Os walshianos reúnem-se para dizerem de sua justiça em relação ao mais recente título de Clint Eastwood como actor-realizador, Cry Macho (Cry Macho – A Redenção, 2021), numa altura em que o próprio reafirma a vontade em continuar a filmar.
Aviso: os textos que se seguem contêm alguns spoilers. Recomendamos que leia as apreciações depois de ver o filme.
Na sua autobiografia, My Wicked, Wicked Ways, Errol Flynn relata, a dada altura, um episódio sucedido entre William Holden e Joshua Logan. Holden, tentando provar possuir os atributos necessários para desempenhar o papel de um acrobata, facilmente executou o pino no parapeito da janela, de uma altura de seis andares. Mas o mesmo Holden, capaz desta proeza, era apoquentado por um medo paralisador: era incapaz de se aproximar de uma pista de dança, morria de medo sempre que uma cena exigia que dançasse com a actriz que com ele contracenava. Errol Flynn interroga-se se, passados vários anos, Holden seria ainda capaz de repetir o acto de bravura que atrás descrevemos, sendo levado a concluir que envelhecer é também acumular medos, a incapacidade de repetir gestos que, na juventude, eram feitos com espontaneidade, sem pesar os perigos. Esta passagem do livro acaba por conter muito do que encontramos em Cry Macho – o processo de envelhecer, os actos de coragem, a masculinidade ferida. Essa masculinidade ferida que, já em 1962, Sweet Bird of Youth (Corações na Penumbra, 1962) ilustrava de forma tão brutal, com a castração de Chance Wayne (Paul Newman), metafórica no filme, literal na peça de Tennessee Williams. Envelhecer será, pois, aceitar uma masculinidade suave, terna, caída nos braços de Marta (Natalia Traven), que parece evocar uma feminilidade amadurecida (apetece imaginar que estamos perante uma versão tardia de uma cine-deusa mexicana, qual Dolores del Rio ou Lupe Vélez). O verdadeiro machão, valentão, é, afinal, aquele que responde pelo nome de Macho, o galo que tem a coragem para agir no momento certo, levando também a um curioso jeu de mots: sendo galo, não é galinha (“chicken”, que pode também significar cobarde). Sendo galo, é também macho, porque é o rei do galinheiro, é um símbolo de domínio sexual. Em Cry Macho, os homens que tentam usar da mera força física, de uma pretensa coragem, para afirmarem a sua masculinidade, falham redondamente (Aurelio que é sempre ultrapassado, o substituto que tenta ridiculamente passar por xerife).
Abandonada então a concepção de coragem, masculinidade como correspondendo a capacidade física ou a violência, o que fica? A coragem do melodrama, do romântico, do sensível, até mesmo do piegas. Fica uma música que pontilha todo o filme e que poderíamos reconhecer de uma qualquer telenovela, fica um certo deslumbramento por um mundo feminino feito de pequenas generosidades, um certo toque mágico que se produz quando uma mulher se atravessa no caminho destes dois homens – um em fim de vida, um em início de vida – e que os traz de volta ao caminho certo.
E, já agora, quando foi a última vez que saiu de uma sala de cinema com vontade de ir dançar um bolero?
Daniela Rôla
A verdade é que não é a primeira vez que Clint Eastwood faz este filme – mas a um realizador de 91 anos não se pode realmente exigir muita originalidade. Também não é o seu primeiro filme de despedida, basta pensar em Unforgiven (1991, Imperdoável), um adeus ao western e ao arquétipo de personagem dura, indomável, desapegada, ou Million Dollar Baby (Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos, 2004), elegia sobre os limites do corpo e a mortalidade, Gran Torino (2008), um derradeiro suspiro sobre o conceito de redenção, e até The Mule (Correio de Droga, 2018), que percorre alguns caminhos semelhantes aos deste novo filme, mas que era sobretudo sobre corrigir erros do passado – mas este Cry Macho também já não é realmente um filme de despedida, Eastwood parece ter-se libertado dessa obrigação, jogando até na escolha da canção de abertura do filme com a continuidade em relação ao The Mule e deixando uma pista (“Find a New Home”) para o desenlace. Na última década, Eastwood como realizador tem criado alguns filmes bastante desiguais, e acima de tudo, anónimos ou pouco eastwoodianos… o último a ter essa qualidade será talvez Sully (Milagre no Rio Hudson, 2016), mas como realizador-actor cada uma das suas últimas aparições carrega uma aura imponente, uma história com o qual cada filme dialoga directamente. O que impressiona em Cry Macho é mesmo a liberdade que Eastwood aparenta de não se preocupar com o legado, e simplesmente filmar uma história ao seu tempo, liberto das questões da mortalidade e expiação, e antes ocupado com as minudências e fragilidades do dia-a-dia, sem urgência, de acordo com o seu protagonista, que desvia uma “missão” para refugiar-se algumas semanas numa vila mexicana, ou deixa-se dormir a sesta depois de um almoço – essa independência em relação ao que lhe é expectável (em relação ao olhar externo) para seguir o seu caminho, torna-se parte fulcral da experiência do filme.
Aliado a este tempo próprio, com Cry Macho, Eastwood aplica um minimalismo que rareia por terras americanas – minimalismo não no sentido restrito de austeridade formal, mas de contenção no que é mostrado, da construção de uma narrativa através de um número mínimo de elementos: repare-se na forma breve mas de forte impacto como é abordado o passado trágico da personagem e a perda da sua família, com Eastwood deitado (numa igreja!), a esconder as lágrimas com o seu chapéu de cowboy. Quem diria que os realizadores mais próximos de Eastwood actualmente seriam mesmo Kelly Reichardt com a serenidade formal e repetições de First Cow (First Cow – A Primeira Vaca da América, 2019), o cowboy reformado de The Rider (2017) ou o olhar sobre o crepúsculo americano de Nomadland (Nomadland – Sobreviver na América, 2020) de Chloé Zhao, ou até David Lowery com o seu The Old Man & the Gun (O Cavalheiro com Arma, 2018)? Depois, há um humor gracioso que percorre o filme, com algumas frases memoráveis (“I don’t know how to cure old”) e nas interacções entre o velho e o miúdo, e acima de tudo, repleto de ironia: o cowboy domador de cavalos em rodeos acaba, primeiro por causa de uma lesão como tratador desses mesmos animais, e mais tarde como veterinário não oficial da vila; o rapaz mexicano encontra, a caminho da terra prometida e mesmo que temporariamente, a família que nunca teve; e perto do fim, Mike explica ao rapaz que os ideais machistas que este revê no seu galo lutador não são assim tão importantes ou desejáveis, e na cena seguinte, os dois acabam por ser salvos pelo tal galo e pela sua bravura, como se Eastwood afirmasse que não há nenhuma expectativa que sobreviva às ironias da vida, que tanto desarmam qualquer moralismo grandioso como desfazem uma infelicidade duradoura quando menos se espera – afinal, o velho cowboy volta a encontrar o seu sítio, a sua casa, depois de tantos anos à deriva, no local onde menos esperava.
João Araújo
Certo, é muito bonita a serenidade crepuscular e a respiração neoclássica que Clint Eastwood ainda é capaz de aplicar no cinema americano recente; e todo este universo de jornadas redentoras, famílias substitutas e aprendizagens masculinas pode levar os cinéfilos nostálgicos a tecerem as mais lisonjeiras ligações entre o seu último filme com Honkytonk Man (A Última Canção, 1982) ou Gran Torino. Mas, como Jonathan Rosenbaum já apontou, Eastwood é um cineasta à mercê dos seus argumentos. Por muito que se defenda Gran Torino ou The Mule, Nick Schenk – argumentista desses filmes e co-argumentista de Cry Macho – não é Paul Haggis, cujos argumentos que assinou para Eastwood levaram às genuínas obras-primas deste século do realizador. E Cry Macho tem, verdadeiramente, um argumento problemático. Problemático no modo como a personagem do miúdo mexicano está subdesenvolvida (que, a juntar à interpretação imatura e desajeitada de Eduardo Minett, fazem desta figura o pior que o filme tem), na resolução anti-climática conferida a demasiados eventos dramáticos, e no final inacreditavelmente desleixado concedido à personagem do rapaz. “Inacreditavelmente desleixado” porque, diz Mike (a personagem de Eastwood), não muito longe do fim, ao adolescente (por outras palavras, evidentemente): “Olha, puto, o teu pai quer é usar-te como moeda de troca para sacar umas notas à mafiosa ninfomaníaca da tua mãe. Por isso, suspeito que a definição de ‘amor paterno’ para o teu velhote seja um bocado esquisita.”, e o filme limita-se a continuar na mesma direcção, como se não compreendesse nada do que aquela revelação implica.
E o que é que implica? Ao explicitar a faceta cínica e materialista do pai, passa a ser sugerido ao espectador que o filho acabará por retornar aos braços sufocantes da mãe megera de onde intencionalmente se esquivou, o que, consecutivamente, o levará a fugir outra vez de casa, sujeitando-se, de novo, aos maus-tratos que tinha recebido. A partir desta sugestão, o final lógico e necessário para combater esta circularidade tóxica é o de Mike, num momento transformativo, optar por negligenciar o propósito da sua missão, assim como o miúdo (ao saber das verdadeiras intenções do pai) renegar por completo os laços biológicos, dando ambos meia-volta rumo à aldeia mexicana que é o pequeno paraíso do filme, onde uma nova estrutura familiar se validaria, por definitivo, entre o miúdo, Mike e a viúva mexicana que antes os acolhera. Só dessa maneira – pelo resgate do rapaz para um lar onde é realmente amado e não pelo cumprimento de uma dívida moral que lhe trará consequências perigosas – o arco da personagem de Eastwood estaria completo, permitindo a autêntica redenção a que o subtítulo português se refere. Não acontecendo, é quase como se o protagonista revelasse uma amoralidade pouco díspar da do homem que o contratou. Este grave desleixo de argumentista faz com que o desfecho ingrato reservado ao miúdo ponha, então, a própria expiação de Mike em causa, atraiçoando o que a narrativa trabalhava até ali. O que, se não é o bastante para estragar completamente um filme de alguns belíssimos momentos, é o suficiente para passá-lo de um patamar que aparentava, a espaços, ser “muito bom” para um apenas “bom”.
Duarte Mata
Já vimos isto em exemplos de filmes finais de grandes autores do período clássico. O mundo e o cinema a estreitarem-se como na representação do regresso a uma idade da inocência, que é narrada com os golpes mágicos da efabulação. Cry Macho não carrega o habitual lastro humano, e até mesmo autobiográfico, de filmes mais e menos recentes do realizador, como The Mule (2018) ou Gran Torino (2008). Em certos momentos, somos levados a pensar que se trata de uma paródia de Eastwood ao seu capital de masculinidade e às linhas de força comuns no seu cinema. Existe pelo menos essa leveza de tom que coincide com o peso que desaparece do corpo de um homem de 90 anos. E sendo grande parte da acção de Cry Macho localizada no México, até podemos ver na figura de Mike Milo (Eastwood) uma daquelas caveiras com uns trapos por cima alusivas às festividades do Dia dos Mortos. É o tom que permanece, o da celebração da vida na proximidade do fim da mesma. Chama-se a isto os sorrisos do destino. E que um dia quando a voz se apagar e não existir mais corpo, e que Clint Eastwood se funda de uma vez por todas com as paisagens dos seus filmes, que seja com a música de Los Panchos que todos nós lhe façamos uma última saudação.
Ricardo Gross