagonista experiencia após anos de repressão do seu treino e instintos intrínsecos. Porque este não é um homem atormentado ou corroído pela sua natureza bruta. Pelo contrário, celebra-a.
E talvez o melhor espelho desta duplicidade e transformação da identidade do protagonista esteja representado pelas alterações pelas quais passa a sua casa. A casa e as cenas domésticas são filmadas, inicialmente, com cores frias e de pouca saturação, transmitindo cromaticamente a frustração e tédio do protagonista em assumir a faceta de pai de família pacato. Quando é que se dá o início da mudança do protagonista para uma arma humana de destruição maciça? Quando a casa é arrombada. Quando é que esta mudança está completa, terminando, completamente, a fachada identitária? Após a segunda violação de domicílio, onde o lar é queimado por iniciativa do herói, mostrando a despedida irrevogável deste ao seu antigo “eu”. E como é que o filme acaba? Justamente com a compra de uma nova casa (já com cores mais claras e quentes), onde fica subentendida a aceitação da esposa pela vida de violência do marido, assim como a reconstrução da estabilidade doméstica sob uma nova dinâmica.
Claro que toda esta apologia pela força bruta e pelo menosprezo das convenções sociais em nome da satisfação imoral e individualista de impulsos primitivos pode soar (como tanto cinema de acção) a fascizante. Mas não foi Luc Moullet quem controversamente escreveu “No fascismo, só o ponto de vista de alguém que foi tentado tem interesse”? Ao ver um filme como Nobody, não se torna nada difícil dar-lhe razão.