La passion reste en suspens dans le monde, prête à traverser les gens qui veulent bien se laisser traverser par elle.
Marguerite Duras, L’Amant
Em 1979, numa entrevista para a emissão “Le Cinéma des cinéastes” da rádio France Culture, o cineasta francês Claude Lelouch disse considerar-se um “bricoleur” ou “reparador”, não só de objetos danificados, mas também de pessoas com feridas por sarar. Apresentando-se como um otimista inveterado, Lelouch explica que filmar é a sua maneira de “concertar” as pessoas, de procurar soluções para os dramas da vida e, deste modo, mostrar aos espectadores que as coisas podem melhorar. Na mesma entrevista, Lelouch sugere ainda que a razão pela qual muitos consideram o seu cinema desinteressante ou mesmo “irritante” diz menos respeito à qualidade dos filmes do que à incompatibilidade entre o seu otimismo e a tendência depressiva que caracteriza o cinema “intelectual” da época — algo que nunca perdoará aos cineastas da sua geração, nomeadamente Jean-Luc Godard, que acusa de ter matado a Nouvelle Vague imediatamente após tê-la criado.
Na verdade, os filmes de Lelouch são durante muito tempo postos de parte no panorama do cinema francês da segunda metade do século XX. Arrasado pela crítica e denegrido pelos seus pares, é tido como um cineasta menor, demasiado comercial, demasiado ingénuo e afetado por maneirismos estilísticos e sentimentais. O seu percurso de “menino mimado” [expressão-título do seu filme de 1988 com Jean-Paul Belmondo, Itinéraire d’un enfant gâté (Itinerário de uma Vida)] pelo país do cinema faz-se maioritariamente em contramão do movimento da Nouvelle Vague. Ainda que seja notória a influência das inovações técnicas e das experimentações formais dos anos 60 na sua maneira de filmar (sobretudo no que diz respeito à discontinuidade da montagem, à dissociação entre imagem e som e à filmagem de câmara na mão), Lelouch mantém-se fiel à tradição do cinema narrativo, e interessa-se por contar histórias com “simplicidade e emoção” sobre pessoas que sofreram golpes duros, mas que continuam a acreditar no seu direito ao amor e à felicidade.
É esta dimensão reparadora do amor – e, por extensão, do cinema – que permite ao cineasta conciliar a apologia do encontro e da paixão fulgurantes com a aceitação das rupturas e das desilusões inevitáveis.
Estes ingredientes estão presentes em vários dos seus filmes mais conhecidos dos anos 60 e 70, nos quais reencontramos sistematicamente os mesmos tipos de situações e de personagens, interpretadas por elencos de luxo com uma química infalível: Vivre pour vivre (Viver para Viver, 1967) com Annie Girardot e Yves Montand, Robert et Robert (Robert e Robert, 1978) com Charles Denner e Jacques Villeret, ou À nous deux (Uma Aventura para Dois, 1979) com Catherine Deneuve e Jacques Villeret. A julgar pela sinopse, a mesma atitude esperançosa em relação ao amor persistirá no mais recente filme de Lelouch, ainda por estrear, anunciado como sendo também o seu último, intitulado L’amour c’est mieux que la vie (2021).
Já em 1966, a frase “L’amour est bien plus fort que nous”, cantada pela voz de Nicole Croisille, se fazia ouvir em Un homme et une femme (Um Homem e Uma Mulher, 1966), filme “reparador” por excelência, que valeu a Lelouch a sua única Palme d’Or em Cannes, bem como os Óscares de Melhor Filme Estrangeiro e de Melhor Argumento Original. É curioso que o filme seja do mesmo ano que Masculin Féminin (Masculino Feminino, 1966) de Jean-Luc Godard, embora a semelhança entre os dois se fique pelo dueto que o título sugere. De resto, Lelouch deve quase tudo ao sucesso imprevisto de Un homme et une femme, o qual não só contribuiu para reabilitar a sua reputação no seio da comunidade cinematográfica internacional, como se revelou uma fonte inesgotável de ideias, de coincidências e de reencontros, a começar pelos dos próprios protagonistas, Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimé, novamente filmados pelo cineasta 25 anos mais tarde.
Em Un homme et une femme, encontramos pela primeira vez Jean-Louis Duroc, piloto de carros de corrida, e Anne Gauthier, anotadora de cinema, dois viúvos qui dividem o seu tempo entre Paris e Deauville, onde vão aos fins-de-semana visitar os seus respetivos filhos (Antoine e Françoise). É no final de uma dessas visitas ao internato que eles se cruzam e decidem começar a partilhar boleias. Nessas viagens, ficamos a saber mais sobre o seu passado através de flashbacks melodiosos, como aquele que nos dá a conhecer o marido de Anne, duplo de cinema falecido num acidente durante umas rodagems, ao som de “Samba Saravah” cantado pelo “français le plus brésilien de France”, Pierre Barouh. As memórias de Jean-Louis e de Anne substituem-se ao diálogo e abrem brechas momentâneas de cor na fotografia a preto e branco ou sépia. A montagem, repleta de tiques modernos, mas não sem charme, reforça a cumplicidade que brota entre eles e se torna eloquente através das trocas de olhares em grande plano. A intriga emocional do filme tece-se assim de projeções e de introspeções, ficando em off, salvo raras exceções, as aproximações físicas entre o casal.
Entre as duas primeiras viagens de carro, encontra-se aquela que considero a sequência mais bela do filme, que proponho revistar neste texto: o passeio pela praia que Anne e Jean-Louis fazem com os filhos. Acompanhados pelo instrumental “mélo-jazz” de Francis Lai (omnipresente em grande parte da filmografia de Lelouch), a cena é composta por três momentos distintos, em que a câmara se investe numa reflexão sobre os caminhos e os desvios na intimidade entre as personagens.
O primeiro momento é um plano-sequência do casal a passear com as crianças. O desejo de aproximação é sugerido pela posição e movimento da câmara, inicialmente afastada, observando-os num travelling lento e silencioso; contudo, mal se ouve a voz de Anne, a câmara faz um zoom de recuo até as figuras humanas se perderem no areal. Rapidamente percebemos que Anne e Jean-Louis usam os filhos para falar deles próprios: “Antoine disse-me que já tinha reparado em Françoise há muito tempo e a achava muito bonita”, confessa timidamente Jean-Louis. Podemos supor que este não é o único pretexto escondido no filme, pois Lelouch admite recorrer muitas vezes ao cinema para abordar as suas próprias vivências.
O cineasta disse uma vez, em 1965, após o fracasso de Les Grands Moments : “Quando as coisas correm mal, vou a Deauville. Era dia 13 de setembro… Passeava pela praia e ao longe – estava muito mau tempo nesse dia – vi uma mulher que também caminhava. Ao longe, ela parecia muitíssimo bela. Havia também uma menina que brincava ao lado dela. Tentei aproximar-me daquela mulher… E enquanto me aproximava, procurava uma explicação.” Lelouch não terá tido coragem suficiente para lhe falar, mas foi a partir dessa imagem-memória que nasceu a ideia de contar a história de Un homme et une femme. Quase poderíamos interpretar este plano-sequência na praia como uma projeção do souvenir do próprio realizador, na tentativa de resolver o seu dilema através de Jean-Louis, o homem que finalmente conseguiu abordar a bela desconhecida da praia de Deauville.
Regressemos à sequência na praia: no momento em que a voz de Anne se ouve, a câmara afasta-se das personagens, como se fosse necessário deixá-las a sós para que pudessem expressar os seus sentimentos. Este movimento de câmara introduz um desvio na montagem — “déviation”, como se lê numa placa de sinalização —, composto por uma série de planos que mostram a paisagem fria e desabitada de Deauville em obras. Nesse momento, é como se as subjetividades de Anne e Jean-Louis se fundissem com a consciência da câmara e esta fosse capaz de discursar sobre a intimidade emergente entre eles. É, portanto, na ausência das personagens que a câmara insinua a promessa de uma reconstrução mútua dos destroços das suas vidas sentimentais, se a isso se permitem — e aqui lembramos, inevitavelmente, a cena final de L’Eclisse (O Eclipse, 1962) de Michelangelo Antonioni.
O terceiro momento da sequência traz-nos de volta à praia, com um travelling frontal, como se deslizássemos na marginal olhando o mar. É então que Anne chama a atenção para a figura de um homem que caminha ao longe segurando um cão pela trela. O diálogo continua em off, deixando o casal fora de campo e desviando-se novamente do tema: “Alguma vez ouviste falar do escultor Giacometti?”, pergunta Jean-Louis. “Ele disse uma frase extraordinária: num incêndio, entre um Rembrandt e um gato, eu salvaria o gato”. Anne acrescenta: “E deixaria o gato partir de seguida.” Entre a arte e a vida, Giacometti escolheria a vida. Também Lelouch nos seus filmes parece prezar mais a fidelidade à vida do que à arte. Qual será, então, a escolha de Anne e Jean-Louis?
O homem e o cão voltam a surgir em dois momentos do filme que sublinham o seu valor simbólico. Na primeira circunstância em que Anne e Jean-Louisse precipitam nos braços um do outro, na praia de Deauville, depois de esta se ter declarado num telegrama, e de Jean-Louis ter conduzido a noite inteira para vir ao seu encontro, vemos dois planos do cão que corre em liberdade no areal, sem nunca se afastar demasiado do dono. Também Anne e Jean-Louis parecem ter-se soltado das amarras que os prendiam ao passado e sentir-se livres de experimentar uma nova oportunidade de vida juntos. Tudo se passa ao som do alegre “Da ba da ba da, da ba da ba da” de Francis Lai, transformado pela memória coletiva em “Cha ba da ba da”, canto onomatopeico que ritma o suspense até ao momento do enlace. Contudo, mais tarde, na cama com Jean-Louis, Anne é assolada por memórias do marido: a cena em tons sépia é constantemente interrompida por dolorosos e repentinos flashbacks a cores que a obrigam a admitir que, para ela, ele ainda não está morto. Por fim, um último plano da calçada da marginal, agora molhada pela chuva, traz de volta o homem que passeia com o cão, novamente preso pela trela – afinal, talvez Anne ainda não estivesse pronta para viver plenamente um novo amor. As figuras do homem e do cão serão mais tarde revisitadas por Lelouch em Toute une vie (Toda Uma Vida, 1974), filme mal amado onde a vida do cineasta, a História mundial e a(s) história(s) do cinema se confundem.
Apesar de Un homme et une femme terminar com uma nota de esperança quanto à possibilidade de uma reparação mútua, quando, décadas mais tarde, Lelouch decide recuperar as personagens de Jean-Louis Trintignant e de Anouk Aimé, apercebemo-nos de que não foi exatamente assim que as coisas se passaram. Na verdade, tanto Un homme et une femme, 20 ans déjà (Um Homem e Uma Mulher: 20 Anos Depois, 1986), do qual o próprio realizador confessa não se orgulhar e até preferir ignorar a sua existência, como o mais recente Les plus belles années d’une vie (Os Melhores Anos da Nossa Vida, 2019) são menos sequelas do filme de 1966 do que tentativas de “resgate” da história de amor entre Jean-Louis e Anne. Como escreveu Luís Mendonça aquando da retrospetiva de Jean-Louis Trintignant na 20a Festa do Cinema Francês, em 2019, é em Les plus belles années d’une vie que “começa (…) a perder nitidez a fronteira que separa os mundos da personagem, do ator, do realizador e do cinema propriamente dito”. Neste filme, Lelouch permite aos espectadores e aos próprios atores revisitar as suas memórias partilhadas, numa tentativa de luta tão nostálgica quando audaciosa face ao envelhecimento.
Recuperar um filme de Lelouch passa talvez por reconhecer que, mais do que a máxima “mulheres, carros e cinema” — as três paixões assumidas do cineasta — são os verbos “reencontrar e reparar” que melhor resumem a essência do seu cinema. Estes ingredientes raramente serão garantia de um sucesso crítico ou comercial à escala de Un homme et une femme; mas testemunham a fidelidade do cineasta às histórias, às personagens e aos atores que alimentam o seu cinema ao longo das décadas e que espelham o seu otimismo perante a vida. A historia iniciada pelo filme de 1966 é certamente a obra de Lelouch que menos necessita de ser reabilitada, mas é também aquela que melhor cumpriu a sua missão reparadora e potenciadora de reencontros.