The Maltese Falcon, de John Huston, a nossa “Relíquia Macabra”, inscreve-se com a melhor marca no universo negro, perfilando-se na vanguarda da corrente film noir e dando-lhe o pontapé de saída com um glamour obscuro e intemporal. Agrupam-se algumas razões que justificam o poder magnético do filme começando logo pelo livro adaptado, arquétipo da literatura policial moderna com notória marca de culto pela mão de Dashiell Hammett, criador do hard-boiled e pioneiro de um estilo novo, protótipo do romance negro. O género hard-boiled suja-se, vai para os becos escuros, para as sarjetas, com anti-heróis, linguagem crua, seca, directa, calão, pontas soltas… Acabam os salões e os requintes burgueses, os métodos dedutivos e cerebrais, o rigor das pistas e dos enigmas a decifrar na resolução dos crimes. Salta-se para as ruelas labirínticas, as mortes acontecem no presente, acompanha-se passo a passo a história, e a cidade é o décor dos ambientes soturnos que se projectam nas sombras com detectives privados, mulheres fatais e mais estranhas criaturas secundárias que quase são principais. Hammett procedeu a uma “anatomia social do crime”, em que o clima obscuro e os assassinatos serviam de pretexto para retratar uma sociedade violenta, cínica e sem esperança.
The Maltese Falcon, livro que foi depressa adaptado ao cinema por Roy Del Ruth em 1931, com uma 2.ª passagem para filme com Bette Davis no papel de protagonista, em 1936, realizado por William Dieterle. Estas versões não tiveram sucesso de público. Contrariamente, The Maltese Falcon, filme de 1941, responderá às coordenadas do hard-boiled com uma galeria de personagens soberbas e bem implantadas numa trama sombria que faz sobressair as pulsões mais obscuras do ser humano – já as vamos ver mais de perto.
A versão que teve sucesso foi a de John Huston, que subiu às alturas de culto e de fama, comum cineasta a iniciar carreira e a querer seguir uma planificação rigorosa e sem mácula, graças a Howard Hawks, segundo consta, que o terá aconselhado a tomar a obra de Hammett e a segui-la à risca. Pensar The Maltese Falcon em filme, de uma forma rigorosa, decalcar um texto e insuflá-lo de uma atmosfera negra, representar o sentido das palavras e a sua intenção num corpo contextual, foi o toque de mestre que o novato Huston agarrou, com o labor e a força de quem está a romper caminho. Diz-se que foi a secretária, num primeiro tempo, que passou o livro para guião, não seria por falta de jeito do realizador, ele próprio argumentista desde os anos 30.
Logo de seguida, o grande foco está nos actores, um casting de luxo que ficará para a história. Aqui começa a fama de Humphrey Bogart que ficou com o papel de protagonista (em detrimento de George Raft, actor na ribalta em papéis de gangsters, que recusou o convite por não ser uma grande produção, receando estar a comprometer-se com um filme série B). A resposta de Bogart ultrapassou as medidas validando a sua impressão facial, corporal, a sua singularíssima e inconfundível marca de estilo e representação.
Implacável Spade, implacável falcão negro, metáfora do capitalismo, espelho da avidez, sinuoso canto de pássaro, negríssimo mundo desesperado que abriu de par em par as portas ao dark side do film noir.
Para a heroína, tinha sido indicada Geraldine Fitzgerald, mas ficou Mary Astor, que foi outra imagem de grande relevo no papel de uma mulher perturbada e a cair para a femme fatale – Astor reaparecia, após episódios pessoais da actriz terem sido fruto de escândalo, por causa de um diário encontrado, a dar conta de matéria íntima e sexual. Se The Maltese Falcon só tivesse estes dois, Bogart e Astor, já tinha ganho com grandes protagonistas que reluziram no seu desempenho único e entrega a personagens desesperadas e ambíguas, de carisma até à medula.
Bogart agarra em Sam Spade como se lhe pertencesse, o estilo dele incorpora-se de corpo presente sem estremecimentos (só a favor da representação, fantástico tremor de mãos pós-descontrole emocional da personagem), dá conta das características do carácter do detective privado, duro, sarcástico, inamovível na sua lógica e grelha moral (ou melhor, amoral com traços próprios). “Tudo o que Bogart tem de fazer para dominar uma cena é entrar nela”, dirá Raymond Chandler.
Depois, há Peter Lorre, outro intocável em simbiose com a personagem Joel Cairo, misto de perversidade e sedução, numa representação altamente sofisticada e perturbadora.
Há também Sidney Greenstreet, homem de teatro e de lá repescado, novato no cinema, o “Fat Man”, o Kasper Gutman, é outro que imprime com a sua presença imponente, a ocupar o plano, e um comportamento sarcástico e malévolo. Destaca-se, por fim, Elisha Cook Jr., actor fabuloso em papéis secundários, a fazer de capanga de Gutman no papel de um perturbado psicopata, Wilmer Cook, outro intocável.
O filme abre com a história do falcão, a estatueta do pássaro incrustada com pedras preciosas que, no século XVI, foi enviada como um tributo do governo de Malta ao governo espanhol, mas foi pilhada no meio do caminho, e vai em trânsito pelo tempo fora, a atravessar séculos alvo de desejo. A informação inicial foi dada, a partir daqui começa a intriga à volta deste objecto que é o móbil que faz movimentar as personagens pela sua possessão. Lançado o mote, o filme concentra-se a apresentar todos os intervenientes e a avançar sem tréguas. Uma mulher misteriosa, Miss Wonderly, aliás O’Shaughnessy, irrompe no escritório dos detectives Spade e Archer, anunciada por Effie Perine, a secretária. Apresenta o caso que a traz, uma irmã desaparecida com um homem perigoso que a ameaça Floyd Thursby. Um rol de mentiras e uma representação que desenvolve os traços que dominam uma fragilidade que, afinal, é encenada.
Huston concentra-se na sua planificação e vai deixando as marcas de estilo: os nomes dos detectives na porta do escritório reflectem-se no chão, o recorte dos rostos em luz e sombra, a noite a invadir a imagem, a iluminação dramática.
A cerca de 6 minutos de filme há já uma morte, aos 12 minutos uma segunda morte; a concentração narrativa continua incólume, avança-se. Thursby e Archer assassinados. Sam Spade é suspeito pela polícia.
As sombras da noite ressurgem, recortam o espaço e os rostos, afinal, é mesmo noir este universo, submundos, subimagens que se projectam, um movimento nocturno imprime bem a morte no escuro, a cidade pesada, o quarto sombrio, mãos a entrar no plano para atender o telefone, cortinas a esvoaçar, perseguidores na noite, corpos em aproximação e desejo; a direccção de fotografia de Arthur Edeson faz um trabalho de mestre.
A relação de Spade e de O’Shaughnessy progride até ao beijo e à proximidade dos corpos, Bogart enlaça-a ferozmente – contorna-se o código Hays como se pode. Ela curva-se e perturba-se, mente, reclina-se languidamente, a personagem parece em permanente aflição; afirma-se perigosa e depois parece inocente, sofrida e volta-se à estranheza, às forças negras, à compulsão da mentira, à paixão, à luz e à sombra. A primeira femme fatale nasce aqui para abrir passagem a todas as outras que virão.
Cairo visita Spade, o seu perfume é de gardénia (no livro, a fragância é de chypre), também anda à procura do falcão, oferece dinheiro ao detective, o dinheiro circula: quem dá mais? Lorre extrema-se no papel, dramatiza os gestos, uma bengala que quase beija, o olhar desorbitado responde bem à crueza de Bogart.
Os enquadramentos desenham-se à medida das interacções, em resposta à situação numa cumplicidade de jogo entre as personagens. Nada escapa a Huston, todas as cenas se valorizam na imagem, nos ângulos baixos, na mise en scène, nos contra campos que permitem ver mais, avançar novas perspectivas. O filme exibe uma ideia de alta concentração e tensão.
Kasper Gutman, o “homem gordo”, tão naturalmente apropriado por Greenstreet, recebe Spade no quarto de Hotel, a sua grandeza é dupla, de corpo e de alma na entrega à personagem, nas falas e no tom mordaz absorve o momento e, engrandecido na perspectiva do ângulo da câmara, preenche o plano.
O capanga de Gutman, Wilmer Cook, homem franzino, perigoso e perturbador, persegue Spade, irrompe das esquinas da rua, anda pela noite, pelo dia, nos halls de hotel. Spade não gosta, denuncia-o à polícia, confonta-o, confrontam-se; Huston perfila-os.
O falcão, esse, continua na mira de todos e as propostas a Spade também, este chega à conclusão que o negócio é forte. O tempo urge numa espiral em movimento e a tensão, essa, é permanente. Aqui não há descanso, os segundos precipitam-se na acção; um barco que chega, um incêndio, um embrulho.
The Maltese Falcon contou com uma produção de baixo orçamento que vai conseguir subverter todas as limitações e renovar-se na linguagem visual, captando em cheio a essência do film noir. A modernidade também lá está aliada a um espírito de cinema independente em ruptura com os estereótipos de Hollywood. Esbatem-se as fronteiras do bem e do mal, neste mundo, tudo se contamina pelo canto da relíquia do falcão negro. Huston acreditou no material que tinha e não largou o lado sórdido presente no livro, acentuado pelo tratamento obscuro da imagem. A maioria dos diálogos do romance foram preservados, excepto uma famosa fala no final tirada de Shakespeare e que terá contribuído para vincar a reputação de Huston, o cineasta que filmou o fracasso como ninguém. Quando um polícia pergunta a Sam Spade do que é feita a estatueta, o falcão cobiçado ao longo da trama, Sam Spade responde: “Do que os sonhos são feitos”.
O final é de mestre, planificado com brio e um tempo suplementar para tudo ser gerido à medida. O remate coloca todas as personagens interessadas em campo, num quarto em espera pelo pássaro negro. Tudo se desmoronará neste clímax que demonstra a ironia suprema do valor das coisas, pelo que a cobiça cai por terra. O plano enche-se com todos à volta do pássaro para o desvendamento crucial. As contas são feitas, fuga, polícia, prisão, e a imagem soberba de O’Shaughnessy com o rosto marcado pela reflexão das grelhas do elevador que desce; a prisão anunciada. Implacável Spade, implacável falcão negro, metáfora do capitalismo, espelho da avidez, sinuoso canto de pássaro, negríssimo mundo desesperado que abriu de par em par as portas ao dark side do film noir.
The Maltese Falcon passa amanhã, sábado, dia 4 de Junho, às 15h30, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, no âmbito do ciclo “No Coração do Noir”.