Mês de grande variedade, de Billie Holiday a King Kong e Godzilla, passando por Orfeu e Cruella. Em texto mais desenvolvido, destacamos Orphea (2020) de Alexander Kluge e Khavn de la Cruz, por Ricardo Vieira Lisboa, que lhe deu uma classificação sui generis no Palatorium, e The Woman in the Window (A Mulher à Janela, 2021) de Joe Wright, por Carlos Natálio, que não cedeu totalmente à péssima recepção crítica que o filme tem conhecido.
De Billie Holiday se poderia dizer que a sua vida dava um filme. Não só um, mas vários, como testemunha a coincidência de estreias de Billie (2019), o documentário de James Erskine, e The United States vs. Billie Holiday (Estados Unidos vs. Billie Holiday, 2021), o biopic de Lee Daniels. Em Billie, James Erskine faz uma escavação de segundo grau, recuperando o material recolhido por Linda Lipnack Kuehl, jornalista que em meados dos anos 70 desenvolveu uma série de entrevistas a várias das pessoas que conheceram de perto Billie Holiday, com vista à publicação de uma biografia que nunca chegou a concretizar-se. Este é o aspecto mais cativante de Billie, esta indagação que se constrói em três épocas distintas. Estamos num clube de jazz do Harlem, numa sala repleta de fumo, a ouvir Lady Day e Prez, mas estamos também num home movie de Linda Lipnack Kuehl ou na sua conversa descontraída com Count Basie e ainda na sala de cinema em que nos sentamos, no tempo de James Erskine. Os testemunhos que vêm daqueles anos remotos, de uma vida feita de excessos, dor, glória e amores destrutivos, vêm sem filtro e resistindo a qualquer exercício de psicologia barata, pecado tão comum noutros documentários biográficos.
Daniela Rôla, 29 de Maio
É, no mínimo, promissora a intriga de um grupo de professores de meia-idade determinado em submeter-se aos efeitos do álcool como estímulo das suas potencialidades. Mas o tratamento de Vinterberg, em Druk (Mais Uma Rodada, 2020), sobre a matéria resulta numa estranha ligeireza, como se houvesse o medo ou a incapacidade de lidar com o lado mais visceral e auto-destrutivo do alcoolismo sem ser de maneira programática. Daí que cenas como a bebedeira no mini-mercado, a discussão conjugal entre a personagem de Mikkelsen e a esposa, e até mesmo a morte de um dos elementos do grupo tenham algo de artificial, como se Vinterberg tivesse dito, na fase de escrita, “vá, agora vamos lá pôr estas cenas só para mostrar o outro lado disto tudo” (e, a julgar pelas declarações em entrevistas, foi mesmo o que se passou), ao invés de procurar integrá-las de maneira mais orgânica e harmonizada. Fica em falta, portanto, aquela frontalidade crua que é a medula da força cinematográfica do melhor Vinterberg [o de Festen (A Festa, 1998) ou Jagten (A Caça, 2012)], resultando um filme leve com alguns momentos cativantes, sobretudo aqueles concentrados na personagem de Mikkelsen: a confissão no jantar da opinião deprimente que este tem da sua vida pessoal e profissional, as cenas na sala de aula dadas por ele com métodos criativos, heterodoxos e com grande envolvimento dos alunos [como uma versão ligeiramente embriagada do Robin Williams de Dead Poets Society (O Clube dos Poetas Mortos, 1989)] ou o seu reencontro catártico com a joie de vivre da juventude, tão bem representado pela dança eufórica do final. Um feel good movie de autor? Parece que sim, mesmo que o conceito de feel good movie seja totalmente atípico em Vinterberg. Mas atípico por atípico no cineasta, acaba-se a preferir a mega-produção europeia de olhar hawksiano sobre um grupo que foi o subestimado Kursk (2018) de há um par de anos. Opinião pessoal que ninguém tem de concordar de maneira nenhuma.
Duarte Mata, 24 de Maio
Promising Young Woman (Uma Miúda com Potencial, 2020) tem o seu momento de génio já bem perto do epílogo, numa desconstrução do tema Toxic de Britney Spears, descascado de todos os seus elementos açucarados (a começar pela própria Britney), para revelar umas cordas ameaçadoras, pondo a nu algo de inquietante que sempre lá esteve. É esta também a intenção do filme, mostrando que no mundo de rebuçado habitado pela young woman Carey Mulligan (“C’était une petite fille qui s’appelait Amour… Sa peau était sucrée comme un bonbon au miel”, assim vai a canção de Jacqueline Taïeb), se esconde algo de muito mau. Que até mesmo os nice guys, aparentemente bem-intencionados, escondem o seu esqueleto no armário, uma perfídia que acabará por vir à tona logo que a ocasião se apresente (e constatamos que todos os homens acabam por recorrer a tácticas muito semelhantes). No fundo, como se o louro perfeito de Legally Blonde (Legalmente Loira, 2001) começasse a mostrar as raízes escuras (o piscar de olho ao filme de Robert Luketic vai mais longe, sendo a mãe de Cassandra interpretada por Jennifer Coolidge). Se a noiva estava de luto, a BFF estava de cor-de-rosa. De miúdas promissoras percebe Carey Mulligan, com os ecos da jovem mulher de An Education (Uma Outra Educação, 2009) a fazerem-se sentir. Mas na sua Cassandra há um lado imensamente triste (o nome da figura da mitologia grega não é inocente) e a vingança acaba por perder o seu propósito de fazer justiça, acabando por consumir a própria vingadora. O smörgåsbord de estilos que constitui a tessitura de Promising Young Woman (entre a comédia negra, o thriller, a comédia romântica) acaba por tornar-se um pouco desconcertante, mas não deixamos de ficar de curiosidade aguçada para os próximos esforços de Emerald Fennell.
Daniela Rôla, 14 de maio
O trajeto de Adam Wingard na última década é muito sintomático do processo de agregação dos grandes estúdios das vozes provenientes das margens do cinema independente (veja-se a recém oscarizada Chloé Zhao que está prestes a estrear-se no “universo” dos super-heróis). Tendo-se feito notar com dois filmes de terror do início dos anos 2010, A Horrible Way to Die (2010) e You’re Next (2011), foi com The Guest (2014) em que o Luís Mendonça referiu um “toque reconhecível”, de um cinema de “terror de ação” e de um “thriller cómico”, com toques nostálgicos dos anos 1980, “algures entre Walter Hill e Steven Seagal”. Depois disso surgiu o remake moderno, Blair Witch (2016), que escondia uma reflexão bem interessante sobre a dimensão panótica da desmultiplicação de câmaras que marcam a contemporaneidade – com um twist final em que a câmara se vertia num escudo de Perseu dos dias de hoje. Eis senão quando surge Godzilla vs. Kong na filmografia deste realizador de terror, um objeto construído pelas equipas de marketing como tudo o que se faz pelas bandas de Hollywood com um orçamento um pouco mais substantivo. O toque reconhecível despareceu, os ares nostálgicos também, a inteligência conceptual idem. Godzilla vs. Kong é um filme esvaziado: de ideias, de imagens, de cenas, de diálogos, de personagens e de pessoas. Há muito pouco ali – quase nada seria mais correto dizer. Sobra uma coisa: a profunda convicção de que, independentemente de tudo, há um traço de humanidade naquela expressão sofrida de um macaco digital. Aliás, que há mais humanidade naqueles olhos gerados por computador do que em qualquer outro contributo do filme, isso é, no mínimo, intrigante.
Ricardo Vieira Lisboa, 12 de maio
Apelidar o filme de slow-burner pode ser irónico tendo em conta o que acontece na primeira cena de Beginning (O Começo, 2020), mas a descrição é apta: o filme trabalha desde o seu início um sentimento crescente de claustrofobia e isolamento, como se estivéssemos cercados perante um perigo iminente, um mal invisível que ameaça a qualquer momento surgir de fora de campo. Afinal, esse mal é o reflexo de uma sociedade machista, conservadora e religiosa, dominada por um patriarcado miserável que procura a todo o tempo manter a sua autoridade: sobre a personagem principal do filme é exercida uma pressão constante, sufocante e traumática. Essa personagem, Yana, é casada com um líder de uma comunidade de Testemunhas de Jeová, e abdicou cedo de qualquer ambição profissional para acompanhar o marido, mas não será um sacrifício único, já que ao longo do filme a sua fé e persistência serão postas à prova de várias formas – mesmo quando se refugia junto da mãe, esta assume desde logo que Yana fez algo de errado e que o que lhe terá acontecido será por culpa sua, para depois contar histórias da crueldade do seu marido (pai de Yana), ou seja, o drama de Yana não será único nem inédito, e nessa repetição geracional e eternização reside também o terror.
Porém, o que distingue e eleva o filme a algo notável é a escolha dos enquadramentos, com a realizadora Dea Kulumbegashvili a optar sempre por um plano menos óbvio, em que algo central à história do filme aparece deslocado do centro da composição ou até mesmo fora do campo de visão, e que desafia assim permanentemente o espectador, sempre à procura de se recentrar no contexto narrativo do filme e a cada plano, assumindo que não está nunca a ver tudo o que está a acontecer. Essa escolha permite um jogo interessante entre o que é mostrado e o que é sugerido ou aludido, e dessa forma expandir o campo de acção para além das margens da imagem, criando um efeito inquietante e de permanente tensão (e mimetizando assim o estado mental da personagem principal). Aliado a essa opção visual, uma outra escolha é determinante para elevar o impacto e a intensidade do filme: o tempo de cada cena é alongado (mas imprevisível), de forma a permitir uma construção subtil [dessa forma, uma espécie de anti-Promising Young Woman (2020, Uma Miúda com Potencial)] do tal sentimento de claustrofobia, desespero e alienação. Quase a meio do filme há uma cena em que Yana se deita na relva a descansar, e assim permanece durante longo tempo, como se desejasse nesse momento o descanso da morte – um plano que ecoa mais tarde, quando vemos o último plano do filme, como a materialização de um outro desejo.
João Araújo, 12 de maio de 2021