Novas entradas de filmes vistos recentemente, grandes amores e alguns desamores. Ricardo Gross antecipa a estreia de Diários de Otsoga (2021) de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes. Ricardo Vieira Lisboa insurge-se contra o novo filme de Leos Carax, Annette (2021). Daniela Rôla escreveu sobre um dos melhores filmes do ano segundo a generalidade dos walshianos, First Cow (A Primeira Vaca da América, 2019) de Kelly Reichardt. Carlos Natálio desconstruiu as supostas maravilhas do “documentário do ano” Notturno (Nocturno, 2020) de Gianfranco Rosi.
Bem Bom (2021), de Patrícia Sequeira, tem os ingredientes certos para envolver o espectador. Qualquer pessoa que tenha vivido o início dos anos 80 e a revolução Doce no panorama musical e mesmo social português, facilmente se deixará cativar pela onda envolvente revivalista. O processo de gestação do grupo – as roupas de José Carlos, a pop perfeita e inebriante, feita de letras simples e geniais (e marotas), saídas da cabeça de Tozé Brito – é feito de um misto de entusiasmo e hesitação, que por vezes resulta em alguns dos melhores e mais cómicos momentos do filme. Era a pedrada no charco, o poder da imagem e o poder da canção pop, num país de cantautores, de rock titubeante e de Marias Guinot. Aliás, o filme está consciente disso mesmo, deixando as canções correrem generosamente, num convite ao sing along. Pena é que, a dada altura, o filme deixe de confiar no público, cedendo à tentação de esfregar a “mensagem” na sua cara, colocando na boca de uma personagem o discurso que já estava subentendido, e acabando por poluir o filme com alguns tiques anacrónicos (que, na verdade, rimam com alguns deslizes na reconstituição de época ao nível do décor), ao que se junta o acentuar de uma certa inconsistência do argumento na parte final do filme. Inevitável a comparação com o também recente Variações (2019), ficando Bem Bom uns quantos furos abaixo do filme de João Maia.
Daniela Rôla, 23 de Julho
Em O Último Banho (2020), de David Bonneville, encontramos três personagens em estágios diferentes de descoberta e redescoberta do desejo. Josefina (Anabela Moreira), que está na iminência de professar os votos perpétuos, é chamada de volta à sua casa paterna e a um mundo que, adivinha-se, pretendeu rejeitar. Na profissão de votos há um lado de mentira para si mesma que ela própria vai sendo forçada a reconhecer. Forçada a tomar conta do sobrinho de 15 anos, privado da mãe, que o abandonou, e do avô, que acabou de morrer e que assegurava a sua guarda, Josefina faz o caminho da redescoberta do desejo, enquanto o sobrinho está em plena descoberta do corpo e mundo feminino. A mãe ausente acaba por regressar, num momento em que a sua presença se torna já supérflua ou mesmo inoportuna, ela que se encontra chegada a uma podridão do desejo, procurando apenas o consolo suficiente que a salve do pânico da solidão e da noite. Se a figura da “freira com dúvidas” é um clássico do cinema, não o será menos o desejo feminino como condenação ao padecimento. A falta de resolução do filme acaba, pois, por funcionar em seu favor, afirmando a inexistência de respostas como uma resposta em si.
Daniela Rôla, 23 de Julho
Longe vão os tempos em que os filmes de super-heróis pareciam falar mais do que é ser-se humano do que o que é ser-se super-herói, almejando transcender o seu, na altura, incipiente género. Não mais as crises existenciais e dilemas éticos de um rapaz de bom coração [Spider-Man 2 (Homem-Aranha 2) de Sam Raimi] ou o psicodrama de conflitos edipianos sob radiação gama [Hulk (2003) de Ang Lee]. Há anos que os filmes baseados nas personagens da Marvel, excluindo algumas produções da Sony ou da Fox [o neo-western eastwoodiano de mutantes que era Logan (2017) ou a autêntica trip psicadélica que foi Spider Man: Into the Spider-Verse (2018)], passaram a ser indistintos, anónimos, genéricos e previsíveis. Demasiado humor auto-referencial, demasiada conversa de super-herói, demasiada auto-promoção indirecta ao seu infindável “universo” de sequelas, prequelas e midquelas. E o cinema? Nem vê-lo, nem sequer nas cenas de combate e perseguição, onde o CGI bafiento e os múltiplos cortes anulam o esplendor coreográfico e efeito da fisicalidade de que o melhor cinema de acção americano recente ainda é capaz [veja-se a saga John Wick ou o recente Nobody (Ninguém, 2021)]. Sem pingo de imaginação visual ou economia narrativa, com episódios 2 a 3 horas cada, remetendo insistentemente para os anteriores e fazendo das últimas cenas ganchos para os sucedâneos, o Marvel Cinematic Universe é a mais chata (e cara) série de TV do mundo.
Black Widow (Viúva Negra, 2021) tem todos os defeitos atrás enumerados e mais alguns, enveredando em pseudo-dramas familiares apressados e subdesenvolvidos a tentarem delinear uma falsa densidade psicológica e vulnerabilidade emocional na personagem homónima. Mas se a psicologia é de pacotilha, que dizer da subserviência ao discurso “metoorizado” contemporâneo? Olhe-se para o vilão, um business man de meia-idade, feio, anafado e com uma posição tirânica de poder, aproveitando-se da indefensabilidade de jovens raparigas para manipulá-las a seu bel-prazer e satisfazer a sua vontade perversa. Como o filme demonstrará, é uma questão de tempo até estas jovens, agora feitas mulheres adultas e experientes, derrubarem o império patriarcal do vilão machista, unindo-se em grande espírito de sororidade após a protagonista dar o exemplo (pense-se em Weinstein ou Roger Ailes e compreende-se a evidente impostura que há naquele disclaimer final a afirmar que “quaisquer semelhanças com pessoas ou eventos reais não são intencionais”). E quando os homens não são estes tiranos misóginos subjugadores do sexo oposto, o retrato também não sai positivo: veja-se o Soldado Vermelho e a forma manifestamente bronca como é representado. Quando não está, portanto, a tentar dar o expectável à sua legião de fãs pré-estabelecida, Black Widow revela ser um produto cinematográfico totalmente obnóxio aos movimentos sociais actuais. Isto é, como se não bastasse ser o filme menos interessante actualmente em sala, tinha que também ser o mais oportunista.
Duarte Mata, 17 de Julho
É muito significativo que um filme como The Man Who Sold His Skin tenha estreado na Competição Oficial do Festival de Veneza, tenha percorrido com algum sucesso o dito circuito dos festivais, tenha sido nomeado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e tenha, mais conseguido distribuição comercial nas salas portuguesas (em tempos da Covid, com salas fechadas e de capacidade reduzidas). Significativo do desprestígio de um dos certames anteriormente tidos como definidores das tendências estéticas do cinema de autor. Significativo também do efeito de replicação que pauta a programação da maioria dos festivais. Significativo da nulidade dos Oscars (que, subitamente, a intelligentsia do cinema de autor nacional quis louvar quando pareceu haver um lampejo de oportunidade para o filme do Pedro Costa). E, mais lamentável, significativo do descrédito (e da falta de critério) dos distribuídos “independentes” da nossa praça.
The Man Who Sold His Skin virá a ser, estou em crer, um caso de estudo de como “o tema”/”o assunto” dominou todo e qualquer olhar sobre cinema. “É um filme de permite uma boa discussão”, dir-me-ão. Certo, mas não será, certamente, uma discussão sobre cinema. Será, isso sim, uma discussão sobre uma telenovela moralista, espertalhona, filmada com as unhas dos pés, a tentar capitalizar do efeito (e do sucesso) do cinema “provocatório” de Ruben Östlund, em particular o multi-galardoado The Square (O Quadrado, 2017). O que fica é uma caricatura lamentável (e quase impossível de ver até ao fim sem que o vómito venha à boca ou a raiva turve a vista) do “perigoso” e “preservo” mundo da arte. Cada personagem é um boneco rasteiro e ridículo, os seus dramas dão vontade de rir (para não chorar), e tudo se compõe em gastas e vulgares oposições entre o refugiado angelical e o mefistofélico artista. Tudo tem que ser muito claro, muito óbvio, muito direto, sem sombra de pecado, para que o espectador reflicta como deve ser sobre os “temas” que “realmente” importam. Não vá alguém ficar na dúvida sobre o que quer que seja. Aqui tudo é passadinho, sem fibras e sem espinhas (dorsais), bom para chupar por uma palhinha de bambu ou mamar por uma tetinha impecavelmente desinfetada e aromatizada com valeriana.
Ricardo Vieira Lisboa, 7 de julho
Entrada directa de Luca (2021) para a caixa de filmes menores do catálogo da Pixar. Não arrisca, não inova, não faz mais do que entregar, justamente e apenas, o que as aparências parecem prometer: escapismo fácil para os mais novos. O que, vindo do grande estúdio de animação, é uma desilusão. Falta-lhe a ressonância emocional e a dimensão alegórica (certo, toca-se um pouco na intolerância e no medo da “diferença”, o que pode suscitar leituras de género, raciais e religiosas, mas fica-se tanto pela superfície que qualquer esforço se revela indigno) que enaltecem os clássicos do estúdio para um patamar memorável demonstrativo da enorme maturidade que o cinema “para crianças” pode acarretar. Mas Luca não é só um filme infantil, é também um filme infantilizado, tal como tantos filmes com adultos do mainstream actual o são: previsível, simplista, raso. O facto de dissimular esta sua infantilidade pela colocação esporádica de cartazes decorativos de dois ou três filmes italianos [La Strada (A Estrada, 1954)] ou passados em Itália [Roman Holiday (Férias em Roma, 1953)] é a estratégia corriqueira de tanto cinema de animação contemporâneo descartável, onde se envereda por esporádicas “piscadelas de olho” aos adultos com receio de que, sem elas, estes se aborreçam, meras massagens ao ego cinéfilo do espectador crescido com o intuito de este ganhar simpatia pelo objecto cinematográfico. O que é, francamente, mais uma prova do desespero criativo que percorre o filme inteiro.
Poder-se-á argumentar a presença de resquícios da fórmula da Pixar a querer funcionar na forma como explora o poder transformativo da amizade entre duas (ou, neste caso, três) personagens de personalidades distintas. No entanto, aqui, essa transformação parece afectar mais as personagens ao redor das do núcleo principal do que elas próprias. São os monstros marinhos que perdem o medo dos humanos, assim como os humanos que perdem o medo dos monstros marinhos, e nasce a dúvida se alguma das personagens centrais aprendeu, de facto, algo ou se o filme se limitou a dar-lhes razão desde o começo. Sem essa aprendizagem a ocupar o centro, Luca está muito aquém de ter a força, impacto e robustez que caracterizam os seus melhores antecessores no estúdio. Quanto ao facto de o realizador afirmar que o seu filme é “uma homenagem a Fellini”: se é para confundirmos ambições com resultados, então eu sou o personal shopper de lingerie da Monica Bellucci.
Duarte Mata, 30 de Junho