Para dar vida a este meu filme, procurei encontrar o significado de uma palavrinha que gosta de se esconder em todo o lado: bondade. Peço apenas que me diga se a encontra aqui nestas imagens, se a reconhece pelo menos aqui e ali.
Vittorio De Sica
“O cinema é um milagre”, dizia João Bénard da Costa. Miracolo a Milano (O Milagre de Milão, 1951) foi curiosamente o ponto de partida de João Bénard da Costa enquanto programador do Cine-Clube Universitário de Lisboa. Talvez não tenha sido uma escolha inocente, mas antes uma mensagem de esperança e ânsia por um país “onde “bom dia” quer mesmo dizer “bom dia”!”
Miracolo a Milano é o sexto encontro de De Sica e Cesare Zavattini, parceria artística que começou em I bambini ci guardano (1943). O binómio De Sica – Zavattini é um dos melhores exemplos de simbiose entre realizador e argumentista que marcam a história do cinema. Baseado no romance Totò il buono de Zavattini, o filme de De Sica, em tom de fábula, começa com uma obra dos céus: Totò, um bebé milagrosamente nascido entre as couves do quintal da velha senhora Lolotta. Um anjo, um santo, mais tarde dirão. Após a morte da mãe adoptiva, Totò é levado para um orfanato, onde no momento seguinte, como se de um truque de magia se tratasse, vemo-lo sair já como um jovem adulto. O seu único pertence, uma pequena bolsa, é roubada, mas ele acaba por travar amizade com o ladrão que em gesto de agradecimento a Totò por este lhe presentear de volta o objecto do furto ao qual se afeiçoou, cede o seu minúsculo aposento de latão para passarem a noite e se abrigarem do frio. Este pequeno acidente encaminha Totò até à sua futura comunidade, para lá da linha de comboio, uma no man’s land onde os pobres e proscritos da sociedade fazem da terra batida a sua casa e onde Totò, de forma bem ajeitada, atinge a sua maturidade como fundador de uma cidade dos desapossados, uma bidonville.
Quando um dia o petróleo começa a jorrar do solo, o dono do baldio, signore Mobbi (de Mobil?), corre para expulsar os seus ocupantes e lucrar com o terreno. Em luta, Totò e os seus vizinhos são ajudados pelo anjo-fantasma de Lolotta, a gentil velhinha que outrora criou Totò. Com essa ajuda sobrenatural (uma pomba branca por sinal), dá-se início a uma verdadeira luta de classes.
Miracolo a Milano é um hino ao papel da ilusão e da fantasia na arte.
Para além das características que tornam o cinema de De Sica uma obra exemplar e que denotam as marcas fundamentais do movimento neo-realista italiano, o cinema de De Sica é, antes de tudo, um cinema de “sensibilidade”. O crítico e teórico francês André Bazin reconhecia em De Sica um elemento particularmente forte que o diferenciava dos restantes realizadores do mesmo período: a intensidade poética da presença humana no seu cinema.
De Sica vai para além do realismo através de uma imagem simbólica que concentra em si o lugar da própria imaginação. Miracolo a Milano é um hino ao papel da ilusão e da fantasia na arte. De Sica mostra-nos quão preponderante pode ser o impulso humano para a criatividade – veja-se as vassouras que levantam voo e encaminham os pobres até ao reino dos céus -, capaz de transcender os problemas sociais. Contudo, a arte cinematográfica só pode oferecer o consolo da beleza e a esperança que reside na potência das imagens para produzirem ideias fortes e capazes de mover o espectador para uma ação social que possa, efectivamente, conduzir a uma mudança no mundo. É curioso pensar num outro filme (talvez esquecido, mas não menor) de De Sica: Il tetto (O Teto, 1956). A luta é a mesma de Miracolo: um jovem casal, recém-casado, é expulso pelo cunhado do pequeno quarto que partilham com a restante família. Sem eira nem beira, são forçados a procurar o seu próprio abrigo e a construir o seu teto com restos de tijolos do descampado ao lado da linha de comboio. Vidas construídas a pulso.
Miracolo a Milano vive de uma certa aura onírica. Veja-se a realização dos milagres, em que todos os desejos da população são atendidos ou o absurdo de algumas situações (dois anjos parados por um semáforo no trânsito). Tudo isto são elementos que conferem ao filme um laivo de sonho, mas é também uma pista para o apelo maior de De Sica ao convidar cada um de nós para participarmos desse sonho e, também nós, projectarmos no filme os nossos próprios desejos.
Somos como que convidados a jogar. E o jogo consiste não apenas em descrever as imagens como elas aparecem, mas em nomear as coisas como elas realmente são. O jogo é mostrar o máximo de realidade possível, contrastando com imagens do que é menos provável. Claro, não é provável que uma pomba mágica conceda poderes a Totò; não é provável que os pobres de Milão voem em vassouras; não é provável que os empresários falem uns com os outros como cães a latir. Mas, ainda assim, é plausível que os pobres sejam expulsos pelos ricos. E é através do uso da alegoria, num ambiente contemporâneo, que De Sica e Zavattini conseguiram precisamente falar, mais facilmente, sobre coisas que são difíceis e que parecemos ignorar (ontem como hoje).
Do cinema sem definições e a propósito de Miracolo, Ernesto de Sousa escreveu a dado momento: “é por não terem o coração aberto e tranquilo que alguns não compreendem. De resto, foi sempre essa a condição das grandes alegorias: o não serem compreendidas por quem não pertence ao grupo das pessoas simples.” [1]
A alegoria é em boa verdade esse raio de luz solar que os simples procuram para se aquecer. E o cinema, como a vida, tem que ser um lugar ao sol igual para todos. Aqui e ali.
[1] Ernesto de Sousa, «Do Cinema Sem Definições», Imagem, n.º 2, 2ª série (Fevereiro de 1954).
Miracolo a Milano é uma reposição Medeia Filmes. Consulte os horários e salas de exibição aqui.