Certos nomes de realizadores prestam-se mais facilmente à conversão em adjetivo do que outros. Leos Carax não é um desses casos. Caraxiano é uma palavra que não consegue agregar aquilo que o cinema do realizador carrega (ou carregava). No entanto, é manifestamente evidente, para todos aqueles que tenham passado os olhos por qualquer dos filmes anteriores de Carax, que há nele uma característica definidora e facilmente reconhecível: uma espécie de poesia soturna que se manifesta nos gestos, nos diálogos, nos enquadramentos e na mise en scène, ao que se acresce, paralelamente e em relação, uma preocupação social em redor dos tremores do seu tempo.
Como referia Jonathan Rosenbaum, num artigo para a Film Comment, “parte daquilo que torna subversiva a poesia de Carax é (…) este recusar certos limites que estabelecemos em relação à fantasia e à poesia.” Em particular, em Les Amants du Pont-Neuf (Os Amantes da Ponte Nova, 1991) a beleza chocava com a realidade dos sem-abrigo, em Pola X (1999) as tramas do melodrama viam-se estrinçadas pelo conflito dos Balcãs, a curta Merde (2008) sumariava-se (e somatizava-se) esse estado de alma, transformando em lírico o esterco (literalmente), e dessa curta surgiria Holy Motors (2012), uma enxurrada mística sob o manto escuro do digital enquanto (perigoso?) território da desmultiplicação identitária. Portanto, o excesso do belo vinha sempre condimentado pelo ácido dos tempos. Mas talvez, em nenhum dos seus filmes isso fosse mais evidente do que em Mauvais sang (Má Raça, 1986), onde se inaugurou esse “sismógrafo” poético (para usar um descritivo de Serge Daney na crítica publicada no Libération, à data da estreia desse título).
Diante de Annette (2021), o mais recente filme realizado por Leos Carax, fica-se com a sensação que por aqui há muito pouco de caraxiano. Isto é, apesar de Carax surgir, como “metteur en scène”, logo no início do filme, cedo se torna claro que este é um filme muito pouco seu. Essa ausência já se anunciava (percebo-o agora) no plano sequência que abre o filme, onde toda a “equipa” se apresenta ao espetador e Carax surge, lá bem no fundo da fotografia de grupo, escondido e ocultado por uma série de “colaboradores”. De facto, uma análise rápida dos créditos revela muito dessa ausência e da forma como Annette não integra, ao mesmo nível, a filmografia do autor. Este é o primeiro filme por si realizado que não foi igualmente por si escrito. A ideia e o argumento do filme foram desenvolvidos por Ron Mael e Russell Mael, os manos Sparks, que igualmente escreveram e compuseram as sofríveis canções – que se infiltram nos tímpanos para de lá dificilmente se ausentarem – deste musical. Embora Carax continue, aqui, a trabalhar com a mesma diretora de fotografia (Caroline Champetier) e a mesma montadora (Nelly Quettier), falta-lhe aquele que é, e sempre foi, o ingrediente secreto dos seus cozinhados, o seu ator fetiche, Denis Lavant.
O que seria Annette se Denis Lavant interpretasse o papel principal? Talvez fosse um filme mais sujo, mais magoado, ainda mais caricatural, mais cartoonish, enfim, mais caraxiano.
A ausência de Carax do “seu” filme é, por isso mesmo, dupla. Ele esfuma-se do filme pelo apagamento da sua visão autoral e, depois, pelo desaparecimento daquele que era, até então, o seu alter-ego. Um filme de Carax sem Lavant, é um filme sem Carax. E isso não podia ser mais notório em Annette, onde Adam Driver bem se esforça por carregar às costas um filme sem rumo e sem visão. Por muito esforçado que seja o seu desempenho – e é-o (veja-se a sequência da morte por cócegas) –, falta-lhe (apesar do nariz protuberante – que deverá ter ajudado no processo de casting) a performatividade infantil e grotesca de Lavant: esse monstro doce e sensível. O que seria Annette se Lavant interpretasse o papel principal? Talvez fosse um filme mais sujo, mais magoado, ainda mais caricatural, mais cartoonish, enfim, mais caraxiano.
O que me parece óbvio agora (e ao trocar algumas ideias à saída do cinema, com os comparsas de visionamento) é que este é um filme que até podia ser… mas não é. Ele é um universo pululante de possibilidade, seria um projeto aliciante, um rascunho cheio de potencial. Mas acaba não sendo. É talvez sintomático disso mesmo que se tenha falado tanto doutras possibilidades de casting para o filme, que teriam sido mais ao gosto do realizador. Noticiou-se que em vez de Driver, Carax preferia Joaquin Phoenix. E em vez de Marion Cotillard, Rihanna. O que seria esse filme? Algo que este não é… É uma verdade de la palice, certo, mas não destituída de fundo. Annette é um leque de bifurcações onde se tomou, quase sempre, a via errada, um filme perdido no labirinto do famoso conto de Jorge Luis Borges.
Mas o que é, afinal, este filme? Annette é uma infinidade interminável (e igualmente pleonástica) de canções dos Sparks por que é necessário suportar para se chegar aos créditos finais. Annette está repleto de personagens-tipo que, talvez seguindo os fechados códigos operáticos, deixam antever o seu papel e psicologia assim que entram em palco (literalmente) e anunciam, de forma declarativa (e declamativa) os seus propósitos, as suas intenções, os seus desejos e os seus medos. Annette é uma sucessão semi-desconexa de cenas que se acumulam segundo um espírito iterativo e completista que não pode abrir espaço a uma elipse narrativa ou alguma subtileza dramática. Annette é um melodrama (no sentido literal da palavra) que descreve a queda de um comediante “provocador”, do apogeu artístico até à máxima decrepitude moral (e financeira). Annette é um episódio do Neco realizado pelo António de Macedo. Annette é uma compilação de lugares-comuns. Annette é o suplício feito filme. Annette dura 140 minutos, onde cada um deles nos grita, aos ouvidos, cada um dos seus segundos. Annette é a definição de desaire. Annette é lamentável. Annette é, apetecia-me dizê-lo (de forma não-bernardiana), inadjetivável, isto porque, apesar de tudo, há nele ainda uma sombra distante, um espectro, de caraxiano.
Se referia, a início, que uma das marcas autorais do cinema de Carax era a forma como a poesia não deixava de sentir a realidade, em Annette foi-se a poesia e ficou, apenas, a alusão parola à contemporaneidade.
Ainda assim, se referia, a início, que uma das marcas autorais do cinema de Carax era a forma como a poesia não deixava de sentir a realidade, em Annette foi-se a poesia e ficou, apenas, a alusão parola à contemporaneidade. Em particular, ao movimento #metoo (onde as proximidades entre o arco da personagem de Driver e o caso de Louis C. K. não são causticas). Daí que não posso deixar de pensar que talvez Carax tenha contraído a STBO, a lírica doença de Mauvais sang. Recordando, esse vírus ficcional (metáfora complexa do VIH) afetava aqueles que faziam “amor sem sentimento” e, “mesmo que só um dos amantes faça amor sem amor, ambos ficam infetados (…). Dizem que a dor é terrível, atroz. Infecções nos olhos, dores nas articulações, vómitos, espasmos musculares.” Talvez seja esse o caso: Carax filmou sem amor, e os espetadores sofrem agora agonias incomensuráveis – ao menos o sofrimento será mutuo.
Mas ainda assim… ainda assim espanta o modo como Leos Carax filma tudo com uma aparente seriedade (o empenho nos planos sequência, nas estratégias de desnaturalização das cenas e dos cenários, a ênfase operática, etc.). Não há aqui uma pinga de ironia. Não há gozo. Não há truques espertalhões e metalinguísticos. Nada disso. Há uma dedicação (totalmente alheada) à história, às personagens e ao mundo do filme propõe e constrói. E isso chega a ser comovente, pela pureza que denota e pela confiança que demonstra. Talvez se o filme se levasse menos a sério (e brincasse mais, ou de forma mais evidente, com os códigos que usa) seria menos sofrível. Mas aí perder-se-ia essa candura alienada que é, paradoxalmente, a única coisa bela do filme.