Old (Presos no Tempo, 2021) é um dos mais experimentais (o que não quer dizer “dos melhores”) e um dos mais desagradáveis (o que não quer dizer “dos piores”) Shyamalans. O cinema de terror, como o thriller ou o de acção, é um recreio maravilhoso para um cineasta brincar com a sua câmara. Shyamalan, como Hitchcock ou De Palma, sabe-o muito bem, e daí que, no seu último filme, o argumento defeituoso tenha um papel meramente funcional, o de servir apenas como ponto-de-partida para o que lhe verdadeiramente interessa: explorar visualmente as potencialidades que o cenário da praia e a premissa do envelhecimento acelerado lhe permitem.
Desde que começou a financiar os seus próprios projectos, Shyamalan parece ter entrado numa fase de renascimento criativo. Ao trocar os orçamentos de 9 dígitos de After Earth (Depois da Terra, 2013) ou The Last Airbender (O Último Airbender, 2010) pelos modestos 5 a 20 milhões do seu bolso, sente-se que o cineasta encontrou a liberdade total que precisava para fazer trabalhos provocadores, diferentes e, desde Glass (2019), aplicar uma abundância de ideias no trabalho de câmara que o voltou (no meu entender) a tornar num dos mais interessantes realizadores do panorama cinematográfico contemporâneo.
O senão desta condição emancipada – e que se sente particularmente em Old – é o da falta de conflito artístico com uma voz autoritária que o forçaria a melhorar a base do seu projecto. Daí que, neste filme, sejam consideráveis os problemas de argumento, dos diálogos raquíticos (quando não excessivamente explicativos) à pouca caracterização psicológica das personagens, fazendo com que cada uma se pareça, em menor ou maior grau, com um peão de um jogo mórbido cujo destino é inevitavelmente a aniquilação. É um Shyamalan manipulador, e refiro-me a uma manipulação sádica ao nível de von Trier, olhando para os seres humanos como animais feridos (quase todos têm um problema de saúde, da epilepsia à esquizofrenia) à espera do momento do abate. Isto sem referir a dispensabilidade dos últimos 15 minutos, autêntica subserviência inorgânica de um realizador às expectativas da sua audiência.
Se, como tantos gostam de afirmar, “cinema não é a história, é a maneira de contá-la”, então Shyamalan é dos que mais segue essa máxima à letra.
E no entanto… olhe-se para os travellings a mimetizarem o movimento das ondas (magnífica a sequência em que a câmara segue um jogo da apanhada à beira-mar) onde, num fluxo de vai-e-vem, tanto se pode dar a vida como a morte; observe-se os contra-picados extremos a sugerirem o ponto de vista de um cientista a olhar para o interior da jaula da cobaia; atente-se nas composições insólitas onde só vemos os cabelos e parte das orelhas das personagens, servindo-se o cineasta do fora de campo para a construção precisa do suspense que antecipa revelações graduais quanto à transformação física delas. Se, como tantos gostam de afirmar, “cinema não é a história, é a maneira de contá-la”, então Shyamalan é dos que mais segue essa máxima à letra.
Poderão acusar o grafismo sórdido de algumas sequências, mas nem por isso deixa de ser um Shyamalan maioritariamente subtil e assente no poder da sugestão. Não esquecendo as mortes ocorridas no espaço off, dou dois exemplos específicos: 1) o da queda de uma jovem de um rochedo onde, no momento do embate do corpo no solo, ocorre um corte para a rebentação das ondas numa falésia (como Hitchcock a meter comboios a perfurarem túneis como metáforas para a penetração sexual), tornando um fenómeno natural numa metáfora visual violenta para a eliminação humana; 2) a remoção da toalha que cobre o cadáver de uma mulher, onde – ao contrário de 99% dos cineastas que exporiam o dito cadáver – Shyamalan corta para um plano de conjunto que apresenta o ponto-de-vista do interior da caixa torácica da defunta contemplando o grupo de personagens vivas, fazendo com que os ossos se assemelhem a grades que caem sobre ele. Este último é um exemplo prático de como Shyamalan não só rejeitou a possibilidade de filmar uma imagem explícita de mau gosto, como aproveitou a ocasião para criar uma metonímica perfeitamente enquadrada no contexto narrativo, reforçando visualmente a ideia de humanos aprisionados a um espaço de mortalidade acelerada e inevitável.
Mais um exemplo, mas que só com o decorrer da acção acaba por fazer sentido: numa das primeiras cenas, a família está no quarto do hotel onde, por causa de uma provocação amigável do pai, começam os 3 (o pai, o filho e a filha) a brincarem em cima da cama. A mãe está, neste instante, na varanda a olhar para dentro de casa, e Shyamalan efectua um pequeno zoom em direcção ao seu rosto a partir do quarto, dando atenção à janela que os separa e o rosto materno por trás dela. Com a alteração de escala, a expressão alegre da progenitora dá lugar a uma suave melancolia. Se ao princípio não se compreende a razão por trás desta curiosa opção formal acompanhada por uma mudança expressiva, o desenrolar da narrativa dará um pouco de luz ao revelar que a mãe é portadora de um tumor. Em retrospectiva, a cena faz sentido: é alguém que olha para a sua família alegre, mas com medo de que a sua condição física a leve a deixá-la, estando tudo a sugerir (a janela) e destacar (o zoom, a expressão) o temido afastamento definitivo que se imporá com a eventual agravação do estado de saúde dela.
Poderia acrescentar o uso do plano subjectivo desfocado em torno de uma personagem míope ou a quietude na mistura de som de outra semi-surda para reforçar ainda como a subjetividade visual e acústica da velhice é entusiasmadamente explorada pelo realizador. Certo, Shyamalan não faz o tratado filosófico profundo sobre a condição humana que a premissa parecia prometer. Mas seria ele o cineasta indicado para isso? Não me parece, e ainda bem que não tentou sê-lo. No lugar de um embaraçoso filme filosófico falhado, temos um estimulante “superficial” bem-sucedido. Porque o argumento pode até bem ser (usando um termo já empregue ao filme) “mentecapto”, mas o trabalho de câmara (e não só) não deixa por isso de se provar inteligentíssimo. Que certa parte da crítica escolha focar-se exclusivamente no primeiro ponto e ignorar completamente o segundo, mostra apenas o desapontante estado actual das coisas, onde até os melhores profissionais confundem, por vezes, crítica literária com a de cinema.