Contexto:
A – involuntária, lenta e subtil – escavação surgiu após o visionamento de Passion (Maja Borg, 2021), na edição online do CPH:DOX. Um documentário pessoal que reflecte sobre as ligações entre o corpo e a espiritualidade, entre a religião e – ou, acima de tudo, – a comunidade e as práticas do universo BDSM. A premissa de ligação entre dois reinos distintos (aparentemente – e falaciosamente – de extrema oposição), juntamente com a noção da criação de um sujeito-realizadora pela viagem sugerida na sinopse do filme, lançou o mote para uma introspecção sobre questões de representação.
Pelo caminho, de forma natural, foram surgindo outros títulos, outras temáticas, outras visões, outras abordagens: desde a ficcionalidade da realidade distópica do fantástico leather-ish pop-sci fi Flaming Ears (1991), ao documentário Female Misbehaviour (1992). Surgiu, na (re)descoberta de Monika Treut e do seu universo documental, um encontro não planeado com a ficção: Seduction: A Cruel Woman (1985). No brilhante jogo da aleatoriedade do algoritmo que nos (sur)pre(e)nde, nasceu o encontro com Preaching to The Perverted (1997). A potência da relação entre essas representações do universo BDSM, apresentada em diálogo, deu origem à sugestão – pela qual agradeço a Dasha Birukova – de Mano Destra (1986), completando, assim, a santíssima trindade disposta em seguida.
Esta não é (nem poderia ser) uma antologia, mas sim uma breve – e, para já, incompleta e ainda presente – reflexão.
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“I want to feel the moments where realism is dissolved, be part of the scenes in which unbreakable rules for narratives were broken as if it were the most natural thing in the world. I want to be where they unearthed the subtle and the sublime from the primitive” (Jenny Hval, Girls Against God: A Novel, 2020).
Luzes, progressive house, fatos de cabedal, chicotes, jaulas, espectáculo e espectadores, acção: bem-vindos ao pleasure dome de Preaching to the Perverted (Reino Unido, 1997). Um registo de Stuart Urban que nos seduz com a sua exímia abordagem visual e sonora pelos (en)cantos dos sex clubs no Reino Unido, numa disputa entre o underground e o mainstream, entre a ideologia religiosa cristã e a prática BDSM, entre a moralidade e a perversidade (a tal denúncia do título): uma batalha liderada pela Mistress Tanya Cheex, dona da House of Thwax e Peter Emery, estagiário do Partido Conservador Britânico. Uma imersão pelo prazer no proibido, pelo desejo da simbiose na quebra da dicotomia binária, pelo encontro entre o Romeu e a Julieta prometidos na conquista sobre a tragédia: a resolução (possível) pelo amor. Perdemo-nos facilmente pelo ambiente exótico luxurioso assinalado pela direcção de arte de Jon Scott, pela sensualidade da selecção e criação musical de Magnus e Maya Fiennes, num caminho traçado, no entanto, pela normatividade da expectativa narrativa. Os dois mundos polarizados colidem: surge a união (no domínio do) expectável.
A fraca – e previsível – resolução narrativa é somente um acto último de uma representação que se auto-sugere (ou se auto-classifica, ainda que não assumidamente) enquanto feminista. Esta tentativa de imposição de uma perspectiva de escape ao domínio do masculino, pela inclusão de uma mulher protagonista dominatrix, que se apresenta enquanto “WOMON” (“I bow to no man”), que se dedica à leitura de manuais de Advanced Neurology, entre outros elementos estrategicamente adicionados no campo do visível para a criação – e sustentação – de uma ilusão (re)criada no próprio filme.
A ideia de um potencial domínio do feminino não se sustenta somente com adereços: aqui, a direcção sucumbe à formulação habitual de constante dependência do masculino, tanto na sua criação, como na sua reprodução e representação.
É de notar, no entanto, que esta entrada naive e cliché pelo universo de BDSM aqui sugerido tenha sido, mesmo assim, alvo de censura na Irlanda (aquando o seu lançamento nos anos 90), e dado azo a críticas como “it seems to be going out of its way to remove the deviant stigma most of us place on S&M participants. In doing that, though, the movie becomes more of a recruitment video for the lifestyle than anything else” (David Nusair). O suposto desvio da conduta sexual cis heterossexual parece ser alvo de resistência para alguns mas a realidade é que o universo BDSM – e os seus mais diversos terrenos e as suas mais diversa referências (acima de tudo) estéticas – é comumente utilizada e representada no domínio das fórmulas normativas mainstream. Em ‘You’ve Made Mistress Very, Very Angry’: Displeasure and Pleasure in Media Representations of BDSM, de Jenny Barrett, lemos que “There are, I believe, four key stereotypes that are part of a public consciousness or assumption (…) I have labeled them as: the Mature Dominatrix, the Young Male Sub, the Vamp Dominatrix and the Public Authority Male Sub.”
Ainda neste campo dos padrões de protagonistas expectáveis na representação do universo BDSM, Seduction: A Cruel Woman (Alemanha, 1985), de Monika Treut e Elfi Mikesch, escapa, no entanto, à fatal banalidade da fórmula ficcional associável.
Com um guião inspirado pelo Venus in Furs, de Leopold von Sacher-Masoch, temos um retrato sensual, brutal, de não-exploração do gozo pelo olhar sobre uma realidade (potencialmente des)conhecida: o olhar do lugar de afastamento sobre um universo categorizado na dicotomia de dor e prazer, de domínio e submissão, de feminino e masculino.
Com uma tremenda sensibilidade na abordagem cinematográfica, vemos, aqui, a possibilidade – e concretização – da ascensão de um filme de valorização da multiplicidade de experiências, sensações, emoções – e indivíduos, na sua plenitude -, onde a complexidade inerente às relações (que, como na vida, ultrapassam o paradigma cis heteronormative) nos coloca no campo da proximidade e da familiaridade: a fuga à estanque plasticidade representational de cedência do campo do prazer a um pólo do espectro identitário.
Seguindo pela disrupção da espectacularização do (mais uma vez potencialmente) não-familiar, do escape aos comuns lugares de poder, pela quebra do fetichismo*, chegamos a Mano Destra (Suíça, 1986), de Cleo Uebelmann.
Imagens de corredores encaminham-nos para um centro de (in)acção. Passos em marcha diegética colocam-nos na posição do suspense do “antes de” ou “pré-“. A resolução visual de apresentação da dicotomia “domina, submissa”, rapidamente se torna alvo de questionamento: quem domina e quem se submete?
Um jogo que nos coloca rapidamente em campo, num jeito de dança nunca concretizada, de preparação de um palco nunca ocupado, de criação de uma narrativa sem fórmulas.
A insistência imagética nos corpos em aparente suspensão, em rituais do banal exótico, cria um antropomorfismo urgente: a criação de sujeitos que, no pólo do espectro do feminino, dominam o campo da acção e do (in)visível.
Cleo coloca-se no centro, em pose de provocação contra um sistema misógino de reprodução em ode ao prazer no masculino. Não nos deixa embalar pelas harmonias e vozes de The Vyllies, colocando o outro lado do espectáculo na base sonora: os que, como nós, estiveram (ou estão) do outro lado.
Neste gesto cinematográfico, a mão direita serve para bofetear, gentilmente, o mundo do expectável, acariciando-nos com a sensualidade da resistência.
*do português: feitiço; até ao inglês: fetish (17th century).