Novas entradas de filmes vistos recentemente, pouca coisa de entusiasmo. Carlos Natálio desconstruiu as supostas maravilhas do “documentário do ano” Notturno (Nocturno, 2020) de Gianfranco Rosi e escreve comprimidos pouco entusiasmados sobre The Conjuring: The Devil Made Me Do It (The Conjuring 3 – A Obra do Diabo, 2021) de Michael Chaves e Synchronic (Sincrónico, 2019) de Justin Benson e Aaron Moorhead, apesar da inventividade de In the Heights (Ao Ritmo de Washington Heights, 2021) de Jon M. Chu. Duarte Mata também não gostou de Luca (2021) de Enrico Casarosa da Pixar e muito menos Ricardo Vieira Lisboa apreciou The Man Who Sold His Skin (O Homem Que Vendeu a Sua Pele, 2020) de Kaouther Ben Hania.
É muito significativo que um filme como The Man Who Sold His Skin tenha estreado na Competição Oficial do Festival de Veneza, tenha percorrido com algum sucesso o dito circuito dos festivais, tenha sido nomeado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e tenha, mais conseguido distribuição comercial nas salas portuguesas (em tempos da Covid, com salas fechadas e de capacidade reduzidas). Significativo do desprestígio de um dos certames anteriormente tidos como definidores das tendências estéticas do cinema de autor. Significativo também do efeito de replicação que pauta a programação da maioria dos festivais. Significativo da nulidade dos Oscars (que, subitamente, a intelligentsia do cinema de autor nacional quis louvar quando pareceu haver um lampejo de oportunidade para o filme do Pedro Costa). E, mais lamentável, significativo do descrédito (e da falta de critério) dos distribuídos “independentes” da nossa praça.
The Man Who Sold His Skin virá a ser, estou em crer, um caso de estudo de como “o tema”/”o assunto” dominou todo e qualquer olhar sobre cinema. “É um filme de permite uma boa discussão”, dir-me-ão. Certo, mas não será, certamente, uma discussão sobre cinema. Será, isso sim, uma discussão sobre uma telenovela moralista, espertalhona, filmada com as unhas dos pés, a tentar capitalizar do efeito (e do sucesso) do cinema “provocatório” de Ruben Östlund, em particular o multi-galardoado The Square (O Quadrado, 2017). O que fica é uma caricatura lamentável (e quase impossível de ver até ao fim sem que o vómito venha à boca ou a raiva turve a vista) do “perigoso” e “preservo” mundo da arte. Cada personagem é um boneco rasteiro e ridículo, os seus dramas dão vontade de rir (para não chorar), e tudo se compõe em gastas e vulgares oposições entre o refugiado angelical e o mefistofélico artista. Tudo tem que ser muito claro, muito óbvio, muito direto, sem sombra de pecado, para que o espectador reflicta como deve ser sobre os “temas” que “realmente” importam. Não vá alguém ficar na dúvida sobre o que quer que seja. Aqui tudo é passadinho, sem fibras e sem espinhas (dorsais), bom para chupar por uma palhinha de bambu ou mamar por uma tetinha impecavelmente desinfetada e aromatizada com valeriana.
Ricardo Vieira Lisboa, 7 de julho
Entrada directa de Luca (2021) para a caixa de filmes menores do catálogo da Pixar. Não arrisca, não inova, não faz mais do que entregar, justamente e apenas, o que as aparências parecem prometer: escapismo fácil para os mais novos. O que, vindo do grande estúdio de animação, é uma desilusão. Falta-lhe a ressonância emocional e a dimensão alegórica (certo, toca-se um pouco na intolerância e no medo da “diferença”, o que pode suscitar leituras de género, raciais e religiosas, mas fica-se tanto pela superfície que qualquer esforço se revela indigno) que enaltecem os clássicos do estúdio para um patamar memorável demonstrativo da enorme maturidade que o cinema “para crianças” pode acarretar. Mas Luca não é só um filme infantil, é também um filme infantilizado, tal como tantos filmes com adultos do mainstream actual o são: previsível, simplista, raso. O facto de dissimular esta sua infantilidade pela colocação esporádica de cartazes decorativos de dois ou três filmes italianos [La Strada (A Estrada, 1954)] ou passados em Itália [Roman Holiday (Férias em Roma, 1953)] é a estratégia corriqueira de tanto cinema de animação contemporâneo descartável, onde se envereda por esporádicas “piscadelas de olho” aos adultos com receio de que, sem elas, estes se aborreçam, meras massagens ao ego cinéfilo do espectador crescido com o intuito de este ganhar simpatia pelo objecto cinematográfico. O que é, francamente, mais uma prova do desespero criativo que percorre o filme inteiro.
Poder-se-á argumentar a presença de resquícios da fórmula da Pixar a querer funcionar na forma como explora o poder transformativo da amizade entre duas (ou, neste caso, três) personagens de personalidades distintas. No entanto, aqui, essa transformação parece afectar mais as personagens ao redor das do núcleo principal do que elas próprias. São os monstros marinhos que perdem o medo dos humanos, assim como os humanos que perdem o medo dos monstros marinhos, e nasce a dúvida se alguma das personagens centrais aprendeu, de facto, algo ou se o filme se limitou a dar-lhes razão desde o começo. Sem essa aprendizagem a ocupar o centro, Luca está muito aquém de ter a força, impacto e robustez que caracterizam os seus melhores antecessores no estúdio. Quanto ao facto de o realizador afirmar que o seu filme é “uma homenagem a Fellini”: se é para confundirmos ambições com resultados, então eu sou o personal shopper de lingerie da Monica Bellucci.
Duarte Mata, 30 de Junho
Esta adaptação ao cinema do musical da Broadway esteve mais de dez anos em águas de bacalhau até que depois de realizada por Jon M. Chu, a estreia acabou por ser adiada devido à Covid19. Isso é relevante pelo facto de o vermos agora, Verão de 2021, com essa carga de primeiro filme comercial pós-confinamento, celebrando o calor, a vida nas ruas, o toque, a água a cair sobre os corpos suados. O musical procura abordar as vidas difíceis da maioria de imigrantes de origem latina (sobretudo dominicana) no bairro de Washington Heights, em Nova Iorque. Ao contrário do detalhe e da fina psicologia de, por exemplo, “The Brief Wondrous Life of Oscar Wao”, do dominicano Junot Díaz, todas estas personagens são um pouco manequins ou cadernos de encargos dessas dificuldades: a rapariga criativa que está presa num trabalho que não gosta, a moça que é descriminada na universidade, o rapaz que tem o sonho de voltar ao seu país mas não tem meios para tal.
Ou mesma a metáfora dos powerless (segmento em que o bairro sofre um blackout de energia durante uns dias). Se o filme começa com a história do protagonista Usnavi a ser contada por si às crianças na praia, essa é uma eficaz moldura que vai modelando o próprio protótipo do “espectador-criança” do filme. Contudo, Chu é um audaz experimentador: há algo de Bollywood e de Busby Berkeley. Como se o filme oscilasse entre a lógica videoclipe da pior MTV, com o calor de Brooklyn de Spike Lee e Do the Right Thing (Não Dês Bronca, 1989). Se conseguirmos enxotar para o lado de trás da mente este lado pop, mesmo Disney, de uma ambição activista algo precipitada e ready made, podemos entrar no movimento e na vontade de Chu nos fazer dançar na fachada de edifícios, para além da gravidade. Xô vírus.
Carlos Natálio, 19 de Junho
Se pensar naquilo que nos faz rever vezes sem conta filmes como Halloween (Regresso do Mal, 1978) ou Suspiria (Suspiria, 1877), clássicos do terror, penso numa justa medida entre a construção de um imaginário (não confundir com enredo) e a constituição de motivos visuais e ideias de realização – uma “estória” da câmara que reforça, aumenta ou contraria a primeira. O olho platónico tem tendência a fechar-se diante da técnica em ataque cego a uma suposta “magreza” dramática do género. Fazer crítica assim é como tentar caçar moscas com um martelo. Mas com The Conjuring: The Devil Made Me Do It (The Conjuring 3 – A Obra do Diabo, 2021) nem é preciso chamar a forma e a senhora Sontag à colação. James Wan passou a batuta a Michael Chaves, no terceiro volume da série – que vem capitalizando ainda os despojos do velhinho The Exorcist (O Exorcista, 1973) – e a coisa descambou.
O filme, baseado num caso verídico em que pela primeira vez num tribunal a defesa alegou que o réu estava possuído pelo demónio quando cometeu homicídio, procura sair um bocadinho, não muito, da lógica da casa assombrada. Voltam Patrick Wilson e Vera Farmiga, tentando refazer momentos memoráveis (“rentáveis”) dos filmes anteriores, mas aqui cada vez mais em modo Mulder e Scully num episódio estendido da famosa série televisiva. Chaves ilustra esses momentos de susto, possessão, intriga, violência extrema, sem conseguir dar nada de realmente seu: temos planos do martelo de Wilson (pun intended) a raspar no solo, temos desfoques da imagem nos momentos das visões de Farmiga, suportamos o slow motion ou as acelerações para os cheap thrills, bocejamos com as aparições dos corpos grotescos de Romero, e rimos com a freira que agora é apenas uma senhora muito magra e bizarra. A diferença entre Wan e Chaves é a mesma que podemos encontrar entre um Edgar Allan Poe de pena em riste e a escrita automática do Google a que recorre um aluno erasmus à rasca com um trabalho de fim de semestre.
Carlos Natálio, 19 de Junho
Já que é suposto falarmos de sincronias, o último filme da dupla Justin Benson e Aaron Moorhead é um bom exemplo de uma das dessincronias mais enervantes no cinema popular de acção/ficção científica. A tendência para a explicação que acaba por aplainar o território daquilo que se construiu. Neste caso estamos na premissa de prisões no tempo – como se estivéssemos a ver ainda The Endless (O Interminável, 2017), mas do lado de fora do loop. No entanto, ao contrário deste, que nos mantinha “presos” (sincronizados) até aos últimos instantes, aqui, o seu protagonista Steve (Anthony Mackie), quando descobre o que de estranho se está a passar, filma-se explicando-nos muito bem essa ligação entre o presente e uma droga que encalha as pessoas no passado.
É como uma anedota que há necessidade de explicar a graça. Uma dessincronia que acontece também, por vezes, ao inverso: não uma complexidade simplificada, mas uma simplicidade complexificada. Uma straight story cheia de detritos narrativos que a tornam falsamente obesa, uma obesidade sem drama. É o método noliano, que não deixa, no entanto, de nos aplicar o golpe de mestre: a verdadeira complexidade está na técnica. Em Synchronic (Sincrónico, 2019) o passado irrompe de forma demasiado conveniente – como sketches retirados de Game of Thrones (A Guerra dos Tronos, 2011-2019) -, restando-nos os diálogos sobre o aproveitamento da vida, a amizade, entre os dois paramédicos, num buddy movie vagamente irónico, vagamente depressivo. Por isso, temos mais ciência da ficção e menos ficção da ciência. No caso de Benson e Moorehead isso significa que meteram uma mudança abaixo.
Carlos Natálio, 11 de Junho