Casper Tyberg refere, num artigo intitulado «The Presentation of Variant Endings» (2003), o caso frequente do cinema mudo dinamarquês em que um filme possuía dois finais diferentes: um, mais feliz, para a distribuição doméstica e um, mais triste, para a distribuição russa. O investigador explica que a prática comum dos restauros é apresentar os dois finais consecutivamente. Tal prática altera de forma profunda o modo como o espetador contemporâneo recebe o filme, convertendo-o (a bem de melhor apreciar o seu percurso filológico) num objeto historiográfico, amputando as suas potencialidades narrativas e o envolvimento emocional do espetador, uma vez que, mal termina o filme, este se vê confrontado com dois finais totalmente opostos. De certo modo, o filme afasta-se daquilo que era “originalmente”, e converte-se numa afirmação materialista da história daquela cópia, museografando-se. Tal opção de restauro não reproduz, certamente, o que o público da estreia assistiu, nem qualquer outro público, em qualquer outro momento da história, em qualquer das versões e mutilações do filme. Reproduz, isso sim, um sistema de produção que procurava adaptar-se às especificidades de cada território de exploração comercial (o que, sendo interessante, é lateral às características dos filmes em particular).
Um caso semelhante acontece no cinema português, por intervenção da censura, durante o Estado Novo: trata-se de A Caça (1964), de Manoel de Oliveira. Os censores impuseram, ao realizador, um final menos trágico (e menos revelador da desesperança do país), e, embora o filme já estivesse concluído, Oliveira refilmou o final no sentido da autorização da sua exibição pública. Passadas mais de duas décadas, A Caça é remontada, passando a incluir os dois finais e um cartão explicativo do caso. Esta passa a ser a cópia “oficial” do filme, aquela que é exibida em retrospetivas e em mostras em Portugal e no mundo. Esta versão do filme, com final duplo, afirma-se como um sublinhado da cicatriz deixada pela comissão de censura durante a ditadura (o que, no caso do filme de Oliveira, reforça a dimensão política que o filme já continha – e aquilo que era uma metáfora da falência do corporativismo do regime passa a literalizar as próprias contradições das políticas públicas e publicadas). Outro exemplo, ainda no universo oliveiriano, encontra-se nas duas versões de Vale Abraão (1993): uma, com três horas de duração, a outra, com mais 23 minutos, resultantes da pressão do produtor e dos requisitos do Festival de Cannes que impunha uma duração máxima à seleção do filmes para a competição. A versão do “director’s cut” só viria a ser apresentada cinco anos depois da passagem por Cannes (ironicamente fora da competição, na Quinzena), embora as duas versões tenham vindo a ser exibidas e editadas em DVD desde então – muitas vezes sem qualquer distinção evidente entre elas para o público em geral.
Sirvo-me destes exemplos e dos distintos resultados de uma mesma opção de restauro (o final duplo), para contextualizar a estreia comercial de O Movimento das Coisas (1986), de Manuela Serra. A cópia que agora se exibe resulta de uma digitalização e restauro desenvolvidos pela Cinemateca Portuguesa, que deram origem a uma nova cópia digital. Ao contrário da versão anterior, esta cópia tem um final um pouco diferente. No cartão de restauro que se projeta no início da sessão pode ler-se: “O último plano do filme, após o genérico, não fazia parte da montagem original e foi introduzido nesta nova cópia digital, em 2020, por vontade da realizadora.”
Numa excelente entrevista, publicada em 2000, conduzida por Ilda Teresa Castro, Manuela Serra refere o desejo de alterar o final do filme, explicando, “retirei o plano final original que tinha a fábrica vista de longe entre a vegetação com o fumo, era um plano bastante longo, que gradualmente ia ficando cada vez mais escuro. Retirei-o porque me disseram que dava uma visão muito pessimista e retrógrada. No entanto, hoje não o retiraria porque efectivamente reflectia a realidade a que nos conduziu o progresso.” – numa outra entrevista, dessa feita a Manuel Mozos, repetiria o mesmo desconsolo com o final do filme. Já a propósito desta nova cópia digital, finalizada sob a sua aprovação, em entrevista a Vasco Câmara, acrescentou, “Houve opiniões de que [esse plano] era uma visão muito pessimista, que eu estava a ser muito pessimista. E que íamos entrar para a União Europeia e isso seria um momento de esperança para os portugueses. Eu cedi. Nessa altura (…) eu estava muito isolada, o que me trouxe alguma fragilidade ao pensamento: ‘Se calhar estou a ser exagerada no meu pessimismo’. Arrepiei. (…) Percebi [agora] que tinha razão nesse pessimismo.” A juntar a esse desejo, expresso antes do momento do restauro, a própria planificação original do filme, criada pela realizadora (e escrupulosamente seguida), termina com a indicação de um plano da fábrica (naquele que seria o 260.º plano do filme), acompanhado de uma ilustração estilizada onde se pode perceber a proa de uma embarcação (sobre o rio Lima, que cruza a povoação de Lanheses onde se centra o filme – a partir do qual se podem estabelecer rimas com outros filmes e outros rios do esquecimento português) e o cinzento, ao fundo, da fumaça que a dita fábrica lança no ar – algo, igualmente patente, em algumas das fotografias da repérage onde esse motivo já se tornava evidente.
Devolver o final desejado por Manuela Serra a O Movimento das Coisas corresponde a um gesto de reparação que vale, acima de tudo, por aquilo que simboliza para o universo dos renegados da história do cinema em Portugal.
Num artigo fundamental para os “prolegómenos” da teoria do restauro cinematográfico, «Some Principles of Film Restoration» (1990), de Eileen Bowser, esta classifica cinco tipologias de restauro (como foi encontrado, como foi exibido pela primeira vez, como o seu autor a imaginou, como objeto moderno destinado a um público contemporâneo e, por fim, através do olhar de um artista). A nova cópia digital de O Movimento das Coisas trata-se, portanto, de um caso de restauro segundo as intenções da realizadora, que se afirma, no fim de contas, como um ajuste com o tempo, o contexto da produção (particularmente atribulada e desesperante) e a própria modernidade.
Há, desse modo, uma dimensão “reparativa” nesta decisão de acrescento do plano final do filme. Sendo que se deve sublinhar a polissemia da palavra “reparar”: no sentido de observar com maior atenção, no sentido de melhorar ou corrigir, e, por fim, no sentido de indemnizar. Esta adição do plano final não resulta de um qualquer fetiche pelo acrescento (como é o caso das sucessivas versões aumentadas de Metropolis [1927], de Fritz Lang, que sumarizam, de forma tristemente mercantil, uma abordagem do restauro segundo perspetivas estritamente comerciais). Nem tão-pouco corresponde, simplesmente, a um desejo de retificar aquilo que não se conseguiu fazer tão bem quanto era tecnicamente possível à época e que, agora, com o auxílio do digital, se consegue facilmente (recordem-se as indicações de Paulo Rocha – não totalmente levadas a cabo por Pedro Costa – no que respeita ao restauro dos seus dois primeiros filmes). No caso do filme de Manuela Serra, o acrescento deste plano constitui um statement, tanto no sentido estritamente político, como defende Vasco Câmara (por ser o único momento do filme em que se torna evidente uma ideologia, em que a isenção observacional de Serra vacila no sentido de uma opinião clara contra o progresso cego), mas também um statement no sentido de um posicionamento ético do próprio restauro (que encara esse gesto não tanto como uma operação meramente arquivística ou museográfica, mas que o reveste de uma função social e histórica).
Mais ainda quando o próprio filme se constrói como uma reflexão sobre a inevitabilidade (“circular”) do progresso, de como o tempo caminha, unívoco, adiante, “sem tempo para a ternura”, levando com ele as memórias, como um “rio do esquecimento” – citações do tocante 35 Anos Depois, O Movimento das Coisas (2014), de José Oliveira, Mário Fernandes e Marta Ramos. Existe, no filme de Serra, uma estrutura (particularmente conseguida pela montagem – no recurso aos paralíticos e à montagem paralela que opõe famílias com realidades distintas, e apresenta tanto a nova ponte sobre o rio, que se está construindo, como a estrada que os carros percorrem a grande velocidade, rasgando a povoação) que provoca o espetador e que o desafia sobre o necessário caminho das coisas, sobre se essa rosa da modernidade vem com ou sem espinhos. Ou, inversamente, se os dias da tradição não escondiam, simultaneamente, o conhecimento ancestral e as ancestrais formas do atavismo – é importante recordar que o filme começou por ser um documentário intitulado Mulheres, sobre a condição feminina no Portugal pós-revolucionário. Nessa estrutura dialética, que oferece constantemente os dois lados da moeda que gira entre o progresso e a tradição, o plano final surge como um murro na mesa: uma afirmação clara de um posicionamento.
João Bénard da Costa falava da “indefinição” como a característica central de O Movimento das Coisas, e de facto o filme não afirma, antes induz, subtilmente, uma reflexão sobre o que eram aqueles tempos de mudança galopante: com o final do processo revolucionário, a estabilização da democracia e a entrada na comunidade europeia. Só que essa reflexão é sempre feita a partir do particular, mas de um particular indefinido, já que nunca, a não ser nos créditos finais (nos agradecimentos) se explicita que aldeia é aquela – porque o que ali se passava, se passava por tantas outras aldeias do país, especialmente na região norte. Ou como o pôs, claramente, Raquel Schefer, para o dossier “E Elas Criaram Cinema”, aqui no À pala de Walsh, “Serra representa movimentos e não estados (daí a pertinência do título) — o devir da ruralidade contra toda representação estática da ancestralidade”. Só que tudo isso se modifica com o novo final. É um final que não deixa mais espaço para a indefinição que Bénard tanto elogiava nem prossegue o grande elogio do devir, que Schefer destaca. Não. Aquela fábrica, ao entardecer, com o aquele fumo cobrindo os céus, aquele som agudo perfurando os tímpanos e aquela duração perturbadora e sombria funcionam como o prego que faltava ao caixão da modernidade. Aquele plano é o ponto final num mundo que já foi (e que só poderia ser colocado hoje) e é, também, a resposta desgostosa e ácida ao mundo que ainda é.
Devolver o final desejado por Manuela Serra a O Movimento das Coisas – especialmente a ela, realizadora de um só filme, excomungada pela comunidade do cinema, esquecida, desconsiderada e reduzida a nota de rodapé – corresponde a um gesto de reparação que vale mais pela beleza, em si, e pelo que simboliza para o universo dos renegados da história do cinema em Portugal (país repleto de realizadores e, especialmente, realizadoras singulares, que se viram trilhados pela esquálida máquina da produção nacional, cuspidos para fora do meio que foi, é e, provavelmente, continuará a ser demasiado fechado). Esta é, assim, uma operação romântica (no sentido do restauro estilístico de Eugéne Viollet-le-Duc) que percebe que, além da historiografia, há uma função maior no restauro (cinematográfico), onde a devolução de visibilidade a obras menosprezadas se pode fundir com a possibilidade de compensar as agruras da vida (de uma obra e de uma cineasta). O plano final de O Movimento das Coisas é um gemido de esperança contra o esquecimento.