Rien ne rend l’esprit étroit et jaloux comme l’habitude de faire une collection.
Stendhal
Terceiro “conto moral” realizado por Éric Rohmer, La Collectionneuse (A Colecionadora, 1967) deveria ter sido o quarto filme da série de seis. Este detalhe pode parecer de pouco interesse, mas na verdade trata-se de um momento decisivo para o arranque da carreira do até então crítico de cinema, nomeadamente nos Cahiers du Cinéma (que abandona em 1963). Com efeito, após as curtas-metragens La Boulangère de Monceau e La Carrière de Suzanne realizadas no início dos anos 1960, Rohmer tem dificuldades em obter financiamento para Ma nuit chez Maud (1969, com Jean-Louis Trintignant). À data, a sua produtora Les Films du Losange, fundada em 1962 em parceria com Barbet Schroeder, não lhe permite ainda desenvolver os seus projetos com total independência financeira.
Impaciente por filmar, com vários potenciais argumentos “na gaveta”, Rohmer decide adaptar aos tempos que correm um texto que havia escrito em 1949. Para isso, reúne uma equipa e um elenco reduzidos (muitos deles ligados ao coletivo Zanzibar, do qual fazem parte, entre outros, os cineastas Philippe Garrel e Pierre Clémenti) e instala-se numa villa em Saint-Tropez. Ainda antes das rodagens, Rohmer trabalha longamente os diálogos com os atores, assimilando a personalidade e a linguagem destes e procurando escrever papéis que sejam próximos da realidade.
O ano é 1966, mas já se fazem sentir os ventos revoltos de 1968. Os movimentos hippie e de liberação sexual desenham-se no horizonte do estilo de vida de uma certa camada da juventude burguesa que se diz inconformada com a sociedade, mas se entrega sem remorsos aos prazeres mornos e moles do Verão no Sul da França. A pacífica estadia de dois dândis, o estetaAdrien (Patrick Bauchau) e o pintor Daniel (Daniel Pommereulle), na casa de férias de um amigo comum é perturbada pela presença de uma desconhecida (Haydée Politoff), que a cada noite traz um parceiro diferente para o seu quarto. O modo de vida da jovem Haydée incomoda os seus companheiros de casa, que rapidamente a catalogam de “colecionadora de homens” e estipulam que, apesar de atraente, com os seus cabelos curtos, pernas longas e lábios carnudos, não pode ser considerada bela, pois falta-lhe pureza.
Esta e outras reflexões sobre o valor do belo na arte e na vida servem de pretexto para o desenrolar de uma miríade de jogos de sedução e de manipulação aos quais Haydée parece manter-se imune. Só a narração em voz off de Adrien, solilóquio prolixo à maneira de um diário de bordo, vem romper o seu “estado de graça” e parasitar as paisagens idílicas em torno das praias de Saint-Tropez. A pouco e pouco, instala-se, em pano de fundo da ociosidade veraneante das personagens, uma dinâmica de triângulo “amoroso”, que não deixa de ser profundamente irónica: na verdade, os dois amigos sentem-se atraídos por Haydée e querem possuí-la, mas sabem que ao fazê-lo acabarão por integrar a sua coleção de amantes.
Apesar da intriga digna de uma comédia romântica, La Collectionneuse revela-se um filme contemplativo, marcado por um ritmo lento e lânguido, apimentado pelos aforismos sagazes típicos da escrita à la Rohmer.
O cineasta já então assume a sua vontade de filmar a palavra, de deixar cada ator falar à sua maneira e de fazer dos diálogos prosaicos a matéria primordial da mise en scène, ao invés de um mero complemento das ações. É também o seu primeiro filme a cores, inaugurando o estilo visual ameno e luminoso, as paletas cromáticas cuidadosamente trabalhadas e a sensibilidade eminentemente tátil das suas ficções subsequentes sob o signo do sol, como Le Genou de Claire (1970), Pauline à la plage (1983), Le Rayon vert (1986) e Conte d’été (1996). Trata-se, com efeito, da primeira colaboração de Rohmer com o diretor de fotografia espanhol Néstor Almendros, mais tarde conhecido pelo seu trabalho em vários filmes de François Truffaut, Barbet Schroeder e, sobretudo, Days of Heaven (1978) de Terrence Malick.
Numa entrevista de 1977 para a série documental Parlons Cinéma, Rohmer explica que todos os filmes da série Contos morais foram concebidos como variações sobre um mesmo tema, que resume da seguinte forma: “Um rapaz procura uma rapariga, encontra outra, com quem passa o tempo do filme; e mesmo no fim, reencontra a primeira e apercebe-se que afinal de contas era ela quem ele amava.” O génio de Rohmer reside na maneira como coloca as suas personagens numa situação de port-à-faux ou de desequilíbrio perante o espectador: “Em todos os Contos Morais, explica o cineasta, é evidente que a pessoa que interessa ao espectador não é aquela que será escolhida, mas a que preenche o filme e que no final será abandonada”. La Collectionneuse não foge à regra: Rohmer constrói a narrativa de tal modo que o espectador vai desde logo simpatizar com Haydée (de quem na verdade sabemos muito pouco) e desprezar profundamente os dois homens, sobretudo Adrien, que desempenha o papel de narrador.
O filme começa por três prólogos que introduzem cada uma das personagens bem como os principais temas a elas associados: voyeurismo, dandismo, hipocrisia. A primeira destas sequências oferece-nos em contemplação o corpo bronzeado de Haydée que passeia em biquini à beira-mar; a câmara de Rohmer filma-a de maneira sensual e deleita-se nos detalhes, antecipando o desejo que os outros personagens vão sentir por ela. Mas a manifestação desse desejo começa por ser reprimida: a notícia da presença de Haydée na casa de férias é recebida por Adrien como uma potencial fonte de problemas, que o leva a ignorá-la ao máximo. Assim, durante os primeiros vinte minutos do filme, mal a vemos, ainda que os seus comportamentos e aventuras de uma noite sejam minuciosamente escrutinados pelos dois amigos.
Será preciso que Adrien se decida a ver realmentea jovem com quem coabita para que ela passe a ter uma presença efetiva no ecrã e um papel de agente na dinâmica do trio. Como Adrien continua a dissimular a atração que sente por ela, criticando de maneira bastante cruel o seu aspeto físico e as suas atitudes, é com Daniel que Haydée vai acabar por se envolver; aos olhos do primeiro, essa relação faz indiscutivelmente parte da estratégia da jovem para o conquistar e juntá-lo à sua “coleção”. Na verdade, Adrien resiste aos ciúmes e assiste divertido à degradação do affair entre Daniel e Haydée; a sua cabeça é ocupada por outras preocupações, nomeadamente a visita de um colecionador de arte a quem espera vender um valioso vaso chinês que lhe permitirá financiar a sua própria galeria. Adrien acabará por envolver Haydée nesta “transação”; arrepender-se-á, eventualmente. E sabendo que os anti-heróis rohmerianos acabam sempre por fazer o contrário daquilo que pensam ou dizem, o desfecho inevitável deixa-se adivinhar… Ou não?
La Collectionneuse estreia em março de 1967 e é o primeiro sucesso de Rohmer. O filme não deixa de ser alvo de polémica, sendo proibido aos menores de 18 anos em França por ser considerado um incentivo à promiscuidade da juventude, sobretudo das raparigas. Esta medida pode parecer excessiva, pois a vida sexual das personagens mantém-se em regra geral no fora de campo, apenas sugerida pela sua ausência, à excepção de um plano, discreto mas mordaz, no início do filme: a primeira vez que Adrien vê Haydée, ao entrar inadvertidamente no quarto desta, depara-se com a jovem na cama com um desconhecido; mais tarde, saberemos que também Haydée se deu conta da presença dele naquele momento de intimidade.
Hoje em dia, o comportamento de Haydée já não escandaliza; o que choca é o discurso misógino dos personagens masculinos, que seriam, eles sim, potenciais predadores, se não fossem pateticamente cobardes e pretensiosos. É o próprio Adrien que o assume a dada altura: “Sou mais útil à causa da humanidade sendo preguiçoso do que trabalhando. É preciso ter coragem para não trabalhar”.
“O uso que Rohmer faz das férias de Verão mostra as pessoas numa situação diferente da sua norma; eles escaparam a uma forma de rotina, embora possam cair noutra forma de rotina. As férias são uma versão do regresso à natureza, fugir da sociedade e levar uma vida mais simples. As férias também são uma das poucas ocasiões na vida moderna em que nada de urgente nos pressiona; elas permitem-nos ser indulgentes com a impulsividade” — assim escrevia Jacob Leigh para a revista Senses of Cinema em 2010, ano da morte de Éric Rohmer aos 90 anos. Podemos concluir que La Collectionneuse é uma companhia para as noites quentes de Verão; um filme que requer dos espectadores uma certa capacidade de entrega à durée longa do dolce far niente; que poderá por vezes irritar aqueles que não conseguem ver no tom bafiento dos monólogos de Adrien uma fonte de humor lúcido e corrosivo, mas que promete recompensar-nos com a frescura e o charme infalíveis de Haydée Politoff no seu primeiro papel para o grande ecrã.
La Collectionneuse foi reposto em sala, em nova cópia digital restaurada, pela distribuidora Leopardo filme. Encontra-se em exibição nos cinema Medeia Espaço Nimas, em Lisboa, e Medeia Teatro Municipal Campo Alegre, no Porto. Passa no TAGV – Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, no dia 26 de Julho, às 21h.