Le temps, pour moi, c’est de l’amour, c’est rire, c’est chanter, tant que dure le jour.
Jacques Demy
Se há um cineasta francês que abraça o cliché e o eleva a um nível superior, esse cineasta é Jacques Demy. Comecemos então por uma fórmula também ela cliché: Demy, ou se ama ou se detesta, mas não se lhe pode ser indiferente. Escusado será dizer que sou das que vibra, canta e dança de cada vez que vê uma breve cena ou ouve uma das canções de um dos seus filmes. Especialmente, Les Demoiselles de Rochefort (As Donzelas de Rochefort, 1967), musical arrebatador tanto pela energia eufórica quanto pela atmosfera delicodoce, kitsch para uns, sublime para outros. O elenco reúne não só Catherine Deneuve e Françoise Dorléac, irmãs na vida real que desempenham os papéis das talentosas Delphine e Solange Garnier, gémeas “nascidas sob o signo de gémeos”, mas também Danielle Darrieux no papel da mãe solteira destas, Michel Piccoli, Jacques Perrin e… Gene Kelly!
Jacques Demy satisfaz neste filme o desejo de música e de cor que não havia podido concretizar em Lola (1961), a sua primeira longa-metragem ainda a preto e branco e com um único número musical (assíncrono) interpretado por Anouk Aimé. Com Lola, tem igualmente início a amizade e a colaboração de Demy com o músico e compositor Michel Legrand, cimentada em Les Parapluies de Cherbourg (Os Chapéus de Chuva de Cherburgo,1964), que é o seu primeiro filme-ópera inteiramente cantado, e o único na sua filmografia recompensado com a Palme d’or em Cannes.
Lola e Les Parapluies de Cherbourg criam os alicerces do cinema “en-cantado” de Jacques Demy (en-chanté, como ele próprio lhe chama) e introduzem vários dos temas e leitmotivs retomados em Les Demoiselles de Rochefort: marinheiros em licença, heroínas sentimentais, rendez-vous manqués, jogos de sorte e rasteiras do destino. Os três filmes desenrolam-se em vilas portuárias do noroeste da França: depois de Nantes e de Cherbourg, cinzentas e chuvosas, é a vez de Rochefort se tornar o palco de uma comédia musical (quase) em Technicolor. Filmado durante o Verão de 1966, o universo colorido e melódico de Demy toma conta da cidade: não só os seus habitantes são recrutados para fazer figuração nas cenas de rua, como também a equipa do decorador e cenógrafo Bernard Evein investe as fachadas de dezenas de edifícios, pintando portas e janelas segundo uma paleta de cores pastel a condizer com o guarda-roupa dos transeuntes.
Na Rochefort de Jacques Demy, o dialecto local é a música e a dança. As melodias jazzy de Michel Legrand e as coreografias elegantes e aéreas do irlandês Norman Maen irrompem no quotidiano, desenhando arabesques que semeiam coincidências, antecipam encontros e estabelecem pontes sentimentais entre as personagens.
É a chegada a Rochefort de uma trupe de artistas ambulantes que dá o “pontapé de saída” do filme, ou deveria dizer o “grand battement” que abre o baile: o genérico inicial é acompanhado por um ballet sobre a ponte de transbordo de Rochefort, metáfora da maquinaria do cinema e esboço dos impulsos amorosos que vão animar as personagens e contaminar até a maneira como a câmara se move no espaço.
A cada um dos casais formados ou pressentidos ao longo do filme é atribuído um tema musical, por sua vez associado a um tipo de amor diferente: o “amor ideal” sonhado por Delphine e imaginado por Maxence (Jacques Perrin), que pinta um retrato da jovem sem nunca antes a ter visto; o “amor nostálgico” e sujeito às ironias do destino que terá separado Yvonne (Danielle Darrieux) e Simon Dame (Michel Piccoli), antes de ambos regressarem a Rochefort, ignorando a presença um do outro; e o “amor à primeira vista”, escrito não nas estrelas mas numa pauta que Solange deixa cair no chão e que o músico americano Andy recupera – coup de foudre também para o espectador, que exulta com o surgimento inesperado de Gene Kelly no ecrã.
A integração narrativa dos números cantados e dançados assenta num dos princípios fundamentais do género da comédia musical que é a combinação de uma intriga principal, geralmente romântica, com uma intriga secundária que se desenrola no meio do espetáculo (a esta categoria do filme musical, Rick Altman chama backstage musical ou “musical de bastidores”).
A ação decorre no espaço de um fim de semana, ao longo do qual assistimos à preparação de uma quermesse, grande evento que reúne artistas de rua e população local numa atmosfera festiva. Porém, à excepção da sequência de abertura sobre a ponte e do ballet final na Place Colbert, os números musicais são raramente espectaculares à maneira das coreografias de Busby Berkeley; em contrapartida, Demy tira partido do amadorismo e da espontaneidade que permitem a eclosão do canto e da dança no quotidiano. Além disso, praticamente todas as personagens têm uma ligação ao mundo das artes: Delphine e Solange aspiram fazer carreira de bailarina e de compositora na capital; Maxence apresenta-se como “pintor-poeta”; já Andy e Simon foram colegas no Conservatório, antes de o primeiro se tornar um músico de renome internacional e o segundo se contentar com o destino de mero dono de uma loja de instrumentos.
Les Demoiselles de Rochefort contém inúmeras referências a vários filmes musicais que farão as delícias dos espectadores mais cinéfilos: à semelhança de On the Town (Um dia em Nova Iorque, 1949 – de Stanley Donen e Gene Kelly), o filme de Demy foi filmado em cenários naturais e o tempo da ação coincide com a licença de Maxence na cidade; os vestidos vermelhos brilhantes da performance das gémeas Garnier na quermesse evocam os trajes provocadores de Jane Russell e Marilyn Monroe em Gentlemen Prefer Blondes (Os Homens Preferem as Loiras, 1953 – de Howard Hawks); e até Gene Kelly se auto-cita na única sequência por ele coreografada, re-visitando o numéro “I Got Rhythm” de An American in Paris (Um Americano em Paris, 1951 – de Vincente Minnelli). O filme conta ainda com a participação de George Chakiris, um dos Sharks de West Side Story (1961), que nas suas performances executa muitos dos passos de dança característicos das coreografias de Jerome Robbins.
O cineasta escreve as letras das canções à la Prévert e trabalha os diálogos usando e abusando das referências intertextuais, das rimas triviais e dos trocadilhos sagazes, muitos dos quais infelizmente “perdidos na tradução” para português. Mestre do calembour, Demy faz dos jogos de palavras um elemento determinante da narrativa.
Mais do que uma homenagem à idade de ouro da comédia musical hollywoodiana, Les Demoiselles de Rochefort consolida o estilo inigualável de Jacques Demy. Em colaboração com Agnès Varda (com quem foi casado desde 1962, e que o acompanhou até ao fim da sua vida), o cineasta escreve as letras das canções à la Prévert e trabalha os diálogos, por vezes em verso alexandrino, usando e abusando das referências intertextuais, das rimas triviais e dos trocadilhos sagazes, muitos dos quais infelizmente “perdidos na tradução” para português. Mestre do calembour, Demy faz dos jogos de palavras um elemento determinante da narrativa: por exemplo, Yvonne terá recusado o pedido de casamento de Simon Dame por repudiar a ideia de se passar a chamar “Madame Dame” – aqui, o trocadilho é duplo, evocando Madame de… (1953), de Max Ophüls, um dos principais papéis da carreira de Danielle Darrieux.
Simples coincidência? Pouco provável. Da mesma forma que determinadas melodias são retomadas por personagens que nunca se encontraram, sugerindo que são “almas gémeas” que o destino unirá, certos trocadilhos ou anedotas circulam nas bocas de uns e de outros, mostrando que nada é gratuito ou deixado ao acaso.
No fundo, há algo de fundamentalmente ophulsiano na maneira como Jacques Demy orquestra a “ronda” de encontros e desencontros entre as suas personagens; mas ao invés de uma estrutura episódica como em La Ronde (1950), de Ophüls, a arquitetura de Les Demoiselles de Rochefort é profundamente operática no modo como as várias histórias se imbricam umas nas outras, constituindo um universo perfeitamente coeso e coerente ao qual é impossível resistir.
Contrariamente a Les Parapluies de Cherbourg, neste filme Jacques Demy oferece aos espectadores a promessa de um final feliz – “comédia musical oblige” –, mas não deixa de brincar com as nossas expectativas e de provocar uma deliciosa sensação de vertigem ao dar-nos a ver e a ouvir aquilo que as personagens não sabem ainda, até ao último plano do filme. Os planos-sequência com movimentos de câmara elaborados e os grandes planos em que as personagens falam diretamente para a objetiva contribuem igualmente para quebrar a “quarta parede” e criar fissuras na camada de verniz uniforme que envolve este conto de fadas moderno, onde a celebração do amor e da vida e a busca do sublime na arte coexistem com os vícios do mundo do espetáculo, com os prazeres carnais e até com crimes macabros.
Les Demoiselles de Rochefort estreia em França no mesmo ano que Mouchette de Robert Bresson e Deux ou trois choses que je sais d’elle de Jean-Luc Godard. Compreende-se que a “modernidade” do filme de Demy não possa ser considerada à luz dos mesmos critérios que a obra de Bresson ou de Godard; no seu cinema onírico, o cineasta procura pôr em prática a “filosofia de espírito democrático” a que se refere Maxence. Ao mesmo tempo que cultiva a sua proximidade à Nouvelle Vague e está atento às realidades sociais e políticas do seu tempo, Demy não deixa nunca de ter os olhos postos na “fábrica de sonhos” do outro lado do Atlântico.
Após a sua morte em 1990 (saber-se-á anos mais tarde que Jacques Demy foi uma das vítimas da sida), Agnès Varda não deixará cair no esquecimento a obra do seu companheiro, restaurando os seus filmes e realizando a trilogia composta por Jacquot de Nantes (1991), Les Demoiselles ont eu 25 ans (1993) e L’Univers de Jacques Demy (1995). Os filmes de Jacques Demy fazem hoje parte do imaginário cinéfilo partilhado por espectadores de todas as idades e revisitado por realizadores contemporâneos como Christophe Honoré (Les Chansons d’amour, 2007, et Les Bien-Aimés, 2011) ou Damien Chazelle (La La Land, 2016).
Les Demoiselles de Rochefort será exibido no dia 7 de Agosto no Jardim Tardoz, em Évora (sessão de cinema ao ar livre). Consulte a programação completa do ciclo “Cinema Paraíso” aqui.