The Swan (O Cisne, 1956), realizado por Charles Vidor, é um filme no qual se sente o perfume de Lubitsch. Logo na sequência inicial, acompanhamos o percurso de um cesto de pão. A carroça do padeiro vai fazendo paulatinamente o seu percurso, parando nas traseiras de um palácio, onde é feito o acesso dos fornecedores à grande cozinha. Alguns pães caíram do cesto demasiado cheio, o que não impede que, depois de um safanão higiénico rápido, voltem ao seu contentor original. Quando o cesto chega ao fim da rampa que dá acesso à cozinha, há mais umas unidades que caem ao chão. Desta vez, é o cozinheiro que lhes aplica um sopro anti-séptico, transferindo-os para um pequeno cesto, mais raffiné. Dos pães que enchem este cesto de palhinha, dois são seleccionados para serem colocados num cestinho de prata por um empregado de luva branca, cestinho este que é finalmente colocado num requintado tabuleiro de pequeno-almoço. Uma daquelas sequências (aparentemente) desapegadas do restante filme, mas que dizem tudo. Podia tratar-se do lixeiro-tenor de Trouble in Paradise (Ladrão de Alcova, 1932), que carrega o lixo veneziano para a sua gôndola (o facto de a personagem interpretada por Kay Francis ser proprietária de uma fábrica de perfumes não impede que o início do filme cheire muito mal). Enfim, “beginnings are always difficult”, dizia Herbert Marshall a dado momento.

Estamos em 1910, algures no centro da Europa. Neste palácio, reina um grande alvoroço, provocado pelo anúncio da visita do príncipe Albert (Alec Guinness). O príncipe tem andado pela Europa em busca da candidata ideal para sua noiva, aparentemente sem sucesso. Esta será a sua última paragem e uma hipótese única para a princesa Alexandra (Grace Kelly) mostrar que é a escolha ideal para um dia ocupar o lugar de rainha (uma piada que se vai repetindo ao longo do filme deixa-nos saber que Napoleão é o culpado do infortúnio que impede que Alexandra possa ser rainha por direito próprio, ficando dependente do matrimónio com o pretendente ao trono).

Um pouco como na adivinha que conhecemos de crianças, Grace Kelly é aqui a princesa que antes de o ser já o era. A MGM não desperdiçou a coincidência com a boda real que se aproximava, estreando The Swan em Los Angeles no dia anterior ao casamento da actriz com o príncipe Rainier do Mónaco. Grace Kelly parece ter sempre sido permeável a estas derivações entre ficção e realidade, a menina de boas famílias de Filadélfia que já havia sido menina de boas famílias de Filadélfia em High Society (Alta Sociedade, 1956), a ponto de David Thomson a ter apelidado de “a mais plausível das princesas”. Esta confusão de máscaras de vida real e de cinema cristaliza-se no comentário de Hitchcock perante a notícia do noivado da sua loura de eleição – “I’m very happy that Grace has found herself such a good part”. Os vestidos da princesa Alexandra são desenhados por Helen Rose, que desenharia também o vestido de noiva para o casamento real. Quase adivinhamos pequenas missivas de realidade cosidas no interior das bainhas dos vestidos de faz-de-conta saídos do departamento de guarda-roupa da MGM, qual Phantom Thread (Linha Fantasma, 2017).


O encontro entre Alexandra e Albert não corre da melhor forma, mostrando-se ele demasiado desinteressado do ofício de ser príncipe e de escolher uma noiva, enfastiado com todas as obrigações sociais que a ocasião exige (os seus interesses vão alternando entre dormir, conhecer os progressos técnicos de extracção do leite na vacaria, jogar futebol e tocar contrabaixo). A princesa parece-lhe entediante, insossa, com um discurso estudado, demasiado formal na sua máscara. Já Alexandra, que declaradamente ambiciona um dia ser rainha, vai ficando progressivamente desencorajada pela falta de interesse que Albert demonstra, encerrada na sua aparente timidez. Mas esta insegurança de Alexandra é também uma máscara. Veja-se como, perante Nicholas (Louis Jourdan), tutor dos seus dois irmãos mais novos, ela mostra uma outra determinação, quase frieza. E, simultaneamente, o modo terno e jovial como se relaciona com os irmãos, quando desce do seu trono gélido. É esta, afinal, a matéria do amor: o remover das máscaras, tal como as máscaras que Alexandra e Nicholas vão colocando e removendo antes de cada aula de esgrima.

Obviamente, o Dr. Nicholas Agi, o parceiro de esgrima, está perdido de amores pela princesa. Neste jogo palpitante de máscaras, o nosso Nicholas apaixonou-se justamente pela rainha de gelo que se apresenta perante ele, seduzido pela segurança e pela firmeza que escapam a Albert. As qualidades que lhe faltam, ele que é todo deslumbramento e emoção, em perfeita antítese com os cads a que Louis Jourdan, o eterno divo, nos habituou. Nicholas mostra-se confortável apenas quando escudado na sua carapaça de tutor, de forma a melhor resistir às investidas de Alexandra. De resto, um pouco intimidado pela força dela, o tipo de homem que precisa de um copinho de vinho para ganhar coragem [curiosamente, Jourdan haveria de ter o seu derradeiro papel perseguindo uma garrafa de vinho em Year of the Comet (O Ano do Cometa, 1992), essa deliciosa e esquecida comédia romântica / heist movie de Peter Yates – o vinho como personagem principal anos antes de Sideways (2004)].

Além destes encontros e desencontros amorosos, The Swan oferece-nos uma galeria de secundários tão rica que ameaça roubar-nos a atenção da história de amor que vai acontecendo ali ao lado. Aliás, algo de muito semelhante ao que sucede em While You Were Sleeping (Enquanto Dormias, 1995), em que éramos desde logo cativados pelas personagens interpretadas por Peter Boyle, Jack Warden ou Glynis Johns. Em The Swan, Jessie Royce Landis volta a ser mãe de Grace Kelly, como já anteriormente havia sucedido em To Catch a Thief (Ladrão de Casaca, 1955). Mas, ao invés da milionária americana que era a imagem da descontracção, aqui é uma mãe em plena tensão, inquieta perante a aparente calma da filha perante todos os contratempos, o seu nervosismo exacerbado pela passividade dos restantes membros da família que, frequentemente, fazem troça das suas aflições. A tia Symphorosa (Estelle Winwood), em jeito de Eve Arden ou de Thelma Ritter, vai oferecendo as suas boutades, culminando numa frase que é o seu compêndio de filosofia pessoal: “I don’t like the 20th century.”
É este especial deleite que faz de The Swan um filme claramente superior a One Romantic Night (1930), a anterior versão, que tinha Lillian Gish no papel de princesa Alexandra. Charles Vidor, um realizador cujo nome se encontra essencialmente associado a dois factos – a sua disputa com Harry Cohn e a imortalização de Rita Hayworth em Gilda (1946) -, consegue render a devida homenagem à sofisticação que fez a fama do autor húngaro Ferenc Molnár, seu conterrâneo e autor da peça original.

Também dentro do filme se descobre uma promiscuidade entre ficção e realidade, convertendo-se o amor ficcionado, criado apenas com o intuito de provocar ciúme, em amor real. Alexandra vive toda uma vida num só dia, percorrendo desde o despertar de um primeiro amor, passando pelo êxtase, a graça da paixão correspondida, a primeira desilusão amorosa e a descoberta serena, mas hesitante de uma comunhão de almas inesperada, a promessa de um companheirismo (amor?) entre duas almas que se descobrem. O “take me in, Albert” final não é uma resignação triste. É apenas um cair da máscara.