In a universe of ambiguity, this kind of certainty comes only once, and never again, no matter how many lifetimes you live.
Robert, The Bridges of Madison County (As Pontes de Madison County, 1995)
Após a morte de Robert (Clint Eastwood), as máquinas fotográficas dele foram endereçadas a Francesca (Meryl Streep) como quem partilha um objecto de desejo, o objecto que materializara um amor de quatro dias que perduraria até as cinzas dela encontrarem as águas que já tinham recebido as dele, sob a ponte Roseman, uma ponte coberta no Iowa, construída em 1883, objecto da reportagem do fotógrafo. É numa estrutura de flashbacks, similar à utilizada no melodrama Bird (O Fim de um Sonho, 1982), que os filhos de Francesca decifram o grande amor de The Bridges of Madison County, e a sua materialidade protegida pelo segredo de um cofre: cartas e diários, fotografias, um fio dela que passou para o pescoço de Eastwood, as pulseiras dele, um vestido que Streep apenas usara na noite partilhada com o fotógrafo e que a filha um dia vestirá, pacificada com toda aquela memorabilia.
Um melodrama, herdeiro exemplar da tradição clássica, a insatisfação com a estreiteza do mundo, um confronto com as convenções e os pactos de uma sociedade fechada, fundada na exclusividade da família e do matrimónio: uma mulher vinda do sul de Itália (que escuta ópera num pequeno rádio) enfiada numa pequena povoação do Midwest e um fotógrafo profissional, que correu mundo. Um amor que impõe um descontrolo, uma desordem do mundo, uma tempestade que irrompe num dia ameno, um cataclismo que dá a ver personagens que não são o que aparentam: uma mulher que abdicara de ser professora para cuidar do domicilio e dos filhos, um aventureiro que suspende a próxima viagem. O culminar da tensão acontece na cena que mais se repete em ambiente familiar, mais melodramática por assim dizer: Robert, sentado à mesa, toma o pequeno-almoço servido por Francesca, que circula pela cozinha. Como se encenassem uma vida familiar, constatam da sua impossibilidade, o que valida o melodrama: ela não consegue quebrar o espartilho da família e da comunidade, ele questiona o seu envolvimento, não quer precisar dela, porque não pode tê-la. Um algoritmo de paradoxos, o melodrama: será a separação deles que permitirá que um grande amor perdure para lá da morte.
Uma ave rara, então, como se nomeia o protagonista de The Bridges of Madison County que não aceita a sujeição e o preconceito de uma sociedade que define a família como base hegemónica.
O melodrama activa os corpos, corpos experimentados, agora despertos pelo olhar do parceiro. Streep liberta o vestido, o vento da noite acaricia-lhe o peito enquanto recorda Eastwood a banhar-se ao ar livre nessa tarde. Olhar e ser olhado, enquanto o fotógrafo pondera a posição da máquina e o ponto de vista do registo de uma das pontes cobertas, Francesca observa-o, detalha-lhe os movimentos do corpo, o cabelo desalinhado e o rosto maduro. Corpos e erotismo também atiçados pela música, pelo standard do jazz que se ouve na rádio, um passo de dança em volta da mesa de cozinha, pouco depois dos corpos se tocarem enquanto partilhavam a confecção do jantar. Numa das noites, introduz-se outro dos ingredientes do melodrama, a ilusão de fuga, a ida a um lugar distante do domicílio de Francesca, um bar de jazz pontuado por um sax alto, por corpos que dançam, com predomínio para a comunidade afro-americana, numa cena que replica a atmosfera do botequim de Memphis em Honkytonk Man (A Última Canção, 1982), mas que também comunica com a nossa memória de Far From Heaven (Longe do Paraíso, 2002), o par Julianne Moore e Dennis Haysbert a enfrentar o preconceito racial na América dos cinquentas, Todd Haynes a trabalhar sobre o legado maravilhoso do melodrama de Douglas Sirk.
Robert, fotógrafo e contador de histórias, é ainda um eco de John Wilson (Eastwood), protagonista de White Hunter, Black Heart (Caçador Branco, Coração Negro,1990), uma homenagem declarada por Eastwood ao aventureiro John Huston a partir de episódios e efabulações decorridas da rodagem de The African Queen (A Rainha Africana, 1951). O fascínio por África, um outro mundo, de ambientes e de cores, que o fotógrafo descreve como algo de tangível, do amanhecer ao anoitecer, uma coabitação entre o homem e os animais, governada por mecanismos de sobrevivência onde não se impõem julgamentos morais, o que serve de contraste, de libertação, da América retratada pelo melodrama. Uma ave rara, então, como se nomeia o protagonista de The Bridges of Madison County que não aceita a sujeição e o preconceito de uma sociedade que define a família como base hegemónica, que pode ser a ligação à próxima paragem de um mundo perfeito, Bronco Billy (1980), uma família de beautiful freaks em viagem, um circo decadente protagonizado por Eastwood, proprietário e principal atracção – o gatilho mais rápido do oeste, num dos encontros com Sondra Locke, companheira do cineasta durante treze anos, um dentro e fora, tensões recorrentes nestas crónicas.