Faleceu no passado dia 5 de Julho o realizador norte-americano Richard Donner. De uma forma ou de outra ele inventou a infância de toda uma geração (ou duas, ou três). Cineasta popular, mestre do mainstream, rei do blockbuster, os seus filmes definiram um tempo (as décadas de 1970, 80 e 90), descobriram e minaram o filão do cinema de acção, da aventura infantil, do filme de terror, da comédia, do cinema de super-heróis, e das sequelas, prequelas e reboots. Até certo ponto, Donner inventou o melhor e o pior do que é o cinema de Hollywood hoje. Mas com a sua partida foi-se o criador de muitas das imagens que nos definiram enquanto “moleques”. É hora de lhe prestar a devida homenagem.

Se há cineasta que me acompanhou nos primeiros anos a desbravar prateleiras de clubes de vídeo nos anos 80 e 90, ele não foi nem Steven Spielberg, nem John Carpenter, nem John McTiernan. Foi Richard Donner, com filmes como The Goonies (Os Goonies, 1985), Lethal Weapon (Arma Mortífera, 1987), Ladyhawke (A Mulher Falcão, 1985), ou mesmo Maverick (Maverick, 1994). E, claro, a saga do Super Homem. Do primeiro filme recordava a música de John Williams, que, como havia feito em Jaws (Tubarão, 1975) ou em Star Wars (A Guerra das Estrelas, 1977), compreendia a importância de uma sonoridade no ouvido para construir o universo blockbuster. Lembrava ainda o rosto intocável de Christopher Reeve, o fato do super homem que na altura todos os jovens queriam ter, pelo menos no Carnaval, o verde fluorescente da criptonite, as primeiras proezas do jovem Kent (a levantar o camião de túnica vermelha ou a correr mais rápido do que o comboio). Havia qualquer coisa de anjo protector que hoje talvez seja uma auto-estrada para o camp.
Entretanto, o tempo passou. Tinha eu 15 anos e o Super-Homem deixou de poder voar, sequer andar. O acidente que deixou Reeves tetraplégico sempre me pareceu dessas ironias amargas do cinema. Mas mais do que isso: a falência de um estatuto übermensch, muito depois da morte de Deus, pela mão do mesmo germânico mauzinho. E eis que agora morre Donner que, mais do que ajudar a arrancar o blockbuster com Superman (Superman – O Filme, 1978), inaugurou o universo cinemático dos superheróis, com tão humano super. Um herói que, mais do que protector, queria a integração na comunidade e o amor. Como pude esquecer esse “pormaior” (?!) do filme, em que o super-homem gira que nem uma bala à volta da Terra para fazer o tempo andar para trás e poder chegar a tempo de salvar a sua Lois Lane? Dizia-se que Richard Donner não tinha ambição artística, que fazia apenas veículos de entretenimento para pipocar. Mas em todos os seus filmes a “falta de toque” era sacrificada em prol de uma empatia profunda com as suas personagens. Talvez não seja preciso dar a volta ao mundo para ir a tempo de evitar a morte de Donner. Basta rebobinarmos a sua obra e olhar e escutar atentamente.
Carlos Natálio

Na senda dos vários títulos que procuraram emular o sucesso de The Exorcist (O Exorcista, 1973), poucos adquiriram o culto e uma constante reapreciação como The Omen (O Génio do Mal, 1976), assinado pelo recém-malogrado Richard Donner. O arquivo de textos críticos, redigidos por altura da sua estreia, desvela opiniões pouco abonatórias (“silly”, “goofy”, “dumb”, com argumento “too expository, too predictable, too contrived”, “a piece of junk”…) em relação a um filme cujos temas de paternidade a qualquer preço, anti-clericalismo, disfunção familiar, paranóia sócio-política e transcendência humana só foram detalhados e interpretados nas décadas mais recentes.
Em The Omen, Richard Donner construiu, basicamente, um exercício de estilo subordinado às prerrogativas do poder patriarcal — ou de como os erros, assumidos pela figura do “chefe de família”, se repercutem por toda a sua linhagem —, condimentado pelo sangue e a irascibilidade sobrenaturais do Diabo consubstanciados em Harvey Stephens (um dos rostos pueris mais consequentes na história do cinema de terror). Paralelamente, a narrativa é dinâmica, escorreita e despretensiosa, sem grandiloquências nem pejo de gore e jump scares gratuitos. Tanto assim o é, que essa qualidade formal promove o trabalho de câmara de Gilbert Taylor, mas quase dilui a análise das suas temáticas e, principalmente, os sobressaltos morais de um Gregory Peck (lacónico e amargurado, num dos momentos altos da carreira posterior do actor) que, na sequência final e a que a imagem publicada diz respeito, nem terá direito à redenção espiritual: mais trágico e incondicional do que isto, no seio de um blockbuster, é impossível.
Samuel Andrade

Como tantas e tantos, a minha relação com o cinema através da televisão pautava-se (e pauta-se) por uma ideia de fragmentação. O filme que se começa a ver a meio, que se desiste ou se interrompe com outro afazer mais urgente. Daí que, até hoje, uma parte significativa da minha “audiovisualidade” de infância seja uma poça de bits and pieces, um arquivo convulso e desorganizado de pedaços perdidos para sempre nas manipulações da memórias. E Richard Donner, pela sua popularidade nas décadas de 1980 e 1990, foi o realizador querido de muitas grelhas de programação. A minha relação com a sua obra é portanto altamente incompleta e casuística, composta por mais clips do que films.
Como a tantas e tantos outros, Richard Donner marcou, por isso, a minha infância e pré-adolescência sem eu sequer saber o seu nome. Há imagens que nos ficam, como cicatrizes. Apesar de dolorosas, elas envergam a aura do tempo passado, do “trauma” vivido e sobrevivido, apresentando-se como manifestações muito concretas e muito visíveis de um percurso cheio de atribulações mas carregadamente pessoal. Uma dessas imagens que definiu, em parte, o meu conceito de horror enquanto criança, provem de The Goonies (Os Goonies, 1985). Na altura não sabia que filme era aquele que se exibia na televisão, e durante largos anos continuei sem o saber. Aliás, só muito depois vi o filme de cabo a rabo e só aí percebi de onde vinha esse rasgão que durante tanto tempo me dilacerou a fantasia. Essa imagem, vista hoje, guarda muito pouco do que me marcou. É até cómica pela sua caricaturalidade. Mas em pequeno a ironia passa-nos ao lado. Essa imagem é a de um menino gorducho a ser interrogado por um bando de malfeitores. Só que… Esse menino gorducho está com a mão dentro de um copo triturador e, sempre que as suas respostas não agradam aos rufias, as cabeças dos dedos aproximam-se das lâminas rotativas. Esta imagem da mão gordinha e de pela fina prestes a ser estraçalhada por uma picadora assombrou-me durante anos. Vinha-me, como flashes, nos mais improváveis momentos. Revisto o filme, percebo-o como uma fantasia juvenil muito cativante e até doce. Mas essa sequência, vista sem contexto, numa qualquer noite de verão, com os irmãos ou os primos mais velhos, cravou-se-me em brasa e deixou marca. Obrigado Richard Donner por isso, seu grandessíssimo filho da puta.
Ricardo Vieira Lisboa