Dormir ou sonhar, dizeis, e por sonhar, meu príncipe, entendeis sem dúvida mais ou menos o equivalente a viver. Mas se é dormir, é justo que repouseis após tantas insônias no terraço de Elsinor. Em caso de sonhar, por que temer os sonhos, vós que temeis tão pouco os fantasmas?
Marguerite Yourcenar, em Peregrina e Estrangeira
O interesse dedicado por Marguerite Yourcenar às razões para viajar não carece de especial demonstração, dado que os protagonistas eleitos em obras suas ― Adriano (Memórias de Adriano), Zenão (A Obra ao Negro), Natanael (Um Homem Obscuro)[i] ― não só são viajantes como pertencem à categoria daqueles para quem as viagens fazem parte dos seus exercícios espirituais.
Para o primeiro, Adriano ― um imperador já minado pela doença e que começa a avistar o perfil da sua morte, errando pelas suas memórias na autobiografia sob a forma de carta dirigida ao seu filho adoptivo, o jovem Marco Aurélio que, nessa época intercalar que é século II d. C., deve suceder-lhe no trono de Roma ― a viagem é “uma escola de fortalecimento, de espanto, quase uma ascese, uma maneira de se desfazer dos próprios preconceitos confrontando-os com os do estrangeiro”. Para o segundo, Zenão ― um alquimista errante e perseguido que, por entre convulsões políticas e religiosas da Europa quinhentista, em que os riscos são permanentes para aqueles que defendem a liberdade de expressão ou de pensamento, em cada dia que passa se propõe pensar com um pouco mais de clareza do que no dia anterior ― a errância “reúne na justa medida estudo e viagem, oferecendo-lhe a sensação de correr pelo mundo como pelas páginas de um livro aberto”. Para o último, Natanael ― um marinheiro acidental que, depois de fugir de Inglaterra ainda muito jovem, a aventura levara à América, antes de voltar à Holanda do século XVII e optar, de preferência, pela escuridão total ― as viagens “ensinaram-lhe, por um lado, a desconfiar das opiniões contemporâneas do seu país e do seu século e, por outro, desvendaram-lhe o terreno comum a toda a aventura humana”.
A recapitulação dos motivos para viajar que mais se lhe impuseram é feita por Marguerite Yourcenar numa conferência em Tóquio cujo texto, com o título «Viagens no espaço e viagens no tempo», encerra o livro que deveria ser composto de relatos das suas próprias viagens. Tendo acabado por ser deixado para último, a composição final redundou bastante diferente do plano que fora anunciado ao seu editor, tendo vindo a constituir um volume de publicação póstuma que foi chamado A Volta da Prisão que, em exergo, retoma a fórmula usada por Zenão, em A Obra ao Negro, citando-a: “Quem pode haver tão insensato que se deixe morrer sem ter dado, pelo menos, uma volta à sua prisão?”[ii]
A dupla remissão para Zenão no título e na epígrafe do livro devendo-se, certamente, ao facto de o mesmo constituir uma das presenças mais duradouras e relevantes na vida de Marguerite Yourcenar, pois, conforme a autora confessa, foi “uma daquelas obras empreendidas na primeira juventude, abandonadas depois, e retomadas ao sabor das circunstâncias, sem que o autor tenha deixado de as viver durante todo esse tempo”, não deixará de adensar a dúvida ou mesmo o mistério que essa volta encerra, quando na determinação da decisão de a empreender pesa a questão de saber se “estando a ideia de partir ligada, por um lado, a tantas dificuldades e, por outro, a tantos mal-entendidos, vale a pena sair de casa?” Sendo de considerar uma outra circunstância em que, interrogando-se sobre “quantas vezes, de noite, não podendo dormir, teve a impressão de estender a mão a Zenão”, não dispensa, contudo, estar ciente de que, tal como nessas “relações prolongadas com uma personagem que escolhemos ou imaginámos na adolescência, mas que só nos revela todos os seus segredos quando nós próprios atingimos a maturidade”[iii], teremos aí a melhor prova de quão lenta e irreversivelmente alguém avisado se dá conta da estranheza das coisas e que, assim sendo, talvez a maior insensatez não advenha de deixar para o fim a volta à sua própria prisão.
No cinema, Michelangelo Antonioni deu-nos uma galeria de heróis itinerantes, cujas voltas não deixam de nos alvoroçar. Em Il mistero de Oberwald (O Mistério de Oberwald, 1980), o penúltimo filme dessa extraordinária “aventura”, a viagem tem o (des)enlace num castelo no meio das montanhas.
O que, talvez, estivesse à conta de voltas ainda não inteiramente exploradas da sua “prisão”, e fora deixado para o fim, trouxe então Il mistero di Oberwald exuberantemente para diante dos nossos olhos: a cor rompendo o quadro, liberta das amarras do naturalismo.
Quando, relativamente a este filme, Antonioni afirma, por diversas vezes, que “não se pode dizer que seja verdadeiramente seu” ou que “foi apenas o realizador do mesmo”, deveremos entender essas declarações como meramente decorrentes das circunstâncias em que o projecto lhe veio parar às mãos: vindo ao encontro do seu desejo de experimentação, em 1980, a Rai (Radiotelevisão italiana) convida Monica Vitti para voltar ao teatro, na televisão. A aceitação da actriz passa pela condição de ser Antonioni o realizador da peça, para o que lhe propõe A Voz Humana de Jean Cocteau. Antonioni aceita a ideia e o autor, mas sugere, em troca, L’Aigle à Deux Têtes (A Águia de Duas Cabeças,1946), a peça teatral (e depois também filme) do mesmo autor que, apesar do texto parecer muito distante das suas preocupações habituais, lhe possibilitaria justamente realizar a experimentação desejada usando os meios electrónicos da televisão italiana, e em particular o colorizador.
Sem contradizer a sua afirmação convicta de que “a técnica não é algo em si mesmo que possa ser aplicado de fora por qualquer pessoa; na prática não existem problemas técnicos; se existir estilo a técnica é atravessada por ele”, Antonioni vinha manifestando, pelo menos desde que terminara a rodagem de Professione: Reporter (Profissão: Repórter, 1974), a sua insatisfação perante as limitações técnicas da produção cinematográfica corrente: “Sinto a necessidade de meios técnicos mais elásticos e mais aperfeiçoados que permitam, por exemplo, um controlo mais imediato da cor. Hoje o que se pode obter nos laboratórios, através da película não chega. Temos necessidade de utilizar a cor de maneira mais funcional, mais expressiva, mais directa, mais inventiva. Nesse sentido, as câmaras de televisão são muito mais ricas do que as câmaras de cinema. Com uma telecâmara pode-se, por assim dizer, pintar um filme, utilizando as cores electrónicas à medida que se filma”[iv].
De Francis Ford Coppola a David Lynch foram muitos os nomes ilustres que a partir dos anos Oitenta, optaram por usar na rodagem a fita magnética em vez da película fotográfica, obtendo resultados muito diferentes do ponto de vista artístico, mas igualmente interessantes em termos de uma evolução constante dos meios tecnológicos. Il mistero di Oberwald (1980) faz parte dos filmes ― em que é de incluir também, entre outros, Parade (1974) de Jacques Tati, One from the Heart (Do Fundo do Coração, 1982) de Francis Ford Coppola ― que recorreram ao uso de meios electrónicos e ao desenvolvimento de práticas experimentais que, se bem que rapidamente tenham ficado completamente ultrapassados e fora de uso, anteciparam os métodos digitais utilizados presentemente.
Assim, com este filme, integrando as primeiras obras cinematográficas a utilizar meios electrónicos na rodagem e, graças a eles, a experimentar novos métodos de realização, que o próprio, permitindo interpretações equívocas, por vezes designou por “rodar sem compromisso, com total desapego”, Antonioni contribui de forma singular para a afirmação da importância dos seguintes aspectos: um maior controlo das imagens; uma maior precisão no processo de correcção de cor; um novo passo em direcção a um cinema desembaraçado das limitações do realismo[v]
Seymour Chatman, um dos autores que mais atenção tem dedicado à obra de Antonioni, num texto em italiano em que apresenta a tese do seu livro, Antonioni, or, The Surface of the World, sobre o realizador, afirma: “De entre as inúmeras contribuições de Antonioni para a arte cinematográfica, a mais significativa talvez seja a de lhe ter restituído a integridade da imagem, integridade essa que estava em perigo desde a invenção do som”[vi].
Esse seu contributo resulta de uma particular disposição de Antonioni, uma atenção à “concentração visual”, derivada da sua capacidade em conseguir unir atmosfera e trama narrativa numa estrutura íntegra, elevando a um novo nível a componente cinematográfica da imagem e libertando o filme progressivamente de tudo o que é supérfluo para a narração: “O aspecto visual do filme está para mim estreitamente ligado ao aspecto temático, no sentido em que, quase sempre, a ideia me chega através das imagens. O problema está em filtrar a acumulação dessas imagens, perscrutar, reconhecer aquelas que coincidem com aquilo que me interessa no momento”[vii].
Conferindo ao método uma particular visibilidade em Blow-Up (História de um Fotógrafo, 1966), em que a ampliação revela coisas que não se imaginava que a própria objectiva tivesse fotografado, a compreensão do mundo consegue-se fotografando a sua superfície: “Até ao Il deserto rosso (Deserto Vermelho, 1964), sempre filmei com uma só câmara, e portanto de um único ângulo. Mas a partir do Il deserto rosso comecei a usar várias câmaras com diferentes lentes, mas sempre de um mesmo ângulo. Fiz isso porque a história exigia tomadas de vistas de uma realidade que se tornara abstracta, de um assunto que se tornou colorido”[viii], e ampliando a sua trama: “Foi nem mais nem menos do que fotografando e ampliando a superfície das coisas que estavam à minha volta que procurei descobrir o que estava por detrás das mesmas, o que estava para além delas”[ix].
O que, talvez, estivesse à conta de voltas ainda não inteiramente exploradas da sua “prisão”, e fora deixado para o fim, trouxe então Il mistero di Oberwald exuberantemente para diante dos nossos olhos: a cor rompendo o quadro, liberta das amarras do naturalismo.
“O mistério de Oberwald é que em nossos rostos carregamos vestígios de outros rostos que se foram embora”[x].
Contudo o que é mais perturbante não é Sebastien parecer-se com o rei, mas sim com o retrato do rei.
“Chega-se a um momento na vida em que da gente que se conheceu são mais os mortos do que os vivos. E a mente recusa-se a aceitar outras fisionomias, outras expressões: em todos os rostos novos que encontra, grava as velhas feições, para cada um arranja a máscara que melhor se lhe adapta”[xi].
A precisão necessária:
Michelangelo Antonioni e o pintor Mark Rothko foram amigos. Quando Antonioni encontrou Rothko no seu atelier, observou o seguinte: “as suas pinturas são tal qual os meus filmes ― são acerca de nada… com precisão”[xii].
Segundo Roland Barthes, num texto de elogio a Antonioni enquanto “artista do nosso tempo”, a mais paradoxal das forças ou, se se preferir, das virtudes que constituem o artista, chama-se fragilidade:
“Um outro motivo de fragilidade é, paradoxalmente, para o artista, a firmeza e a insistência do seu olhar. (…) O artista, esse, detém-se e olha longamente. Chego a imaginar que o Antonioni se fez cineasta porque a câmara é um olho, forçado, por disposição técnica, a olhar”[xiii].
“Quem éramos nós, nessa noite? Cito as tuas palavras: Uma ideia diante de outra ideia. E agora, quem somos nós? Uma mulher e um homem prestes a ser apanhados”.
“Que o mais humilde viajante pudesse vaguear através de um país, de um continente a outro, sem formalidades vexatórias, sem perigos, na certeza de encontrar em qualquer parte um mínimo de legalidade e de cultura”.
Entre as palavras da rainha na peça de Cocteau e o conselho do velho imperador nas Memórias de Adriano, se confinado um espectador não cairá na insensatez de falhar a volta à prisão, que seja a sua.
[i] Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (Lisboa: Leya, 2018); Marguerite Yourcenar, A Obra ao Negro, trad. António Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge, e Manuel João Gomes (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002); Marguerite Yourcenar, «Um Homem Obscuro», em Como a Água Que Corre, trad. Luiza Neto Jorge (Lisboa: Relógio D’Água, 2020).
[ii] Yourcenar, A Obra ao Negro, 7.
[iii] Yourcenar, 259 [Nota da autora].
[iv] M. S. Fonseca, ed., Michelangelo Antonioni (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1985), 81.
[v] Arnaud Widendaële, «Il mistero di Oberwald : retour sur une expérience de cinéma électronique», [sens public], Março de 2020, https://sens-public.org/articles/1465/.
[vi] Seymour Chatman, «Le innovazioni narrative di Michelangelo Antonioni», em Michelangelo Antonioni: Identificazione di un autore **, por A.A. V.V., vol. 2 (Parma: Pratiche Editrice, 1985), 19.
[vii] Michelangelo Antonioni, Fare un film è per me vivere: Scritti sul cinema (Venezia: Marsilio Editori, 1994), 129.
[viii] B. Cardullo e Michelangelo Antonioni, Michelangelo Antonioni: Interviews, Conversations with filmmakers series (University Press of Mississippi, 2008), 52.
[ix] Chatman, «Le innovazioni narrative di Michelangelo Antonioni», 20.
[x] Murray Pomerance, Michelangelo Red Antonioni Blue: Eight Reflections on Cinema (Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2011), 175.
[xi] Italo Calvino, As Cidades Invisíveis (Lisboa: D.Quixote, 2016), 106.
[xii] Seymour Chatman, Antonioni, or, The Surface of the World (Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1985).
[xiii] Roland Barthes, «Cher Antonioni», Cahiers du Cinéma, n. 311 (Maio de 1980): 9–11.