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A propósito do objeto como prolongamento da experiência fílmica

De Ricardo Vieira Lisboa · Em 4 de Agosto, 2021

Um filme enquanto entidade puramente material não é um filme. Já se sabe que o cinema (ou, para os cinéfilos ortodoxos, o Cinema – com letra maiúscula) acontece no preciso momento em que uma sucessão de imagens (com ou sem som acompanhante) se desenrola numa tela através de um foco de luz. O filme é esse evento atmosférico de feixes lumínicos, mais ou menos coloridos, numa superfície lisa. Dir-se-á que entre um ecrã (onde a luz vem de dentro) e uma tela (que reflete a luz que lhe incide) há uma diferença essencial. Existe, claramente, do ponto de vista da escala, da possibilidade de repetição e da experiência concentracionária da sala escura mas, do ponto de vista da performance fílmica (da consubstanciação dos movimentos e dos sons), não compreendo bem o abismo que opõe os dois (efémeros) suportes. Nem eu, nem toda a gente, está bem de ver. Quem diz que viu um filme, di-lo independentemente do contexto em que o fez (em sala, na sala, em película, em digital ou em vídeo). Isto porque, a entidade “um filme” e o ato de “ver um filme” são uma e uma só coisa. Um filme não é, um filme ocorre.

O cinema é um gesto, um ato, um acontecimento, uma performance, um happening (Shyamalan?). Daí que para o espetador comum pouco importe sobre qual o suporte, o formato de compressão, qual o processo de captação e qual o contexto de exibição. O que lhe interessa é o filme. E disso resulta a transição alegre que a maioria dos olhos (e dos olheiros) vem fazendo para o streaming. A transferência de ficheiros de vídeo por cabos de fibra (ou de telefone) reproduz a experiência do filme num ecrã à escolha, à distância de um par de cliques. Sublinhe-se o verbo reproduzir, que é bem revelador do que aqui se passa (reproduz nos dois sentidos da palavra, mas também podia ser “remedeia”, também tirando partido da polissemia dessa outra palavra, para usar um termo caro a João Pedro Cachopo). E é essa reprodução que normalmente interessa. Daí que a desmaterialização do cinema – não só o caseiro, também aquele que se encontra museografado em arquivos pelo mundo – seja uma inevitabilidade. Porque a ontologia da imagem cinematográfica prende-se com esse “desenrolar de imagens” e não com os processos pelos quais se rege a sua captura, pós-produção, distribuição ou exibição. O cinema existe apesar de tudo isso.

Mas, e há sempre uma adversativa, existe uma componente de fetiche que se prende com esse “desenrolamento”. Fetiche é o processo através do qual se fixa, num objeto concreto (e palpável) uma entidade imaterial: o desejo sexual, mas também a vingança, o carinho, a memória, etc. É um processo de transferência pelo qual se concretiza aquilo que é, de partida, evanescente. Congela-se uma sensação, um sentimento ou um pensamento em algo que é tão presente quanto nós. É por isso um processo que nos aproxima – nós, seres de sangue e merda – dessas coisas vaporosas que nos acontecem e às quais chamamos emoções. O cinema, na sua volatilidade, é uma dessas coisas que desejamos agarrar (pelo menos os cinéfilos). Daí que a transferência para um ou mais objetos de um filme seja uma forma de vivência do cinema além (ou apesar) dessa componente fugitiva das imagens “rolantes”. E não me refiro, apenas, a uma “transferência” no sentido processual, em que se converte uma cópia analógica numa digital (nem à conversão/exportação de um filme em diferentes “materiais”: ProRes, H264, DVD, Blu-Ray, DCP 2K, 4K,…). Longe disso. 

E neste momento convém regressa a João Pedro Cachopo e o seu recente A Torção dos Sentidos, livro onde reflete sobre o impacto da pandemia na relação “remediada” com o mundo, isto é, através da tecnologia. Lá, Cachopo faz uma releitura do famoso ensaio de Walter Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica no sentido de o afirmar como uma política da aproximação. A perda da aura resulta numa tangibilidade afetuosa e muito concreta da arte. A reprodução é algo que posso mexer, carregar comigo, quebrar ou esventrar sem culpas. A questão está que esse efeito de aproximação pressupõe uma dialética entre original e cópia. Em cinema não existe original, tudo são cópias (e daí o fascínio de Benjamin por essa nova forma, aparentemente destituída de aura). Ou seja, nessa vontade de aproximação à obra tende a confundir-se a cópia com a entidade fílmica – sendo que a cópia participa, de facto, nessa entidade, mas nunca, de modo nenhum, a totaliza. Ao que se acresce que nem todas as cópias são iguais. Em cinema, o filme é uma genealogia de cópias, de todas as suas exibições e das suas múltiplas receções. Mas o que importa é recordar que a “política da aproximação” está na génese do cinema – tando no sentido que aproxima o espetador de imagens doutras partes do mundo, como, numa perspetiva materialista, só existe por aproximação.

A forma como, a partir dos primeiros anos do cinema, já se criava uma aura de pertença em torno de fotogramas ou fotografias de rodagem é muito sintomática desse desejo de captura (material) do filme, que é, pela sua natureza, uma correnteza de momentos fugidios. Uma fotografia impressa ou uma ponta de película é algo que estabelece com o filme uma correspondência direta, ainda que nem sempre biunívoca. E é essa relação de proximidade que constrói o processo de transferência pelo qual uma entidade se substitui à outra (e vice-versa) – ainda que sempre de forma parcial, nos dois sentidos, já que nem o filme consegue a rigidez de uma imagem parada, nem a imagem parada conserva a vida que aquela que se movimenta mimetiza. 

A materialização do filme em objetos é, portanto, quase tão antiga quanto o cinema ele mesmo e constitui, com a histórias da suas performances, a entidade cultural a que chamamos Cinema.

A este propósito recordo uns curiosos objetos, conservados no Acervo da Biblioteca da Cinemateca Portuguesa, chamados “livros de ponto”, onde um adolescente Félix Ribeiro, colecionava fotogramas de cópias de 35mm, em nitrato, que saltavam junto à lente do projetor, para a plateia, e se acumulavam no soalho adjacente. Estes geravam um valor de culto que era proporcional à imagem que reproduziam, sendo os mais valiosos aqueles que apresentassem grandes planos de rostos femininos… Félix Ribeiro e outros como ele colecionavam esses fragmentos como “cromos” avant la lettre, colando-o em cadernos de linhas, trocando-os entre si, aumentando a panóplia de exemplares e a variedade de imagens e filmes representados nas respetivas coleções (ainda que, paradoxalmente, muitas vezes nem se conhecia a origem daquele pedaço de filme).

Essa materialização do filme em objetos é, portanto, quase tão antiga quanto o cinema ele mesmo e constitui, com a histórias da suas performances, a entidade cultural a que chamamos Cinema – a maiúscula aqui refere-se a esse entendimento amplo do filme enquanto evento multiforme que inclui a várias projeções, mas também as cópias em si, as imagens reproduzidas, a receção crítica, o sucesso comercial, a perceção pública, o impacto estético e mediático, etc. Se é verdade que um filme não é uma entidade puramente material (longe disso), é verdade também que o Cinema não é uma entidade puramente imaterial. Com a progressiva digitalização dos modos de produção, distribuição, exibição e receção do cinema, essa imaterialidade vai-se acentuando – ainda que, é importante recordá-lo, a realidade que se esconde por detrás da propaganda da cloud, é bem mais concreta do que o marketing deixa sequer imaginar.

Daí que esta relação com algo físico seja necessária à concretização material da inefável experiência do filme (pelo menos para os materialistas, como eu). Subscrevo, naturalmente, os diversos argumentos que se relacionam com a falibilidade e permanente mutação dos catálogos digitais das plataformas de streaming, a acessibilidade da estante ou o conjunto de bónus que acompanham as boas edições em DVD e Blu-Ray (livretes com ensaios, comentários sonoros, vídeo-ensaios, entrevistas e documentários, apresentações por personalidades cimeiras e por teóricos conhecedores, etc.). No entanto, parece-me que uma defesa pela fisicalidade das edições de cinema em casa faz tanto mais sentido quando o objeto em si traduz uma relação de proximidade com o filme. Posto doutro modo, qual o real interesse de uma produção massificada e industrial de caixinhas de plástico com rodelas metalizadas e magnetizadas com códigos binários? Só um processo de fetichização da experiência do filme (do Filme), num objeto concreto, pode realmente traduzir num DVD o universo emocional, social, cultural e pessoal que em torno dele gira. Isso acontece através do gesto de ofertar, do gesto de rubricar, do gesto de emprestar, etc, etc. Isto é, através de uma elevação social do objeto como facilitador das trocas, dos encontros, dos amores, das amizades, das partilhas…

Só que há alguns objetos que parecem já insuflados desse cuidado com os outros. Penso em certas edições extremamente aprimoradas das quais ressoa a dedicação e a entrega dos que as produziram. E penso em objetos doutra natureza: artesanais, manufaturados e limitados – irreprodutíveis, e como tal, cobertos de valor de culto. Penso em edições de DVD desenvolvidas como se de um livro de artista cinematográfico se tratassem. Recentemente isso tem acontecido de formas travessas e improváveis no meio português. 

Um caso curioso é o da edição, em livro (!), do filme Elo (2020), curta-metragem de animação da realizadora Alexandra (Xá) Ramires, coescrita com a poeta Regina Guimarães. Esse, que foi talvez o melhor filme português que vi o ano passado, é uma alegoria delicada sobre a identidade, as construções sociais, as inseguranças e a interajuda, contada como uma fábula tão doce quanto mórbida (é da caveira de um animal morto que nasce uma flor). De qualquer modo, esta curta de menos de dez minutos deu origem a uma pequena publicação, ilustrada, que reproduz (ou remedeia, ou aproxima) o filme num novo suporte, o papel. Mas o vínculo (por ser este um filme de animação) mantém-se e a relação do espetador com o filme prolonga-se para o objeto. Aliás, o livro ilumina a dimensão literária que se oculta por de trás de cada uma das imagens. A poesia de Regina Guimarães torna-se, agora, evidente, quando no filme (que não tem diálogos nem voice over) era apenas algo que se pressentia nos traços de Xá.

Outro caso, que me é mais próximo, trata-se da edição em DVD de Bostofrio, où le ciel rejoint la terre (2018), de Paulo Carneiro (na qual se incluem meia dúzia de parágrafos da minha lavra). Esta edição, resulta de um empreendimento individual e que encara a edição em DVD a partir de uma perspetiva artística, colaborativa, e totalmente independente. À semelhança daquilo que muitos artistas plásticos fazem com a produção de livros de artista numerados ou de zines de autor, também aqui o realizador produziu, apenas, 100 exemplares. Feita à mão, numerada, e resultante de um engenhoso sistemas de abertura e fecho (um invólucro de origami), esta edição, assinada pelo artista Filipe André Alves, procura reproduzir a própria experiência do filme, tanto a partir da capa (uma ilustração em colagem, que fragmenta a paisagem em pedaços geométricos) como a partir da peça única que a dobragem dá a forma e o uso. Isto para um filme que, ele próprio, se faz da reconstituição de fragmentos que resultam numa paisagem cubista de um rosto, uno, mas complexo (também cheio de dobras no tempo e na memória).

E onde, claro, já não é necessariamente a rodela metalizada que suporta o filme. No caso de Bostofrio, além do DVD, há também a possibilidade de aceder a um link onde se pode visionar e/ou descarregar um ficheiro digital do filme. Com o desaparecimento das drives de DVD dos computadores e com a falência dos leitores (que mais cedo, ou mais tarde, serão tão anacrónicos como os leitores de VHS), será inevitável que a objetualidade do “cinema em casa” passe por outras formas e outros formatos de reprodução (remediação, aproximação) da experiência do filme. Mas independentemente desses possíveis formatos, a necessidade por uma fisicalidade muito concreta que nos remeta para o filme é, e será sempre, necessária para cumprir o arco cultural do filme enquanto evento social.

Estes dois exemplos apresentam-se como formas alternativas de continuar a desenvolver essa antiga relação do cinéfilo com a dimensão objetual dos filmes. Uma relação que é tanto mais rica quanto mais próxima estiver da experiência do cinema e mais distante for da mercantilização do merchandising.


Texto escrito em resposta ao nosso apelo em defesa dos suportes físicos, publicado no dia 19 de Novembro de 2020 e assinado pelos editores do À pala de Walsh.

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Ricardo Vieira Lisboa

O cinema é um milagre e como diz João César Monteiro às longas pernas de Alexandra Lencastre em Conserva Acabada (1999), "Levanta-te e caminha!"

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