I. “The bird a nest, the spider a web, man friendship” [citação de William Blake que abre First Cow (First Cow – A Primeira Vaca da América, 2019) de Kelly Reichardt]
Vemos os vestígios de dois corpos, dois esqueletos encontrados num bosque. Os vestígios destes dois corpos invocam outros dois corpos, aqueles que Ingrid Bergman via em Pompeia, em Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954), recém-desenterrados das cinzas. A presença dos dois corpos assombra First Cow, da mesma forma que a imagem dos dois amantes abraçados durante séculos assombrava o filme de Rossellini.
Essa imagem, de cristalização do amor num caso, da amizade noutro, leva-nos a uma indagação daquilo que é próprio do Homem, a sua propensão gregária, a tendência para a comunidade (o animal político?). E do lamento pela impossibilidade de criação dessa comunidade, a construção de uma união mínima, reduzida a dois seres.
Vemos a ligação que une dois homens, Cookie (John Magaro) e King-Lu (Orion Lee), uma dedicação terna, uma união serena de dois amigos num mundo de brutos. Cookie sempre mais pensativo, um pouco alheado, congeminando novas preparações pasteleiras como quem procura o ingrediente certo na construção de um poema; King-Lu mostrando-se mais energético, perspicaz, o estratega, imaginando a forma de passar à prática uma boa ideia. Eles não se deixam contaminar por toda a masculinidade tóxica que os rodeia, bem visível no comportamento do homem rude que passa à frente do jovem na fila, ficando com o último biscoito que lhe estava destinado.
II. O tempo. O tempo para as pequenas coisas, para os pequenos gestos. A nobreza das tarefas pouco importantes, a câmara a reter-se em algo que acharíamos sem dignidade suficiente para roubar tempo à acção. Algo que nos habituámos a ver em filmes de Isao Takahata ou de Hayao Miyazaki – o tempo necessário para mostrar o dobrar de uma peça de roupa, o puxar da ponta de um cobertor sobre o corpo repousado numa cama.
Há uma generosidade face ao tempo que é bem visível na cena em que o criado do Chief Factor (Toby Jones) percorre a casa, procurando silenciar os seus passos, apagando, uma a uma, todas as luzes. Recolhe-se ao seu quarto, pega num pequeno quebra-cabeças de madeira que o ocupa durante alguns momentos antes de, finalmente, se entregar ao sono.
A ousadia de contrariar a pressão do tempo, visto hodiernamente como o bem escasso por excelência. Porque quando falamos de tempo, falamos também de capitalismo, do tempo que é dinheiro. E de um modo de vida que é o nosso – a disponibilidade para ver e para ouvir é um luxo, algo que apenas concedemos com parcimónia.
“You can’t just grow a tree – it takes time”.
III. A paisagem, a natureza que envolve todo o filme, que por vezes parece querer engoli-lo.
Logo no início de First Cow, vemos o rio e o barco que o percorre lentamente, deslizando suavemente sobre águas de seda. Esse rio parece impermeável à presença humana, porque o veremos pouco depois, regressados a 1820, quando outros barcos o percorrem. Deixando as margens do rio, toda a vegetação se afigura densa demais para que algum dia se torne permeável à presença humana, existe demasiada abundância. Mas, ironicamente, testemunhamos a dificuldade em encontrar alimento no meio de toda essa abundância. Cookie vai recolhendo alguns cogumelos como pequenas pedras preciosas.
Há um enorme trabalho de limpeza sonora que passa por limpar o filme de poluição sonora e de ruídos anacrónicos – os ruídos da presença humana em desarmonia com a natureza
A natureza mostra-se desde logo, pela presença dos animais, como vai sucedendo na filmografia de Kelly Reichardt – nomeadamente em Wendy & Lucy (2008) e Certain Women (2016). A vaca como protagonista é uma criação de Reichardt, ela não existia sequer no romance The Half Life, de Jonathan Raymond, no qual se baseia o argumento de First Cow.
A voz humana não se sobrepõe à voz da natureza, é uma voz tímida, por vezes difícil de escutar e que se contrapõe aos pequenos ruídos que vão pontilhando o filme, ruídos de pássaros e de outros animais. A modulação do volume da voz das personagens, vai transmitindo, pelo som, uma percepção do espaço. Há um enorme trabalho de limpeza sonora que passa por limpar o filme de poluição sonora e de ruídos anacrónicos – os ruídos da presença humana em desarmonia com a natureza (Reichardt falava, numa entrevista, da irritação que lhe provocam as máquinas usadas para soprar folhas nos jardins, pela sujidade sonora que produzem), – enriquecendo-o, artificialmente, dos sons da natureza.
Em 1820, fica ainda a sensação de que, no confronto homem-natureza, a natureza leva a melhor, tem demasiada força para ser derrotada. Mas a relação com a natureza não é de modo algum idílica. O homem não se integra na natureza, vê-a justamente como adversário ou, no mínimo, como colaborador relutante. A natureza é susceptível de exploração comercial, os castores são capturados de forma intensiva, porque a sua pele é valiosa, mas King-Lu lamenta o facto de não estar a aproveitar o óleo precioso que deles se poderia extrair e que, noutras paragens, poderia ter elevado valor comercial. A vaca é afagada, mimada, porque oferece a Cookie algo em troca. Nada ilustra de forma mais competente este especismo do que a utilização de conchas como moeda.
A exploração (“exploration”) de novos territórios não pode fazer-se por outro caminho que não seja o da exploração (“exploitation”).