Espero uma chegada, um regresso, um sinal prometido. Pode ser fútil ou terrivelmente patético: em Erwartung (Espera), uma mulher espera o amante, de noite, na floresta; eu não espero senão um toque do telefone, mas a angústia é a mesma. Tudo é solene: não tenho o sentido das proporções.
Roland Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso
Um poema deixo, ao retardador:
Meia palavra a bom entendedor.
Luíza Neto Jorge, em A Lume
Quando foi publicada a primeira destas crónicas, anunciava-se para breve nas salas portuguesas a exibição comercial de The Human Voice (A Voz Humana, 2020) de Pedro Almodóvar. Tal não veio a acontecer assim. E, se bem que nessa altura o filme tenha podido ser visto, em antestreia, durante o LEFFEST’20, esse adiamento da exibição comercial ditou um ordenamento diferente dos temas abordados nas crónicas seguintes e remeteu para o fim o que estivera para ser um motivo condutor, isto é, o remake visto, nomeadamente, enquanto retoma de um motivo, eventualmente abandonado. Com essa exibição em sala a acontecer na semana em que esta série de crónicas se encerra, será também tempo de Se confiando um espectador ensaiar uma saída.
O objecto da retoma é, em primeira instância, a peça teatral em um acto, La Voix humaine, escrita em 1927 por Jean Cocteau, que teve a sua primeira representação no Théâtre de la Comédie-Française a 17 de Fevereiro de 1930, interpretada por Berthe Bovy. Pondo em cena uma mulher que, sozinha no seu quarto, presa ao telefone, não consegue desligar-se do amante que está em vias de a abandonar, e obstinada se esvai num “monólogo a duas vozes”, se bem que a voz do outro lado do fio nunca chegue a ser ouvida pelo espectador, adia desfazer o engano, seja ele a falsa verdade do abandono do amante, seja a ocultação do seu próprio estado de desespero, ou a ilusão propiciada pelo sonho, entregando-se à “solidão dos seres que se devoram a si-mesmos sem conseguirem sequer tocar-se”.
Fruto do encontro de Jean Cocteau com Roberto Rossellini, em fins de 1946 em Paris, e da profunda e recíproca estima que nutriam pelas obras anteriormente realizadas por cada um, a que se juntou a presença de Anna Magnani e o seu desejo de representar a peça de Cocteau, será Roberto Rossellini a levar a cabo, na primavera de 1947, a variação poética procurada por Cocteau na expressão cinematográfica, com uma nova forma de que a realização rosselliniana de La Voix humaine é, para usar palavras suas, a demonstração de que “houve uma época do cinema americano, uma do cinema soviético, mas presentemente é a Itália a gozar do estado de graça, dado que os italianos sofreram demasiado, mas é no sofrimento que o encontro se dá. Coube a Anna Magnani a revelação da dor no filme que rodámos dirigido por Rossellini” [1], sob o título de Una Voce umana.
A prática do transplante de um motivo menor num filme para florescer e se desenvolver numa obra posterior é algo bem conhecido de Pedro Almodóvar.
Em homenagem à arte dramática de Anna Magnani, “única e admirável intérprete” desta versão cinematográfica, segundo as palavras de Cocteau, Rossellini converteu esta sua “Uma voz humana” na primeira parte do filme que circulou com o título de L’Amore (O Amor, 1948), cuja segunda parte rodada na Itália, também com Anna Magnani, se intitulou “O Milagre”.
Mais do que aferir a fidelidade da versão cinematográfica de Rossellini à peça de Cocteau, será talvez de relevar o facto da sua opção por uma estrutura constituída por seis partes ― sendo três delas dedicadas à “espera” e três ocupadas pelas “chamadas” ― permitir retomar, a um outro nível, a intenção do dramaturgo segundo a qual caberia à intérprete desempenhar “dois papéis, um enquanto fala, e um outro enquanto escuta, e deste modo caracterizar a personagem invisível, que se exprime por meio de silêncios”, mas que para “representar o homem tal qual ele é”, como era o propósito de Rossellini, se exige um novo realismo, um método inédito, a procura de meios expressivos visando “o indivíduo considerado na sua inteireza, colocado sob o microscópio, examinado até à última, e ainda o estudo do rosto humano, a penetração nas dobras ocultas de uma fisionomia” [2].
A peça tornara-se ao longo dos anos quase um manual de representação dramática e a prova das provas da fibra de uma actriz, constituindo um terreno de experimentação em que as grandes actrizes desejavam demonstrar a sua capacidade, ao expor os mais dolorosos matizes do amor. A versão fílmica de Rossellini elevara a exigência, sobretudo pela utilização, durante as “chamadas”, de grandes planos e muito grandes planos: “No filme trata-se, sem dúvida de uma mulher transtornada, desfeita pela perda definitiva do amante, mas todas as emoções relacionadas com a esfera da dor e da angústia fluem diretamente do corpo e da voz da atriz que, através do controlo impecável da sua representação, lhes dá visibilidade” [3].
Outras versões que, dir-se-ia, pertenceriam a este paradigma, como seja o filme para televisão, The Human Voice (1967), com realização de Ted Kotcheff, tendo como intérprete Ingrid Bergman, ou adaptação livre interpretada por Sophia Loren, Voce Umana (2014), com realização do filho Edoardo Ponti, reservaram para a cenografia uma função diversiva, ao transformar o quarto numa casa burguesa ou então numa mansão senhorial napolitana.
Por sua vez, a versão que Pedro Almodóvar nos oferece com The Human Voice, interpretada por Tilda Swinton, radica na sua vontade expressa de “saltar para o outro lado do décor e mostrar a matéria do artifício”. As razões que motivaram a sua retoma foram explicadas em diversas intervenções sobre o filme: “Esse texto de Cocteau sempre me fascinou, tanto que aparece também no meu filme La ley del deseo (A Lei do Desejo, 1987), numa cena muito breve, e em Mujeres al borde de un ataque de nervios (Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, 1988). Esse telefonema que nunca chega e essa mulher só, acompanhada pelo cão também abandonado, formam uma situação dramática que sempre me interessou”. De igual modo, foi por si bem sublinhada a distância que pretendeu introduzir: “Tive que me apropriar do texto como Rossellini já havia feito com Anna Magnani como intérprete, mas queria fazê-lo de uma forma diferente, quase oposta, em total liberdade em relação a Cocteau. Em suma, queria reescrever o texto como se fosse um duelo. De outro modo não reconhecia esta mulher como contemporânea, necessariamente mais dona de si-mesma. No original há uma excessiva submissão da mulher abandonada, submissão essa que eu quis converter num acto de vingança. Desde o início imaginei o filme como acabou por ser feito, uma narrativa muito afastada do realismo e do naturalismo. O único real que serve de referência ao espectador é a voz” [4].
A prática do transplante de um motivo menor num filme para florescer e se desenvolver numa obra posterior é algo bem conhecido e ainda mais bem executado por Pedro Almodóvar, por exemplo, em Hable com ella (Fala com ela, 2002) e a sua aplicação em A Voz Humana dependeria de seguir a hipótese de ao camarim de teatro suceder o set da representação cinematográfica, pois sabemos também, pela boca do próprio realizador, que o camarim de teatro, em que as mulheres mentem e se confessam se converteu em “sancta sanctorum do universo feminino”. Na origem dessa correspondência estaria o pátio da infância. Espaço vital, em que as mulheres fingiam e mentiam, ocultando e desviando o curso da vida do controlo machista dos homens. Lugar do primeiro espectáculo encenado e visto nos pátios de la Mancha, cujo significado tem para Almodóvar a seguinte expressão e alcance: “três ou quatro mulheres falando significam para mim, a origem da vida, mas também a origem da ficção e da narração” [5].
Contudo, acertado que fosse o lugar da fala, a maior distância em relação a Cocteau/Rossellini derivaria, talvez, da introdução ab initio no set pela mão da protagonista, provindo explicitamente do exterior, de dois objectos destinados a fazer sangue e pegar fogo: o machado e o jerricã.
Segundo Roland Barthes “existe uma cenografia da espera, que eu organizo”, mas há uma determinação que é como “um encantamento: recebi ordem de não me mexer” [6] que a heroína de Almodóvar teima em contrariar e subverte.
Seria, porém, numa outra versão ― uma variação teatral escrita em 1940 por Cocteau para ser interpretada por Édith Piaf no seu “teatro de bolso” e cujos direitos cinematográficos foram depois por ele cedidos, com total confiança e liberdade de adaptação, a Jacques Demy que, em 1957, fez uma curta-metragem com o título de Le Bel indifférent (1958) ― que, talvez, fosse possível encontrar mais correspondências, nomeadamente, no décor que Godard caracteriza como sendo “Piero della Francesca mais Picasso” com “paredes forradas com o sangue do poeta” e no monólogo em que a certa altura se diz: “eu escuto com toda a minha pele como os animais”.
Nos anos vinte, fazendo parte do grupo designado “Os seis”, Jean Cocteau e o compositor Francis Poulenc tornam-se amigos. Em 1959 cabe a Poulenc levar a peça de Cocteau para o teatro musical. A peça é mais uma vez reescrita e converte-se numa ópera lírica para voz solista e pela mão de Poulenc atinge, no entender de Cocteau, a sua fisionomia definitiva, vencendo o último desafio ao integrar palco, palavra e música.
Se às razões para retomar um motivo, se acrescentar o qualificativo de abandonado, a lição a reter incidirá sobre a importância de como tornar-se bom perdedor.
Quando Arnold Schoenberg se aventurou a escrever óperas, começou por uma mini-ópera: “uma prova que já estava a plagiar os seus imitadores quinze antes deles aparecerem”, como ele próprio ironizou. Esse primeiro monodrama foi composto em 1909, mas só teve a sua primeira representação pública em 1924, e chamou-se Erwartung (Espera).
A protagonista deste drama tenso de meia hora é uma mulher sem nome, que vagueia por uma floresta iluminada pela lua, à procura do seu amante que, ao que parece, a traiu. Finalmente, ela encontra o seu corpo manchado de sangue, mas quem o matou, e por que motivo, permanece incerto.
O desafio lançado por Schoenberg parece, sem medida, quando enunciado nos seguintes termos: “Em Erwartung foi meu propósito representar ao retardador tudo quanto pode ocorrer num único segundo da mais intensa emoção espiritual, pelo que a minha obra se estende por meia hora” [7].
Uma área de investigações correntemente designada “Conversas do Berço” veio fazer notar que as crianças pequenas quando conversam com elas mesmas estão a recriar o seu mundo através da releitura e interpretação de experiências fundamentais vertidas nesse sumário condensado do dia. Os seus monólogos podem ajudá-las a dar sentido aos actos do seu dia, desempenhando um papel na formação da memória autobiográfica, tornando esses aspectos da experiência memoráveis. O caso de estudo de Emily Oster, sob a direcção de Katherine Nelson, é um belo exemplo do que cada um pode imaginar ter dito nesses monólogos antes de adormecer.
Num exercício de rebobinagem elementar, que também poderá ser entendida como um jogo ecfrástico em que no princípio era a imagem, a criança recapitula ao fim do dia uma imagem que precariamente se lhe impôs tal como acontece à noite com a persistente cantilena, nessa sessão de reprise, antes de adormecer, num vai-e-vem tão desafiador como o jogo da bobine, atirando para longe uma e outra imagem para depois, com a voz, as puxar de volta.
Imagem puxa palavra, mas “a imagem é peremptória, tem sempre a última palavra”.
Adenda:
Na crónica do mês Março, muito embora eu não tivesse uma resposta para a pergunta deixada por Anna Magnani, sobre quem era o homem da sua recordação do patinador do parque de Nova Iorque, ficou, contudo, por dizer aquilo que Se confinado um espectador acabaria por ter como certeza, indemonstrável, mas justa: nos seus arabescos, sem parar, o que conduzia o patinador ao alvorecer era Morning Circles de Bernardo Sassetti.
[1] Jean Cocteau, Entretiens sur le cinématographe, ed. André Bernard e Claude Gauteur (Paris: Editions du Rocher, 2003).
[2] Roberto Rossellini, Il mio metodo. Scritti e interviste, ed. Adriano Aprà, [1987] (Venezia: Marsilio Editore, 2006), 64–65.
[3] Pierangela Adinolfi, «La voix humaine de Jean Cocteau: dalla pièce al cinema italiano. L’adattamento di Roberto Rossellini», em Intrecci romanzi: Trame e incontri di culture, ed. Orietta Abbati (Torino: Nuova Trauben editrice, 2016), 44.
[4] Pedro Almodóvar, Entrevista a Pedro Almodóvar por David Noriega e Clara Morales, elDiario.es, 19 de Outubro de 2020.
[5] Cf. José Bogalheiro, Empatia e Alteridade: A Figuração Cinematográfica como Jogo (Lisboa: Sistema Solar / Documenta, 2014), 441–42.
[6] Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, trad. Isabel Pascoal, vol. Obras de Roland Barthes-1, [1977] (Lisboa: Edições 70, 2006), 131–32.
[7] Arnold Schoenberg, Le Style et l’Idée, ed. Léonard Stein (Paris: Éditons Buchet/Chastel, 1977), 87.