A cultura dos serial killers é algo que está enraizado no domínio popular da realidade americana, em particular desde o final dos anos 1960, e que o mesmo país tratou de exportar para o mundo inteiro através do cinema e da televisão. Todos sabemos um pouco sobre o assunto, mas o culto obsessivo destas figuras continua a ter lugar sobretudo no país de “origem”. Seria por demais exaustivo estar a enumerar uma lista de filmes sobre serial killers (reais ou ficcionais); opto em vez disso por citar apenas duas referências (em campos distintos) para situar depois o filme The Little Things (As Pequenas Coisas, 2021), de John Lee Hancock em relação a ambas. Assim, em 1995, tivemos o filme Se7en (Seven – 7 Pecados Mortais) de David Fincher – talvez o primeiro nome da indústria do audiovisual que nos vem à cabeça sobre este tema; ele que faria ainda Zodiac (2007) e seria um dos principais produtores da série Mindhunter (Caçador de Mentes, 2017-2019) –; e já no século seguinte a série televisiva de Nic Pizzolatto, True Detective (2014-2019).
O filme de Fincher teve uma repercussão gigantesca., fruto da exuberância plástica de cada local do crime, que mais pareciam instalações de arte; da sua estrutura narrativa muito determinada pela descoberta de um novo cadáver, todos eles relacionados com os sete pecados capitais; junto com o final marcado por um niilismo vitorioso e escarnecedor que dificilmente passaria hoje pelo crivo dos grandes estúdios e das suas projecções de teste: todos estes elementos apontando para a natureza de tese visual apocalíptica sobre a matéria. Quanto a True Detective, o relevo é dado sobretudo à caracterização da dupla de detectives, das suas vidas privadas e profissionais, e da natureza nada espectacular do trabalho diário que têm de fazer, onde se acumulam frustrações de vária ordem, também decorrentes da natureza obsessiva que se apodera daqueles que procuram perceber e pôr fim ao comportamento também obsessivo que conduz à patologia do homicídio em série.
John Lee Hancock prefere tratar das zonas cinzentas em exclusivo. Daquilo que não tem solução e que corrói por dentro aqueles que se ocupam do trabalho policial pesado.
The Little Things participa mais da atmosfera de claustrofobia rotineira sujeita à pressão para que se obtenham resultados, do trabalho maioritariamente inconclusivo que é preciso desenvolver para chegar à resolução dos crimes mais sórdidos; juntando-lhe o mote do protagonista, Joe ‘Deke’ Deacon (Denzel Washington), que a propósito das investigações que ficaram sem solução diz que do passado se faz futuro, se faz passado, se faz futuro, como se cada nova morte abrisse a porta por onde entram os casos idênticos sem um culpado encontrado. Deacon sabe bem do que fala. Outrora detective em Los Angeles, que abandonou na sequência de um conjunto de crimes que ficaram por resolver, e que lhe custaram o casamento, a proximidade das filhas, e um bypass coronário, encontramo-lo nas suas rondas de delegado do xerife da “santa terrinha”, que uma deslocação de volta a L.A. para a recuperação de um elemento de prova sem mais, o irá ver mergulhado em nova investigação do rapto e homicídio de seis mulheres que poderá ter ligação ao episódio traumático de cinco anos antes.
Joe Deacon é um derrotado que busca o acerto de contas que permita dar um sentido minimamente redentor a tudo o que o trabalho de investigador compulsivo e minucioso lhe tirou. Ele tem culpas no cartório; culpas que os colegas mais chegados ajudaram a ocultar (um homicídio involuntário de uma das vítimas em cativeiro). E como naquela canção dos Steely Dan sobre sonhos perdidos alguém diz: “They got a name for the winners in the world/ I want a name when I lose/ They call Alabama the Crimson Tide/ Call me Deacon Blues” (Deacon Blues, álbum Aja de 1977). Julgo que a falta de entusiasmo que caracterizou a recepção a este filme de John Lee Hancock se explica com a frustração do espectador face à natureza inconclusiva do mesmo. Em se tratando de Denzel Washington, a expectativa de uma conduta de heroísmo coroada com um sentido de fecho no final, seria expectável. Mas esse também seria já o nosso filme, coisa que The Little Things definitivamente não é. John Lee Hancock prefere tratar das zonas cinzentas em exclusivo. Daquilo que não tem solução e que corrói por dentro aqueles que se ocupam do trabalho policial pesado. Mais cedo ou mais tarde, os “blues” de Joe Deacon se estenderão a todos os outros. É assim que encontraremos o seu parceiro Jim Baxter (Rami Malek), no final, derrotado ele também, mas com a mulher e as filhas por perto, e nas mãos um bilhete de Joe Deacon que diz “no angels”, e um objecto que lhe poderá trazer a reparação que Deacon há muito desistira de alcançar.
N.E.: A estreia comercial de The Little Things estava agendada para o passado mês de Janeiro nas salas da Nos Audiovisuais (a distribuidora nacional do filme), tendo sido um dos títulos que, devido ao segundo confinamento, viram o seu percurso no grande écran quartado. Ao contrário de outros países, onde foi disponibilizado na plataforma de streaming HBO Max, em paralelo com uma passagem pelas salas, em Portugal o filme foi colocado nos Videoclubes das operadores da internet, sem qualquer tipo de divulgação.