Releio o que escrevi em 2013, quando o Lisbon & Estoril Film Festival dedicou uma retrospectiva à obra de Gianfranco Rosi, e depois em 2016 quando por cá estreou Fuocoammare (Fogo na Água, 2016), e não posso deixar de me sentir como aquela pessoa que, estando numa relação longa, começa a detectar sinais de que as coisas estão a descambar mas que, por amor, resolve fechar os olhos a esses mesmos indícios de desgaste e continua a dar uma oportunidade. Gostei genuinamente de Below Sea Level (2008) – estávamos num espaço onde a distância não era uma questão. Em Sacro Gra (2013), do qual também gostei, Rosi cometeu a primeira “facadinha de matrimónio” e já nela havia momentos de uma certa “poesia na decadência”. Em Fuocoammare (Fogo na Água, 2016) já dormíamos em camas separadas, mas eu ainda gostava dele. Havia um plano do “convés de um barco de refugiados, cheio de lixo, cobertores, garrafas de água vazias e pessoas amontoadas”, onde me indagava, perante um “quadro de natureza morta que é de facto composta de seres humanos mortos”, qual era o partido que tomava Rosi? O da “composição do plano” ou a “presença da sua câmara”, num “cenário flutuante de inferno”? Por outras palavras, toda a gente me dizia que ele não era cineasta para mim, eu dizia que tinham toda a razão, mas depois, em segredo, abria-lhe a porta ao final do dia.
Faço disto uma comédia para tentar perceber o trajecto que me leva a esbarrar com as imagens deste mais recente filme do documentarista italiano, filmado ao longo de três anos, na Síria, no Iraque, Curdistão e Líbano. Segundo compreendo, a proposta é dar-nos pequenos momentos destes locais, que foram profundamente marcados – pelas guerras recentes, pelas torturas e destruição às mãos do Estado Islâmico, pelas presenças americana e de outros exércitos -, mas fugindo a retratos directos dessa devastação. Como se existisse em Notturno (Nocturno, 2020) a ambição de filmar o que fica de um espaço e de uma população no momento em que a respiração procura ganhar um ritmo normal, onde se busca seguir com o quotidiano. Neste sentido, o filme de Rosi é uma obra sobre o diferimento da barbárie, sobre a violência que só surge deflectida nas memórias do povo, nas representações ou nos registos tecnológicos que gravaram o terror.
Até aqui tudo bem. Rosi andou por lá, dissolveu-se na “multidão” e trouxe 90 horas de material em bruto. A grande questão levanta-se quando surge a decisão de fazer equivaler o retrato indirecto da devastação com a procura de uma distância de composição – uma “distância de segurança” – que converte o filme num pachorrento e disperso amontoado de cenas de onde ressai um sentimento nada agradável. Se as mesmas 90 horas nas mãos de Wang Bing poderiam reflectir labor e proximidade, aqui deixam-nos a pensar numa espécie de “turismo documental”, em que as mães, os soldados, os prisioneiros, as crianças, os cavalos, estão ao serviço de um pictorialismo melancólico e trágico.
Notturno é, infelizmente, a síntese desta posição: um olhar distanciado, excessivamente pictórico, que, para abarcar uma certa ideia de real que simbolize um todo, o apequena.
Voltamos à questão acerca da forma indirecta de documentar a violência sobre um povo e um espaço. Difícil pergunta: como enquadrar uma tragédia? Como escapar ao canibalismo da pornografia e da obscenidade, sem mergulhar na poesia da luz com metralhadoras em fundo, nos seres humanos como meros indícios de um evento? Falamos claro da esteticização do horror, em que nos perguntamos: qual o poder das pequenas figuras apanhadas nos grandes enquadramentos? Resposta difícil. Mas o meu olhar diz-me, sem nenhum tipo de certezas ou dogmas, que enquadrar é meter no quadro, mas que o que lá está deve viver, aspirar a sair dos limites da imagem. No plano, as pessoas, os seres, as coisas reais, não deveriam, creio, estar presas aos limites do quadro como barras de uma prisão.
E Notturno, embora compreenda bem como os pequenos detalhes revelam as grandes coisas, depois acaba por cair na armadilha da instrumentalização. Não raras vezes as pessoas, os animais, funcionam como índices imóveis, manequins de real. Por exemplo, aquele plano nocturno, na primeira metade do filme, em que Rosi decide filmar um cavalo branco imóvel, com os carros a rolarem por trás, detalhe de uma poesia da desolação. Ou os segmentos do rapaz caçador, cujas acções e rosto grave parecem enxertar no documentário o exotismo da ficção, como interlúdios em que entramos no cinema de Sergey Dvortsevoy ou Nuri Bilge Ceylan.
O problema dos índices da imagem é que eles contam-nos muito para lá do conteúdo do que a câmara apanha e revelam mais do que as intenções do seu autor. Seguem quatro exemplos desse real por detrás do real encenadamente documentado do filme:
- A guerra como projecção
A distância face aos eventos, que de forma excessiva e um pouco maléfica qualificava de “turística”, tem como expressão simbólica a sequência do teatro. A guerra está apenas no palco, em concreto na peça que os habitantes do asilo irão representar – e nas imagens do ecrã que observam os actores (ou nas imagens do tablet de uma das mulheres, ou ainda nos desenhos das crianças). Essa projecção, no caso do teatro, mostra-nos a posição que o palco de guerra desempenha no filme e Rosi como meta-encenador que, em cada momento, nos encaminha para a posição de espectadores de uma peça bonita e dolorosa.
2. A luz de Rembrandt
Em vários momentos paro para pensar nos critérios que levam à escolha de certos planos. As armas ao longe parecem meros efeitos sonoros como contraste na imobilidade das imagens, os abrigos militares são olhares seguros a partir do qual olhar a realidade, os uniformes garridos dos presos chocam com as cores neutras do plano geral ou a luz dos fogos (explosões?) que ajudam a aquecer a melancolia do brilho das águas na contraluz de um… Rembrandt em cenário de guerra.
3. A violência diferida
Talvez o momento que me custa mais digerir em todo o filme é a sequência em que uma professora pede a várias crianças que falem sobre a tortura que, diante dos seus olhos, viram acontecer a familiares, a homens e mulheres. Caímos no universo de Abbas Kiarostami, esventrado à faca, despojado da seriedade e inocência que as crianças sempre emprestam à realidade. Se o propósito poderia ser entendível – o tal enviesamento da violência – porquê fazê-lo às custas das crianças, Rosi encenando professora, e professora, de desenho em punho, em modo inquisitivo, dirigindo os meninos com perguntas para câmara registar, como: “viste estas pessoas todas morrer? Queres-me falar disso?”; ou no momento em que uma menina conta que as crianças quando estavam a chorar os homens do estado islâmico lhes batiam com um pau, segue-se um longo silêncio e a professora, não satisfeita, ainda pergunta que mais ela viu e, depois ainda, o que faziam os soldados às mulheres. Parece uma escolha obscena, de noventa horas de material optar por deixar estes momentos num filme de pouco mais de hora e meia…
4. Como picar-se num plano picado
Filmar é escolher uma distância e um ângulo. Um dos grupos de pessoas que Rosi nos vai mostrando é a família do jovem que vemos caçando, pescando. Neste momento – plano acima – , Rosi, por uma questão logística, creio, terá optado por utilizar um plano picado para nos conseguir mostrar o quarto exíguo onde dormem todas aquelas crianças. A composição não será muito diferente em momentos anteriores, de refeição ou trabalhos de casa. Este plano contém todo o filme. Pois ele, ao mesmo tempo que procura posicionar-se perante o real, revela uma inabilidade de mise-en-scène. Isto porque mais do que registar aquele momento singelo do quotidiano destas pessoas, ele é índice quer do distanciamento pelo afastamento da câmara, quer da elevação do plano que “apequena” a realidade.
Notturno é, infelizmente, a síntese desta posição: um olhar distanciado, excessivamente pictórico, que, para abarcar uma certa ideia de real que simbolize um todo, o apequena.