Os cinéfilos têm tendência para ser também coleccionadores, por temperamento ou talvez vocação. Gostando intensamente de cinema, querem ter perto de si os filmes, as coisas de que gostam. Tê-los à mão de semear, ao alcance da mão, permite que os encontremos em caso de necessidade. Ou, então, que deambulemos pelas prateleiras até que o nosso olhar se fixe no que vamos ver, sem termos encontro marcado. Na minha geração, na minha vida, essa colecção começou por ser feita em cassetes VHS que foram invadindo todas as paredes do meu quarto até ao tecto. Inicialmente, tornou-se urgente arranjar formas de empilhar estes objectos em segurança e, mais tarde, precisei de estantes para os arrumar. Depois, as estantes transformam-se numa residência ainda não completamente habitada, com algum espaço para acolher novos habitantes. A mudança para os suportes DVD e Blu-ray diminuiu o espaço de habitação exigido e os habitantes continuaram a crescer. Fui substituindo e oferecendo as cópias em cassetes VHS até não sobrar uma única, embora ainda tenha um leitor deste formato a funcionar. Quem sabe se não precisarei dele?
O acervo é extenso. Tem, neste momento, mais de 10 mil itens catalogados. Nele estão expostas as marcas de vários focos de interesse, investigações desenvolvidas, certos padrões, traçando os contornos da minha história de espectador. Integra a filmografia integral, mesmo que provisoriamente, de cineastas como Robert Bresson, Alfred Hitchcock, Kelly Reichardt, Martin Scorsese, Larisa Shepitko, Ousmane Sembène, ou Andrei Tarkovsky. Há outros cineastas dos quais tenho juntado vários filmes, ainda sem conseguir ter toda a obra, como Satyajit Ray ou Frederick Wiseman. Partilham o espaço com obras que permanecem obscuras ou foram esquecidas na voragem do tempo. Tal como acontece com alguns livros da biblioteca cá de casa, há filmes que ainda não tive oportunidade de ver. Não é nada que me apoquente, nem considero que a sua compra tenha sido inútil. Posso dar pelo menos duas razões para isso. A primeira é permitirem que existam ainda coisas por descobrir na colecção. A segunda é possibilitar o acesso a essas obras a amigos e colegas que delas precisem.
Chamei habitantes a estes objectos precisamente porque não penso neles como meros objectos inanimados. São objectos embrenhados na humanidade que eles observam e analisam.
David Lynch disse em várias ocasiões — por exemplo, numa sessão de estreia de Inland Empire (2006) a 3 de Dezembro, no Brattle Theatre em Cambridge, MA — que gosta dos ruídos feitos pela electricidade. A electricidade tornada silenciosa não o fascina tanto. Quando o ouvimos falar, calmo, ponderado, percebemos que isso tem simplesmente a ver com a realidade que a electricidade ganha quando ouvimos o ruído que a corrente eléctrica produz quando passa pelos objectos. Passa-se algo semelhante com as cópias que tenho nas estantes. É evidente que uso cópias digitais, hoje mais fáceis de comprar ou alugar ou partilhar, no meu trabalho de professor e investigador. No entanto, as cópias em suporte físico possuem uma carga, uma densidade, uma presença que evoca a própria produção material das obras. As obras de cinema e de outras formas da imagem em movimento não são imateriais — nem o digital é, na verdade, imaterial, mas pode não estar armazenado num objecto que o suporte e ser apenas visualizado através de streaming. Nas cópias em suporte físico, a dimensão material do processo de produção dá origem a um objecto tangível, que pode ser tocado e mexido, que tem peso, formato, cor, e textura.
Podia destacar muitas peças da colecção. É provável que fizesse mais sentido chamar a atenção para as colecções dentro colecção: em particular, as da americana Criterion e da britânica Eureka! (Masters of Cinema). Não sendo as únicas a fazê-lo, essas cuidadas edições mostram que os DVDs e Blu-rays podem oferecer muito mais do que as obras: podem disponibilizar materiais adicionais que complementam a nossa experiência da obra e a tornam mais informada. Não se trata aqui da venda sucessiva do mesmo produto, com intuitos puramente mercantis. Trata-se da demonstração de um cuidado dedicado e conhecedor no grafismo e na escolha e organização dos materiais que ressoa com a sensibilidade cinéfila. À singularidade das obras corresponde uma edição singular, como modo de valorizar a obra.
Podia fazer esses destaques. Prefiro, contudo, realçar a caixa da primeira temporada da série de televisão Northern Exposure (No Fim do Mundo, 1990-95). Não é cinema, é televisão, dirão. Parece-me que essas fronteiras têm mais a ver com a histórica de cada meio convergente e menos a ver com diferenças no plano daquilo que realmente são, já que os recursos expressivos são essencialmente os mesmos — imagem, som, mise-en-scène, montagem — ainda que as estruturas das obras, e assim a sua experiência, tendam a ser consideravelmente distintas. Esta caixa desta admirável comédia dramática em série passada no Alaska, com toques daquela fantasia que nasce da observação atenta de idiossincrasias sociais e individuais, comprova a ideia de que o suporte físico pode dar forma especial a uma obra singular. Neste caso, o primeiro conjunto de episódios de Northern Exposure vinha envolto num mini-anoraque que ligava a configuração da caixa ao imaginário da série nela contida. Um casaco idêntico ao que as personagens usam para se proteger do frio foi recriado e adaptado para dar uma forma única à caixa. É a crónica da vida numa região inóspita, onde a peculiaridade e a comunidade vão rimando. Chamei habitantes a estes objectos precisamente porque não penso neles como meros objectos inanimados. São objectos embrenhados na humanidade que eles observam e analisam, na humanidade que neles se confronta e se expressa, nas diversas manifestações e períodos da arte da imagem em movimento.
Sérgio Dias Branco, Professor Universitário da Universidade de Coimbra
Texto escrito em resposta ao nosso apelo em defesa dos suportes físicos, publicado no dia 19 de Novembro de 2020 e assinado pelos editores do À pala de Walsh.